Mãe, 7 filhos e renda de R$ 1.300: “tem mês que a gente passa sem comer mistura”
Alta dos preços dos alimentos devora o orçamento das famílias mais empobrecidas
A fome ronda o barraco de tábuas onde Silvana Jéssica, de 33 anos, mora com os sete filhos, no Jardim Centro-Oeste, em Campo Grande, na área popularmente conhecida como “invasão da Homex”. A família é grande, mas o orçamento é raquítico: R$ 1.300 por mês , advindos do Bolsa Família, programa do governo federal de transferência de renda.
RESUMO
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Silvana Jéssica, 33 anos, vive com seus sete filhos em um barraco de tábuas no Jardim Centro-Oeste, Campo Grande, com uma renda mensal de R$ 1.300 do Bolsa Família. A família enfrenta dificuldades para se alimentar, muitas vezes passando o mês sem proteína. O filho mais velho, autista, necessita de remédios que não estão disponíveis no SUS, aumentando os gastos. A situação é agravada pela falta de apoio do pai das crianças. Em Mato Grosso do Sul, 204.977 famílias são atendidas pelo Bolsa Família, mas a inflação e o alto custo dos alimentos tornam a sobrevivência um desafio diário para muitos, como Silvana e sua família.
“Tem mês que a gente fica sem comer nada de mistura, o mês inteiro. A gente tem que se virar. Peço para alguém da família, amigo. Os meus filhos têm o mesmo pai, que não paga pensão”, diz Silvana. As crianças têm idades de um mês, ainda no colo e totalmente dependente da mãe, a 14 anos.
Às vezes, não dá para fazer a compra, aí eu recebo de doação. É difícil. Principalmente porque meu mais velho tem autismo, tem médico, remédio”, conta Silvana.
Os R$ 400 que vão para a alimentação garantem o básico do básico. Ela já não consegue comprar as frutas que as crianças eram acostumadas a comer, vê com preocupação a escalada do preço do café e passa muitos dias sem saber o que é ter “mistura” no prato. Uma voluntária ajuda a família com doação de comida, a cesta de alimentos vem mês sim, mês não.
“E tem o remédio do meu guri. São mais R$ 100. No SUS [Sistema Único de Saúde] não tem. Até porque a escola exige que ele tenha acompanhamento, para se adaptar na sala. Porque meu guri é nível médio de autismo. Quando não tem o remédio, não tem como ir para escola. Tenho que gastar. Estou esperando há meses pela consulta com neuro e psiquiatra”, diz Silvana.
Thainara Sthepanie, de 25 anos, caminhava pelo bairro à procura de uma área onde pudesse erguer um lar provisório. A família é composta por ela, dois filhos crianças (2 e 8 anos) e o marido de 43 anos. Toda renda vem do Bolsa Família, que paga R$ 600. Ela conta que o marido recebe um dinheiro extra com “bicos”. “Ele não consegue nada de carteira assinada. Então, faz diária de carpinteiro, servente de pedreiro”. Para economizar, eles só andam a pé e o caçula vai no colo. A alimentação enfrenta restrições. “Comer mais ovo, né? Mas até o ovo tá lá em cima, tá lá na altura”, diz Thainara.
Para ter comida no prato, Urbano Jorge Duarte, de 62 anos, depende de doações. “Ganho um sacolão e, na igreja, me ajudam também”. Ele relata que teve o beneficio do Bolsa Família cortado e tudo que consegue fazendo “bicos” vai para pagar água, luz e, quando dá, uma comida diferente.
Faxina, serviço braçal, carpir terreno. Esse é meu ganha-pão. A mistura não é todo dia. Às vezes, faço uns R$ 20, R$ 30. Aí, eu compro. Minhas filhas me ajudam também e a gente vai levando desse jeito”, diz Urbano, que circula de bicicleta pela cidade.
Programas de transferência de renda
Em Mato Grosso do Sul, 204.977 famílias são atendidas pelo Bolsa Família. Conforme o balanço de 2024, Campo Grande (52.834), Dourados (13.993) e Corumbá (10.173) lideram com o maior número de famílias beneficiadas. Na outra ponta, Paraíso das Águas é a que menos tem beneficiários: 229 atendidos.
Ainda de acordo com dados do governo federal, MS é o sétimo Estado com menor número de atendidos, ficando atrás de Roraima (81.577), Amapá (123.772), Acre (133.945), Rondônia (136.491), Tocantins (157.279) e Distrito Federal (175.434). Para ter direito ao Bolsa Família, a principal regra é que a renda de cada membro da família seja de, no máximo, R$ 218 por mês. O programa garante pagamento de R$ 142 por pessoa. Caso o valor final não alcance R$ 600, a diferença é paga por meio de benefício complementar.
Além disso, é adicionado mais R$ 150 a cada criança da família (com idade até 6 anos). Outros R$ 50 são adicionados para cada integrante que se enquadre nesses critérios: gestantes, nutrizes (quem amamenta), e quem tenha de 7 anos a 18 anos.
O governo do Estado tem o programa Mais Social, que repassa auxílio financeiro de R$ 450 para as famílias em vulnerabilidade. O dinheiro é destinado a alimentos, gás de cozinha e produtos de limpeza e de higiene. O projeto atende a 41,6 mil famílias. Após cruzamento de dados, a administração estadual também busca por 17 mil pessoas "invisíveis". A procura ativa é feita em todo o Estado. O cadastramento é para que eles tenham acesso aos R$ 450 do Mais Social, além de possibilitar a inserção em outros programas assistenciais.
Nos últimos anos, o percentual da população sul-mato-grossense que vive na linha da extrema pobreza caiu de 4% (em 2021) para 2,7% (2022). Dados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), baseados na Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio), atribuem essa redução à “conjunção entre os programas de transferência de renda e o maior dinamismo do mercado de trabalho”.
A vida "no mínimo"
O salário-mínimo, que corresponde a R$ 1.518, tem sido vorazmente "engolido" pela inflação do preços dos alimentos, que corrói o poder de compra do trabalhador na hora de pôr comida na mesa. Conforme o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), Campo Grande foi a quinta capital brasileira onde o conjunto dos alimentos básicos apresentou o maior custo: R$ 788,58. Ou seja, metade do salário foi para custear a alimentação mínima.
A jornada de trabalho necessária para comprar uma cesta básica em março foi de 114 horas. Alimentos que compõem a pauta de exportação, como café e carne bovina, acumulam inflação expressiva. No caso da bebida, são meses consecutivos de alta, num total de 89,40% O valor da cesta básica para uma família com quatro pessoas, dois adultos e duas criança, é de R$ 2.365,74 , bem mais do que alcança um salário-mínimo.
Até ajudar ficou mais difícil
A alta nos preços dos alimentos impacta também na hora de fazer o bem, com a distribuição de alimentos.
Sinceramente, devido à alta do preço dos alimentos, diminuímos bastante a distribuição. Estamos tendo que selecionar quem está em situação de vulnerabilidade, mas sem nenhuma condição de trabalhar: por ser idoso, ter alguém doente/acamado na família ou ser mãe de recém-nascido sem algum auxílio ainda”, diz a empresária Roberta Monteiro, de 43 anos.
De acordo com ela, as doações caíram em 50%. “Infelizmente, as pessoas não estão mais conseguindo ajudar como antes, ajudam, mas em menor frequência”. Roberta faz trabalho voluntário em Campo Grande desde 2012. "Graças a Deus posso ajudar e tenho amigos que ajudam demais ".
Inflação movida a crise climática e dólar
O economista Eugênio Pavão afirma que a inflação dos alimentos resulta de fatores como questões climáticas, câmbio, tarifa e a preferência por produtos para exportação. De acordo com especialista, o clima influenciou os preços de vários produtos agrícolas. A seca teve impacto em itens como azeite, cacau e soja. Enquanto que a enchente fez com que a produção de arroz fosse fortemente afetada, causando redução da oferta e aumento de preços.
Já a alta do dólar, registrada entre fim de 2024 e início de 2025, provocou um duplo efeito: aumento das exportações de produtos brasileiros (carne e grãos) e aumento do custo da produção nacional (fertilizantes, defensivos e sementes). Outro componente foi a renda volumosa provocada pela queda do desemprego no fim de 2024, com o aquecimento da economia. A demanda por alimentos foi maior, o que provocou a inflação porque a demanda é maior do que a oferta.
Ainda houve a redução da agricultura familiar (que produz verduras, legumes, frutas), para aumentar a participação dos produtos exportáveis (como soja, açúcar). “Desta forma, a crise climática somada às mudanças macroeconômicas trouxeram um cenário de alta inflação de alimentos, o que reduz o poder de compra dos salários e renda, reduzindo a disponibilidade de recursos para outros fins, como educação e lazer”, afirma o economista.
De acordo com Pavão, a expectativa é de que a inflação tenha queda com a alta safra brasileira, junto com a política pública de redução de tributos federais. Contudo, a nova política tarifária americana deve fazer o dólar voltar a patamares altos, influenciando ainda a inflação nos próximos meses.
Nesse quadro de incertezas, o salário é a parte mais afetada, pois os reajustes são anualizados, não tem participação nos lucros”, destaca o economista Eugênio Pavão.
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