Seca deixa dívida milionária no campo e agro recorre à Justiça para não falir
Saída é renegociar prazos ou recorrer à recuperação judicial
Se na economia o agronegócio sempre vem embalado em boas notícias, o cenário no campo agora é da maior crise da década em Mato Grosso do Sul. O fator primordial foi a seca, que fez a soja “cozinhar” no pé. Mas o quadro ainda inclui a redução de crédito e maior taxa de juros. Há caso de grupo agropecuário em MS que deve R$ 54 milhões e entrou em recuperação judicial. A medida permite renegociar dívidas e evitar a falência.
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A seca severa em Mato Grosso do Sul tem causado a maior crise da década no agronegócio local, resultando em dívidas milionárias para produtores rurais. Em Sidrolândia, são 39 ações de prorrogação rural por quebra de safra, com casos de produtores que colheram apenas 13 sacas de soja por hectare, quando a expectativa era de 60 sacas. O cenário crítico é agravado pela redução de crédito e aumento das taxas de juros. Em Anastácio, um proprietário acumula dívida de R$ 50 milhões e entrou em recuperação judicial. O Banco do Brasil registra R$ 12,73 bilhões em atrasos superiores a 90 dias nos pagamentos do setor.
“Em 2025, os pedidos de recuperação judicial em Mato Grosso do Sul superam os 300% de aumento. Nós temos uma conjuntura em que o produtor fica a reboque do poder público. A gente não vê políticas públicas que efetivamente levam o produtor a ter um amparo, apesar do nosso PIB [Produto Interno Bruto] depender do agronegócio. O que sobra para o produtor é, justamente, se valer dos pedidos de recuperação judicial para conseguir criar uma conjuntura favorável e renegociar o passivo que ele vem amealhando ao longo dos anos. Em razão da seca histórica e do aumento do preço do crédito”, afirma o advogado Lucas Mochi.
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Especialista em recuperação judicial, Mochi destaca o cenário sem saída que surge para os produtores rurais, pois os bancos não aceitam negociar. “As instituições financeiras e cooperativas tentam fazer valer seu direito de receber o máximo possível, não sendo transigentes nas negociações prévias. O que acaba gerando a necessidade do produtor se valer do instrumento da recuperação judicial para equiparar as armas”, diz Mochi.
A penúria no campo é testemunhada pela advogada Carolina Daurea, do Escritório Daurea Advogados Associados. Há uma década ela atua nos setores de prorrogação rural e recuperação judicial, com cartela de centena de clientes em municípios produtores de grãos, como Sidrolândia, Maracaju, Naviraí, Miranda e Campo Grande.
“Somente em Sidrolândia, são 39 ações de prorrogação rural por quebra de safra. Não conseguiram colher o suficiente e as dívidas ficaram muito grandes”, diz a advogada.
Para entender a crise no agro, é preciso retroagir a 2020, quando começou a pandemia de covid. “A soja subiu e teve um boom, com financiamento de trator de R$ 800 mil, maquinário de R$ 1 milhão. Um arrendatário conseguia que o banco liberasse R$ 5 milhões, R$ 10 milhões. E hoje não libera mais. O produtor tem que ser proprietário da área e usar como garantia”, lembra Carolina.
Contudo, o fator primordial para a quebradeira foi a seca que assolou Mato Grosso do Sul. A advogada afirma que teve produtor de soja em Anastácio que viu 400 hectares de soja “cozinhar” no campo.
“A seca foi fator determinante. Tinha produtor que estimava colher 60 sacas por hectare e colheu 13 sacas. Está devendo até o diesel. A pessoa que não tem costume de dever para ninguém entra em parafuso. Tem cliente que devia R$ 280 mil e o valor já foi para um milhão”.
Neste contexto de dívidas, há fazendeiros que conseguem se capitalizar junto aos familiares e pagar os débitos. Para quem não pode recorrer a esse recurso, o caminho é procurar a prorrogação do prazo ou a recuperação judicial, quando o valor for muito alto.
Conforme a advogada, a prorrogação da dívida rural por quebra de safra após crise climática é amparada por súmula do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Já a recuperação judicial ainda é vista pelo setor com bastante reserva, pois uma empresa passa a administrar os negócios. Contudo, a medida, quando deferida pela Justiça, permite definir uma ordem para os pagamentos e acesso a crédito.
Ela estima que, em média, 40% dos produtores façam seguro da safra. Mas a burocracia para receber é longa, com caso em que o proprietário espera há dois anos o pagamento da seguradora.
A inadimplência do setor já é destaque nos números do Banco do Brasil, que registrou R$ 12,73 bilhões em atrasos de mais de 90 dias nos pagamentos. De acordo com o UOL, devendo na praça, o agro vem recorrendo cada vez mais às recuperações judiciais.
Ciclos da crise - Com pedido de recuperação judicial deferido em 15 de julho pelo juiz Márcio Rogério Alves, da 4ª Vara Cível de Três Lagoas, o Grupo Santa Lourdes, que existe desde 1993, em Anaurilândia, tem dívida de R$ 54 milhões. Na ação, a agropecuária detalha o ciclo do endividamento.
“Alegam que a crise teve início no ciclo 2021/2022, em razão de uma estiagem severa, onde produtividade do grupo caiu drasticamente, cerca de 65%; que no ciclo de 2022/2023, o cenário financeiro permaneceu adverso, agravado pela perda de cultivo ocasionado por um ataque severo de cigarrinhas e a retração nos preços das commodities; que na safra 2023/2024 novamente foram registradas severas estiagens, dando início a um ciclo de dificuldades relacionadas à insuficiência de capital de giro”.
O remédio foi recorrer a instituições financeiras e manter o mínimo necessário para a manutenção das operações.
“O Grupo Santa Lourdes, que concentra suas atividades na região Sudeste de Mato Grosso do Sul, chama a atenção pela clareza com que reflete a vulnerabilidade do produtor rural brasileiro diante de choques climáticos, econômicos e financeiros. No processo, a dívida concursal declarada alcança R$ 25,6 milhões, mas, considerando o passivo extraconcursal, o valor sobe para aproximadamente R$ 54 milhões”, afirma o advogado Daniel Amaral, sócio do Escritório Deneszczuk, Antonio e Amaral, que representa o grupo agropecuário no pedido de recuperação judicial.
Na safra 2021 e 2022, a colheita passou de 55 sacas de soja por hectare para 20 sacas. "Inviabilizando o retorno financeiro. Dois anos depois, quando se esperava recuperação, a seca voltou ainda mais intensa, derrubando novamente os resultados, desta vez para uma média de 32 sacas por hectare", enfatiza Daniel.
O advogado Carlos Deneszczuk destaca que o agronegócio tem sofrido com a alta dos custos de produção e a retração do crédito. "Muitos produtores se veem diante de uma equação inviável: dívidas caras e receitas cada vez mais apertadas. A recuperação judicial surge, nesse contexto, como o único caminho para reorganizar as finanças sem paralisar a atividade”.
Advogado e sócio da administradora judicial WBN, Jayme da Silva Neves Neto afirma que há aumento significativo de pedidos de recuperação.
“A recuperação judicial é um meio processual onde a empresa em crise busca a manutenção das atividades, empregos, recolhimentos de tributos. Uma vez deferido o processamento pelo juiz, os credores vão aprovar ou não o plano de recuperação. Acaba sendo, nesta fase, um grande processo de negociação entre credores e devedores, de forma conjunta. Se rejeitado o plano, daí sim vai para falência. Então, quem tem o poder de aprovar ou não o plano, são os credores, na assembleia geral”.
Tempestade perfeita – De acordo com o administrador e especialista em comércio internacional, Aldo Barrigosse, a inadimplência no agronegócio não é um problema isolado, mas reflexo de uma tempestade perfeita que afeta a rentabilidade do produtor rural.
“A conjunção de condições climáticas extremas e a volatilidade dos preços das commodities minam a receita, enquanto o custo elevado de insumos e o peso crescente do capital de giro aumentam os custos de produção e o peso das dívidas. A escalada da taxa básica de juros, em particular, funciona como um catalisador de crise. Ao encarecer o crédito rural, essa elevação não apenas torna os novos financiamentos mais onerosos, mas também pressiona o custo da dívida já existente, corroendo a capacidade de pagamento do produtor em um momento de margens já apertadas”.
Inadimplência no agro - Segundo a Famasul (Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul), os produtores do Estado têm enfrentado grandes desafios nas últimas safras.
"A escassez de chuvas nos momentos essenciais das culturas afetou fortemente a produtividade nas últimas três safras. A instabilidade geopolítica que ocorre de maneira crescente desde 2022, quando se iniciou a guerra entre Rússia e Ucrânia, contribuiu para o aumento dos custos dos insumos e fertilizantes. Além disso, o aumento da taxa básica de juros nacional fez com que o crédito rural encarecesse em demasia. Juntos, esses três fatores têm grande influência no aumento de inadimplência no setor do agro", diz o presidente da federação, Marcelo Bertoni.
O diagnóstico econômico também passa pelas condições climáticas. Conforme a Famasul, o Estado registrou fortes quebras nas safras de soja e milho devido a estiagens, calor intenso, geadas e fenômenos climáticos como El Niño e La Niña.
"A produção de milho caiu 12,67% em 2019/2020 e 38,55% em 2020/2021, enquanto a soja recuou 34,7% em 2021/2022 e 17,2% em 2023/2024. Vale ressaltar que, segundo o Banco Central, a inadimplência do crédito rural, em nível Brasil, com taxas reguladas, permanece em média a 0,9%, apresentando redução de 4,58% nos últimos dez anos. Por outro lado, no crédito com taxas de mercado, a inadimplência chega a 6,2%, registrando um incremento no mesmo período".
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