Cultura do cafezinho esbanja e torra milhões de reais no poder público de MS
Enquanto chefes esbanjam com cappuccino e máquina de expresso, tem servidor fazendo vaquinha para tomar café
Falar sobre o cafezinho de graça oferecido nas repartições públicas é mexer em vespeiro. Mas em um país que exige urgência no enxugamento da máquina, milhões em pó de café e afins não são "dinheiro de pinga". A bebida segue intocada nas garrafas térmicas espalhadas por secretarias de governo, prédios da Justiça e do Legislativo, apesar do preço que dobrou em três anos.
RESUMO
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Gastos com café no serviço público de Mato Grosso do Sul chegam a milhões, aponta levantamento. Tribunais, ministério público e assembleia legislativa adquirem produtos de alta qualidade, como café gourmet, cappuccino e chás especiais, enquanto servidores se contentam com opções básicas ou levam de casa. A justificativa para os gastos, em alguns casos, é o "bem-estar" de autoridades. Enquanto milhões são gastos em cafezinhos premium, servidores relatam a necessidade de fazer "vaquinha" para garantir o café no dia a dia. Economistas apontam que, embora o oferecimento de café não seja necessariamente um problema, os excessos e a desigualdade no acesso criam um simbolismo negativo, reforçando privilégios em detrimento das necessidades básicas da maioria.
E quanto maior o status do chefe, melhor a qualidade dos grãos, mais alto o valor do quilo e, nesta conta, ainda entram várias regalias que acompanham o combo. Quando a verba "não tem dono", as licitações inflam com pequenos luxos para os poderosos, como cappuccino, máquinas de expresso e até leite com baunilha.
Para muitos servidores, sobra apenas o pó mais ralé e muito açúcar no copinho descartável. Quando a azia vira rotina, o jeito é fazer vaquinha ou trazer café de casa. Já para quem está no topo dessa cadeia alimentar, os dias são bem regados, inclusive, com chás especiais, polpa de fruta e adoçante para garantir a dieta, em quantidades que atenderiam uma metrópole de diabéticos.
Só para privilegiados
O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul firmou dois contratos para garantir o abastecimento de café em pó nas 55 comarcas do Estado e na sede em Campo Grande. Somados, os dois registros chegam a R$ 1,465 milhão e terão vigência de um ano. Mas os números são mais altos, somando várias mordomias. E a justificativa para o gasto não esconde a intenção de garantir privilégios.
Para manter na ativa duas máquinas automáticas de café, por exemplo, são necessários R$ 36 mil ao ano na compra de 75 pacotes de 1 quilo de café torrado em grãos, além de achocolatado em pó para o cappuccino e até leite com baunilha.
A exclusividade atende apenas à Presidência e à Sala Pantanal (local de reuniões), passa longe dos cerca de 800 servidores do TJ (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul) que, além do cafezinho basicão, só entram na conta do chá: cerca de 200 ml por dia, do tipo mate, o que consome R$ 22 mil, bem menos do que as duas máquinas.
Para justificar o serviço exclusivo das máquinas, o edital que dispensa licitação é claro: "contribuir com a manutenção do bem-estar dos desembargadores e das autoridades como forma de qualidade de vida e relacionamento interpessoal".
Já na justificativa do edital do plano de compras de pó de café mais simples, que abastece os servidores, o Tribunal ressalta que “o consumo de café é uma tradição no Brasil” e que sua ausência poderia gerar reclamações e prejudicar o clima organizacional.
Esbanjando
O Ministério Público de Mato Grosso do Sul é um dos mais exagerados nas exigências no menu e no orçamento do combo cafezinho: paga caro pelo produto top de linha, do tipo premium.
Neste ano, o MPMS assinou contrato de R$ 1,054 milhão para o fornecimento de gêneros alimentícios como café em grão, pó torrado e moído, cappuccino, água mineral, açúcar, adoçantes, chás e polpas de frutas.
Assim como em anos anteriores, o café concentra a maior fatia do orçamento. E ninguém economiza; não tem nada de Caboclo ou Brasileiro. O contrato prevê compras de café em grão 100% arábica, embalado a vácuo, a R$ 82,50 o pacote de 1 quilo, o que leva o custo total à casa das centenas de milhares de reais. Dentro desse grupo, há até "cappuccino gourmet", em embalagens de 1 quilo, a R$ 91,30 cada. Esse item soma R$ 514.375,00 ao café.
Entre os produtos incluídos também estão chás especiais e polpas de frutas congeladas, itens que, embora representem fatia menor no orçamento, simbolizam o caráter de luxo da lista. Eles se somam ao cappuccino para compor um cardápio que vai além do essencial ao funcionamento da instituição.
Suquinho de frutas
No Tribunal de Contas de Mato Grosso do Sul, de estrutura mais enxuta, foram R$ 706.272,52 no edital de 2025 para abastecer gabinetes e setores administrativos com café, cappuccino, chás e polpas de frutas. O valor é quase o mesmo desembolsado no ano anterior, mantendo uma tradição cara de consumo de bebidas e itens considerados supérfluos pela dona de casa que encara o supermercado para a compra do mês.
O café continua liderando a lista de compras. Grãos, pó e café solúvel, somados ao cappuccino pronto, chegam a R$ 292 mil. Só o cappuccino, bebida associada ao consumo gourmet, custa R$ 75 mil. Para efeito de comparação, o montante com essa mistura de café e chocolate é superior ao que será usado para todo o fornecimento de açúcar e adoçante, avaliados juntos em R$ 41 mil.
Entre as compras, chamam a atenção os chás especiais, incluindo os de frutas vermelhas, que ajudam a inflar a conta final em R$ 37 mil por ano. E o produto não é do tipo "pé no chão" que vem a granel naqueles sacos enormes que barateiam o custo. No caso do TCE (Tribunal de Contas do Estado), são 8 mil sachês de chá.
Mais caros ainda são os sucos naturais a R$ 65 mil, nos sabores manga, goiaba, acerola, abacaxi, morango, caju e maracujá.

Café expresso
Em 2025, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul prevê R$ 395.980,00 do orçamento apenas com café torrado, mas a conta vai engordando com editais extras.
No rol dos gastos que poderiam ser facilmente dispensados, a ALEMS (Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul) é outra com uma dupla de equipamentos de cafeteria profissional. No contrato há uma aparente contradição: enquanto o quadro de itens deixa claro que os valores foram projetados para 12 meses, com valores anuais de R$ 5.760,00 e R$ 3.840,00 para as duas máquinas, em outra cláusula consta que “valor mensal da locação é de R$ 9.600,00”.
Fato é que só no quilo do café gourmet comprado para abastecer esse luxo são R$ 136,30 por pacote de 1 quilo, preço quase 5 vezes mais caro que um cafezinho modesto de "trintão" o quilo. A Casa pagará, por exemplo, R$ 70,30 por quilo de leite em pó e o mesmo valor pelo chocolate em pó específico para as máquinas, ambos descritos como produtos premium.
Para os parlamentares, é o que garante um sabor especial nas visitas à presidência ou em reuniões dos eleitos pelo povo.
Hora do coffee break
E como ninguém pode palestrar ou aprender sem aquele biscoitinho com café, outro assunto intocável na esfera pública é o coffee break.
De janeiro deste ano até o início de setembro, o Governo de Mato Grosso do Sul desembolsou ao menos R$ 1.183.272,93 em pagamentos à empresa Prime Buffet MS Ltda, especializada em serviços de alimentação para eventos.
Os dados estão disponíveis no Portal da Transparência estadual. A preços de mercado, considerando um coffee break premium a R$ 35,90 por pessoa, o valor daria para alimentar 32.960 pessoas.
Mas se a pessoa por trás da caneta optasse pelo menu mais econômico oferecido em Campo Grande, de R$ 17,90, essa multidão subiria para 66.104 bocas.
No mesmo período, o total empenhado, ou seja, reservado para esse tipo de despesa, chegou a R$ 1.937.258,55. O Fundo Especial de Saúde foi, de longe, o órgão que mais consumiu recursos: foram R$ 676 mil em contratos.
Na segunda posição em valores gastos aparece a SED (Secretaria Estadual de Educação), com R$ 87,3 mil já pagos. O terceiro maior gasto veio da Semadesc (Secretaria de Meio Ambiente, Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação), que empenhou R$ 120,8 mil.
Vaquinha
A manutenção desse cardápio, ano após ano, evidencia a resistência a cortar extravagâncias que, somadas, viram cifras milionárias no setor público. Pior, o servidor, na maioria dos casos, fica com a rebarba do que o alto escalão consome.
"Aqui na secretaria oferecem só o café puro, mas é ruim. Como quase ninguém gosta, a gente traz o nosso de casa", diz funcionária da Secretaria Estadual de Administração que falou com o Campo Grande News sob a condição de não ter o nome exposto. "Também não tem chá. É só café com açúcar. Adoçante? Claro que não tem", completa.
Nas escolas públicas, o sistema funciona como em uma família, sem grandes regalias e com orçamento regrado. Para garantir a garrafa cheia na sala dos professores, muitas vezes é preciso fazer vaquinha ou levar de casa.
Segundo a Fetems (Federação de Trabalhadores da Educação de Mato Grosso do Sul), a situação depende da organização financeira e também da definição da APM (Associação de Pais e Mestres).
Para comprar, é preciso usar o dinheiro do repasse feito pelo Governo do Estado. "Algumas escolas conseguem inserir isso no orçamento e outras, não. Eu sei de escolas em que essa verba não é suficiente. Essa verba vem dentro do repasse para todas as demais despesas e, por isso, nem sempre conseguem administrar a ponto de oferecer o cafezinho gratuitamente durante todo o mês", explica a presidente da entidade, Deumeires Morais.
O sal é o limite
Roberto Troster, doutor em Economia pela USP (Universidade de São Paulo), professor titular da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e ex-economista-chefe da Febraban (Federação Brasileira de Bancos), lembra que qualquer desperdício faz falta no caixa. "E, falando sobre esse tipo de custo, vamos concordar que não são pequenos gastos."
Porém, o "combo cafezinho" não é de todo ruim, analisa. Depende do que se compra e do quanto disso é distribuído de forma igualitária, diz o economista. "Oferecer café e um pão com manteiga para todos é uma coisa. Pode não ser supérfluo em algumas realidades. Agora, há exageros. A analogia está no quanto de sal você coloca na comida. Se deixa de ser saudável, é exagero".
Para ele, o problema maior é o simbolismo do privilégio financiado em nome de bem-estar restrito, sem igualdade de condições no cotidiano da administração pública.
Troster avalia que a cultura de regalias para os poderosos é a reprodução do mesmo viés concentrador que marca a estrutura social e tributária brasileira: recursos públicos servindo a pequenos luxos de uma elite, enquanto a maioria continua sem acesso ao básico.
O Campo Grande News entrou em contato com as assessorias de todos os citados, mas ainda não obteve resposta para as seguintes perguntas:
- Como justifica gastos elevados com café gourmet, cappuccino e polpas de frutas?
- Há critérios técnicos que definem a compra de itens premium, como café arábica e cappuccino gourmet, em vez de opções mais baratas?
- Existe algum estudo que mostre o impacto desses contratos no orçamento geral da instituição?
- Qual a razão de os editais preverem tratamento diferenciado para desembargadores, promotores e parlamentares, em detrimento da base do funcionalismo?
- Há alguma política interna para limitar ou revisar gastos com gêneros alimentícios considerados supérfluos?