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Arquitetura

Cem anos de um túmulo que muita gente nem desconfia de quem seja

Poucos temem que estrutura sobre o túmulo de uma pessoa importante para Campo Grande desabe a qualquer momento

Por Natália Olliver | 28/04/2025 07:15
Cem anos de um túmulo que muita gente nem desconfia de quem seja
Tatiane Penha é secretária da Associação Beneficente dos Descendentes de Tia Eva (Foto: Henrique Kawaminami)

“A gente fica sentido. Ela está enterrada ali, ela e o filho dela. É uma falta de respeito deixar desabar assim. É uma das igrejas mais antigas de Campo Grande. Depois de conseguir tudo isso, vão deixar a igreja correr água abaixo?”, questiona o casal Luzia de Arruda Silva e Sérgio Antônio.

As palavras acima são dos descendentes de Eva Maria de Jesus, ou melhor, Tia Eva. Assistir à igreja que ela lutou para erguer desmoronar, pouco a pouco, é como apagar a história de uma das fundadoras de Campo Grande para o povo quilombola. Prestes a se completarem 100 anos da morte da matriarca, seus descendentes veem, impotentes, a água corroer a construção. E temem pelo dia em que tudo venha abaixo, soterrando os restos de quem dedicou a vida inteira à comunidade. Temem, e com razão, que a queda aconteça antes que alguém tome coragem de agir.

O descaso, aliás, não é novidade. Um simples passeio pelo Google exibe uma lista nada pequena de reportagens antigas sobre os problemas estruturais da igreja na comunidade São Benedito. Entra ano, sai ano, e ninguém faz nada. É como se estivessem esperando cair, para enfim aparecerem lágrimas, homenagens e promessas vazias. De que adianta discurso bonito em evento oficial se, na prática, deixam o patrimônio apodrecer à vista de todos?

“É um descaso muito grande. Quando eu era criança, era outra igreja. Essa de agora passou por uma reforma, e, em toda a minha infância, a gente brincava naquele lugar. Hoje, na época dos meus filhos, eles não podem nem brincar na frente da igreja, porque ela pode cair”, lamenta Tatiane Penha, secretária da Associação Beneficente dos Descendentes de Tia Eva

“É uma desvalorização por ser patrimônio antigo e histórico. Não vemos a importância que os órgãos públicos têm de estarem preocupados em consertar. É falta de manutenção que não foi feita. Creio que as reformas de rua também influenciaram. Passavam as patrolas, movimento  é muito intenso de ônibus. Acho que isso abalou um pouco a estrutura da igreja”.

Cem anos de um túmulo que muita gente nem desconfia de quem seja
Sérgio Antônio e Luzia de Arruda Silva segurando a miniatura que guardam da igreja. (Foto: Henrique Kawaminami)

Apesar da vontade de ir até a frente da igreja, Sérgio e a esposa se resignam a mostrar a miniatura que guardam em casa, uma réplica silenciosa do que deveria ser símbolo de resistência e história. Com os joelhos já fragilizados, eles evitam o trajeto que, um dia, foi motivo de orgulho.

Para o descendente,  esse abandono é uma ferida aberta. “Eu acho que isso é um problema político. É porque eles não querem, porque o que gastaram para fazer o forro da escola, metade daria para construir ali. Depois de conseguir tudo isso, vão correr água abaixo?”, questiona, misturando indignação e tristeza.

Hoje com quase 90 anos,  Sérgio vive na comunidade desde a infância e é bisneto de Tia Eva. Acompanhou parte da história ser escrita por ela, esteve à frente da presidência da associação durante anos e lutou para que a memória da matriarca fosse preservada. Lutou, mas parece que a resistência de quem fez tanto pela cidade pesa menos que o desinteresse dos que deveriam proteger o patrimônio.

A esposa, Luzia, acrescenta que viveu anos bonitos durante as festas de São Benedito, celebradas na igreja. Este ano marca a 106ª edição da festividade, e o casal relembra como eram as primeiras celebrações no local. (Clique aqui para conferir.)

Cem anos de um túmulo que muita gente nem desconfia de quem seja
Descendentes da Tia Eva em frente a Igreja de São Benedito, símbolo da comunidade (Foto: Arquivo pessoal))

Como já dito, não é de hoje que a Igreja São Benedito, conhecida como Igrejinha da Tia Eva, enfrenta sérios problemas estruturais. Interditada pela primeira vez em maio de 2024 pela Defesa Civil, devido ao risco de desabamento do telhado, a igreja voltou a ser interditada em janeiro de 2025, agora, pelo risco de colapso total da estrutura. Enquanto isso, as obras de restauração seguem apenas no papel desde 2021.

Este ano, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul manteve a decisão que obriga o município de Campo Grande a realizar reparos emergenciais. Em março de 2025, escoras metálicas foram finalmente instaladas para evitar a tragédia anunciada. Um paliativo que tenta adiar o inevitável, enquanto a restauração completa da igreja e do entorno, estimada em R$ 2,6 milhões, continua no aguardo de prioridades que parecem nunca chegar.

O jornalista Guilherme Soares Dias, fundador da plataforma de afroturismo Guia Negro, também comenta sobre o estado crítico da igreja e alerta para o risco iminente: se nada for feito, o desabamento será inevitável, e a história de Tia Eva poderá ser soterrada junto.

“Se a gente não fizer nada nos próximos meses, ela vai cair. É uma rua por onde passam ônibus, e o estado está bem deplorável. Já tem um buraco aberto. Então, acho que a gente precisa entender que isso vai acontecer se não houver ação, e as autoridades precisam tomar uma medida urgente. Essa mulher foi benzedeira. Ela sabia ler e escrever, o que era algo grandioso para aquele momento. A gente precisa lembrar dela e honrar sua memória”, reforça.

Cem anos de um túmulo que muita gente nem desconfia de quem seja
Escoras metálicas foram instaladas através de corte nos forros (Foto/Reprodução)

Guilherme ainda explica que, nos séculos XVIII, XIX e início do século XX, era comum que pessoas consideradas nobres fossem enterradas nas igrejas. Apesar de Tia Eva não ser vista oficialmente como parte da nobreza, ela construiu a própria igreja, e isso, por si só, é um ato de grandeza histórica.

“Ela, quando faleceu, no começo da década de 1920, foi enterrada ali, e seu túmulo está identificado. Existe uma memória dela presente também nesses restos mortais. Ela precisa de novas homenagens. Já temos um grafite na Rua 14 de Julho, mas, se respeitássemos de verdade a história da Tia Eva, ela também teria um busto, como o do Zé Antônio Pereira na Avenida Afonso Pena. Ela teria mais protagonismo, e cenas como essa não estariam acontecendo”, afirma.

Para ele, Campo Grande deveria enxergar Tia Eva como um ícone, alguém cuja história precisa ser contada, celebrada e respeitada. A comunidade que ela fundou mereceria ser um ponto turístico, com lojinhas de lembranças e espaços dedicados a manter viva a história da matriarca.

“Essa benzedeira, essas bênçãos de Tia Eva, foram muito importantes e poderiam continuar sendo parte da identidade da cidade, com a cara de Campo Grande, com a imagem dela presente. Acho que Campo Grande está desperdiçando a chance de preservar, difundir e compartilhar uma das suas figuras mais importantes”, lamenta.

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Sérgio, em 2019, dentro da Igreja de São Benedito quando o local ainda estava aberto (Foto:  Heitor Salatiel)


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Cem anos de um túmulo que muita gente nem desconfia de quem seja
Local está interditado desde janeiro de 2025, devido ao risco de desabar (Foto: Natália Olliver)

A formação da Comunidade Quilombola Tia Eva está diretamente ligada à trajetória e ao protagonismo da matriarca. Tia Eva nasceu escravizada no interior de Goiás e só conquistou a liberdade quase 50 anos depois. No final do século XIX, migrou para o então Mato Grosso.

Aqui, trabalhou como curandeira, cozinheira, lavadeira, parteira e benzedeira, funções que não só sustentaram sua família, como também ajudaram a construir a identidade cultural da região.

Com recursos próprios, Tia Eva adquiriu as terras onde hoje está localizada a comunidade quilombola. Devota de São Benedito, construiu uma igreja dedicada ao santo como pagamento de uma promessa e iniciou a tradição da festa anual em homenagem ao padroeiro da comunidade.

Hoje, a igreja que carrega as raízes da fundação quilombola de Campo Grande segue ameaçada, sustentada por tubos metálicos e promessas vazias. Às vésperas de completar 100 anos da morte de Tia Eva, sobra a sensação amarga de que, para alguns, a história pode muito bem desabar, desde que isso não atrapalhe a próxima foto oficial ou a inauguração da próxima fachada "brilhante".

Procurada pela reportagem, a administração municipal não retornou até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestação e para o envio de informações sobre o início das obras de restauração.

Confira a galeria de imagens:

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