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Economia

Mãe, 7 filhos e renda de R$ 1.300: “tem mês que a gente passa sem comer mistura”

Alta dos preços dos alimentos devora o orçamento das famílias mais empobrecidas

Por Aline dos Santos e Gabi Cenciarelli | 07/04/2025 11:49
Mãe, 7 filhos e renda de R$ 1.300: “tem mês que a gente passa sem comer mistura”
 Silvana tem família grande, sete filhos, e renda de apenas R$ 1.300. (Foto: Gabi Cenciarelli)

A fome ronda o barraco de tábuas onde Silvana Jéssica, de 33 anos, mora com os sete filhos, no Jardim Centro-Oeste, em Campo Grande, na área popularmente conhecida como “invasão da Homex”. A família é grande, mas o orçamento é raquítico: R$ 1.300 por mês , advindos do Bolsa Família, programa do governo federal de transferência de renda.

RESUMO

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Silvana Jéssica, 33 anos, vive com seus sete filhos em um barraco de tábuas no Jardim Centro-Oeste, Campo Grande, com uma renda mensal de R$ 1.300 do Bolsa Família. A família enfrenta dificuldades para se alimentar, muitas vezes passando o mês sem proteína. O filho mais velho, autista, necessita de remédios que não estão disponíveis no SUS, aumentando os gastos. A situação é agravada pela falta de apoio do pai das crianças. Em Mato Grosso do Sul, 204.977 famílias são atendidas pelo Bolsa Família, mas a inflação e o alto custo dos alimentos tornam a sobrevivência um desafio diário para muitos, como Silvana e sua família.

“Tem mês que a gente fica sem comer nada de mistura, o mês inteiro. A gente tem que se virar. Peço para alguém da família, amigo. Os meus filhos têm o mesmo pai, que não paga pensão”, diz Silvana. As crianças têm idades de um mês, ainda no colo e totalmente dependente da mãe, a 14 anos.

Às vezes, não dá para fazer a compra, aí eu recebo de doação. É difícil. Principalmente porque meu mais velho tem autismo, tem médico, remédio”, conta Silvana.

Os R$ 400 que vão para a alimentação garantem o básico do básico. Ela já não consegue comprar as frutas que as crianças eram acostumadas a comer, vê com preocupação a escalada do preço do café e passa muitos dias sem saber o que é ter “mistura” no prato. Uma voluntária ajuda a família com doação de comida, a cesta de alimentos vem mês sim, mês não.

“E tem o remédio do meu guri. São mais R$ 100. No SUS [Sistema Único de Saúde] não tem. Até porque a escola exige que ele tenha acompanhamento, para se adaptar na sala. Porque meu guri é nível médio de autismo. Quando não tem o remédio, não tem como ir para escola. Tenho que gastar. Estou esperando há meses pela consulta com neuro e psiquiatra”, diz Silvana.

Mãe, 7 filhos e renda de R$ 1.300: “tem mês que a gente passa sem comer mistura”
Para economizar, Thainara só anda a pé, com o filho de 2 anos no colo. (Foto: Gabi Cenciarelli)

Thainara Sthepanie, de 25 anos, caminhava pelo bairro à procura de uma área onde pudesse erguer um lar provisório. A família é composta por ela, dois filhos crianças (2 e 8 anos) e o marido de 43 anos. Toda renda vem do Bolsa Família, que paga R$ 600.  Ela conta que o marido recebe um dinheiro extra com “bicos”. “Ele não consegue nada de carteira assinada. Então, faz diária de carpinteiro, servente de pedreiro”.  Para economizar, eles só andam a pé e o caçula vai no colo. A alimentação enfrenta restrições. “Comer mais ovo, né? Mas até o ovo tá lá em cima, tá lá na altura”, diz Thainara.

Mãe, 7 filhos e renda de R$ 1.300: “tem mês que a gente passa sem comer mistura”
Urbano depende de doações para ter comida no prato. (Foto: Gabi Cenciarelli)

Para ter comida no prato, Urbano Jorge Duarte, de 62 anos, depende  de doações. “Ganho um sacolão e, na igreja, me ajudam também”. Ele relata que teve o beneficio do Bolsa Família cortado e tudo que consegue fazendo “bicos” vai para pagar água, luz e, quando dá, uma comida diferente.

Faxina, serviço braçal, carpir terreno. Esse é meu ganha-pão. A mistura não é todo dia. Às vezes, faço uns R$ 20, R$ 30. Aí, eu compro. Minhas filhas me ajudam também e a gente vai levando desse jeito”, diz Urbano, que circula de bicicleta pela cidade.

Programas de transferência de renda

Mãe, 7 filhos e renda de R$ 1.300: “tem mês que a gente passa sem comer mistura”
Programas sociais ajudam a colocar comida nos barracos pela cidade. (Foto: Henrique Kawaminami)

Em Mato Grosso do Sul, 204.977 famílias são  atendidas pelo Bolsa Família. Conforme o balanço de 2024,  Campo Grande (52.834), Dourados (13.993) e Corumbá (10.173) lideram com o maior número de famílias beneficiadas. Na outra ponta, Paraíso das Águas é a que menos tem beneficiários: 229 atendidos.

Ainda de acordo com dados do governo federal, MS é o sétimo Estado com menor número de atendidos, ficando atrás de Roraima (81.577), Amapá (123.772), Acre (133.945), Rondônia (136.491), Tocantins (157.279) e Distrito Federal (175.434). Para ter direito ao Bolsa Família, a principal regra é que a renda de cada membro da família seja de, no máximo, R$ 218 por mês. O programa garante pagamento de R$ 142 por pessoa. Caso o valor final não alcance R$ 600, a diferença é paga por meio de benefício complementar.

Além disso, é adicionado mais R$ 150 a cada criança da família (com idade até 6 anos). Outros R$ 50 são adicionados para cada integrante que se enquadre nesses critérios: gestantes, nutrizes (quem amamenta), e quem tenha de 7 anos a 18 anos.

 O governo do Estado tem o programa Mais Social, que repassa auxílio financeiro de R$ 450 para as famílias em vulnerabilidade.  O dinheiro é destinado a alimentos, gás de cozinha e produtos de limpeza e de higiene. O projeto atende a 41,6 mil famílias. Após cruzamento de dados, a administração estadual também  busca por 17 mil pessoas "invisíveis".  A procura ativa é feita em todo o Estado. O cadastramento é para que eles tenham acesso aos R$ 450 do Mais Social, além de possibilitar a inserção em outros programas assistenciais.

Nos últimos anos, o  percentual da população sul-mato-grossense que vive na linha da extrema pobreza caiu de 4% (em 2021) para 2,7% (2022). Dados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), baseados na Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio), atribuem essa redução à “conjunção entre os programas de transferência de renda  e o maior dinamismo do mercado de trabalho”.

A vida "no mínimo" 

Mãe, 7 filhos e renda de R$ 1.300: “tem mês que a gente passa sem comer mistura”
Carne pesa no bolso e saiu do prato dos mais pobres. (Foto: Juliano Almeida)

O salário-mínimo, que corresponde a R$ 1.518, tem sido vorazmente "engolido" pela inflação do preços dos alimentos, que corrói o poder de compra do trabalhador na hora de pôr comida na mesa.  Conforme o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), Campo Grande foi a quinta capital brasileira  onde o conjunto dos alimentos básicos apresentou o maior custo: R$ 788,58. Ou seja, metade do salário foi para custear a alimentação mínima.

A jornada de trabalho necessária para comprar uma cesta básica em março foi de 114 horas. Alimentos que compõem a pauta de exportação, como café e carne bovina, acumulam inflação expressiva. No caso da bebida, são  meses consecutivos de alta, num total de 89,40% O valor da cesta básica para uma família com quatro pessoas, dois adultos e duas criança, é de R$ 2.365,74 , bem mais do que alcança um salário-mínimo.

Até ajudar ficou mais difícil 

Mãe, 7 filhos e renda de R$ 1.300: “tem mês que a gente passa sem comer mistura”
Roberta faz trabalho social desde 2012 e não parou nem na pandemia. (Foto: Henrique Kawaminami)

A alta nos preços dos alimentos impacta também na hora de fazer o bem, com a distribuição de alimentos.

Sinceramente, devido à alta do preço dos alimentos, diminuímos bastante a distribuição. Estamos tendo que selecionar quem está em situação de vulnerabilidade, mas sem nenhuma condição de trabalhar: por ser idoso, ter alguém doente/acamado na família ou ser mãe de recém-nascido sem algum auxílio ainda”, diz a empresária Roberta Monteiro, de 43 anos.

De acordo com ela, as doações caíram em 50%. “Infelizmente, as pessoas não estão mais conseguindo ajudar como antes, ajudam, mas em menor frequência”.  Roberta faz trabalho voluntário em Campo Grande desde 2012. "Graças a Deus posso ajudar e tenho amigos que ajudam demais ".

Mãe, 7 filhos e renda de R$ 1.300: “tem mês que a gente passa sem comer mistura”
Homem saca dinheiro em caixa eletrônico. (Foto: Arquivo)

Inflação movida a crise climática e dólar

O economista Eugênio Pavão afirma que a inflação dos alimentos resulta de fatores como questões climáticas, câmbio, tarifa e a preferência por produtos para exportação. De acordo com especialista,  o clima influenciou os preços de vários produtos agrícolas. A seca teve impacto em itens como azeite, cacau e soja. Enquanto que a enchente fez com que a produção de arroz fosse fortemente afetada, causando redução da oferta e aumento de preços.

Já a alta do dólar, registrada entre fim de 2024 e início de 2025, provocou um duplo efeito: aumento das exportações de produtos brasileiros (carne e grãos) e aumento do custo da produção nacional (fertilizantes, defensivos e sementes).  Outro componente foi a renda volumosa provocada pela queda do desemprego no fim de 2024, com o aquecimento da economia. A demanda por alimentos foi maior, o que provocou a inflação porque a demanda é maior do que a oferta.

Ainda houve a redução da agricultura familiar (que produz verduras, legumes, frutas), para aumentar a participação dos produtos exportáveis (como soja, açúcar). “Desta forma, a crise climática somada às mudanças macroeconômicas trouxeram um cenário de alta inflação de alimentos, o que reduz o poder de compra dos salários e renda, reduzindo a disponibilidade de recursos para outros fins, como educação  e lazer”, afirma o economista.

De acordo com Pavão, a expectativa é de que a inflação tenha queda com a alta safra brasileira, junto com a política pública de redução de tributos federais. Contudo, a nova política tarifária americana deve fazer o dólar voltar a patamares altos, influenciando ainda a inflação nos próximos meses.

Nesse quadro de incertezas, o salário é a parte mais afetada, pois os reajustes são anualizados, não tem participação nos lucros”, destaca o economista Eugênio Pavão.

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