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Meio Ambiente

Pantanal caminha para o fim, com 97% de terras privadas e 82% menos água

Pesquisa aponta aumento de pastagens, novos "pantaneiros" e pecuária moderna empurrando o bioma para o colapso

Por Vasconcelo Quadros, de Brasília | 05/12/2025 13:34
Pantanal caminha para o fim, com 97% de terras privadas e 82% menos água
Trabalho de campo realizado no dia 28 de setembro de 2023 (Foto: Reprodução)

“Acho que o Pantanal acaba até 2070.” O alerta do climatologista Carlos Nobre ecoa no centro de uma pesquisa recém-publicada em formato de artigo acadêmico na revista Campo-Território: Revista de Geografia Agrária, assinada pelos geógrafos Danilo Souza Melo, Marcelo Ribeiro de Mendonça e Sedeval Nardoque, todos vinculados à Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

RESUMO

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O Pantanal enfrenta uma grave crise ambiental, com 97% de suas terras em mãos privadas e redução de 82% dos corpos d'água nas últimas quatro décadas. Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul revela que as queimadas no bioma são resultado direto da concentração fundiária e do avanço da pecuária capitalista. Entre 1985 e 2023, as áreas de pastagem quadruplicaram, enquanto o rebanho bovino cresceu mais de 40%. Cerca de 95% dos focos de incêndio registrados em 2024 tiveram origem em propriedades privadas, com evidências de ações criminosas. Especialistas alertam que, mantido este cenário, o bioma pode desaparecer até 2070.

O trabalho identifica as causas estruturais por trás das queimadas que têm devastado o bioma e sustenta, com base em dados do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), MapBiomas (Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do Solo do Brasil), IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que o fogo no Pantanal não é fenômeno natural, mas resultado direto da combinação entre concentração fundiária, avanço da pecuária capitalista, aumento de pastagens sobre vegetação nativa, redução drástica dos corpos d’água e uso recorrente de incêndios para converter áreas e consolidar a ocupação da terra.

Em menos de quatro décadas, as pastagens quadruplicaram, o rebanho bovino aumentou mais de 40% e a água desapareceu em mais de 80% da superfície mapeada. Enquanto isso, 97% do bioma está hoje em mãos privadas; um punhado de grandes propriedades domina áreas equivalentes às terras públicas; quase metade das queimadas é atribuída a fazendas específicas; e mais de 3,7 milhões de hectares mudaram de dono em apenas três anos — no mesmo período em que surgiram 43 milhões de hectares como “novos imóveis” nos registros do INCRA. O resultado material desse processo são incêndios frequentes, grilagem, desmatamento acelerado e um bioma fragilizado sendo empurrado para o ponto de ruptura.

Transformação do uso do solo e avanço da pecuária

Pantanal caminha para o fim, com 97% de terras privadas e 82% menos água

Mais que extremos climáticos e ciclos de seca, o levantamento evidencia um tripé que reorganiza a paisagem e alimenta a devastação: mudanças no uso do solo, com pastagens cultivadas substituindo a vegetação nativa; migração de pecuaristas vindos de outras regiões, inclusive de áreas cedidas ao eucalipto no Vale da Celulose; e um mercado de terras aquecido, com forte valorização imobiliária, grandes transferências de titularidade e explosão do rebanho bovino.

No centro da disputa territorial, o estudo identifica um conflito estrutural entre interesses privados — baseados na captura da terra pelos mercados imobiliário e financeiro — e a própria função pública e ambiental do bioma, historicamente ligada às comunidades tradicionais e ao equilíbrio hídrico da planície.

Os dados sistematizados pelos autores demonstram a velocidade da conversão. Entre 1985 e 2023, as áreas de pastagem saltaram de 689,8 mil hectares para 2,51 milhões. No mesmo intervalo, os corpos d’água — marca fundamental do Pantanal — encolheram de 3,23 milhões para 559 mil hectares, uma redução superior a 82%.

Em paralelo, os censos agropecuários mostram a escalada do gado: entre 1995 e 2017, o rebanho cresceu 43% no Pantanal de Mato Grosso (de 2,39 milhões para 3,44 milhões de cabeças) e 25% no Pantanal sul-mato-grossense (de 3,97 milhões para 4,96 milhões). Esse movimento se concentra em municípios como Corumbá, Aquidauana, Miranda e Porto Murtinho (MS), e Cáceres, Barão de Melgaço, Porto Esperidião e Santo Antônio do Leverger (MT), exatamente os pontos em que o MapBiomas registra algumas das maiores frequências de queimadas, com áreas atingidas até 39 vezes desde 1985.

Incêndios provocados e responsabilização

Pantanal caminha para o fim, com 97% de terras privadas e 82% menos água

A pesquisa afasta leituras que atribuem as queimadas a fenômenos climáticos isolados. Cerca de 95% dos focos registrados em 2024 tiveram origem em propriedades privadas, sem sinais relevantes de ignição natural. Laudos da Polícia Federal sobre os incêndios de 2020 identificaram que o fogo começou em quatro fazendas de Mato Grosso do Sul, com mensagens de celular instruindo pontos estratégicos fora de rotas fiscalizadas. Um relatório do Ministério Público mapeou 239 pontos de ignição, sendo 120 distribuídos por 90 propriedades rurais.

Em Corumbá, onde mais de 30 mil hectares foram queimados, a Operação “Arraial São João” apura crimes ambientais, grilagem, fraudes e associação criminosa. Levantamentos citados no estudo atribuem quase metade da área devastada a cinco fazendeiros, uma empresa de logística e uma construtora — incluindo um incêndio que destruiu 339 mil hectares, superfície superior a duas vezes a cidade de São Paulo.

Reportagens amparadas em dados do Ibama, citadas nas referências da pesquisa, identificam cinco fazendeiros e duas empresas como responsáveis por quase metade da área queimada no município de Corumbá (MS) em 2024 — o segundo mais incendiado do país. Segundo o Ibama, Ademir Aparecido de Jesus, vinculado à Fazenda Vitória, e o advogado e pecuarista Luiz Gustavo Battaglin Maciel, da Fazenda Astúrias, receberam multas de R$ 50 milhões cada, após serem responsabilizados por um incêndio que devastou 339 mil hectares do Pantanal, atingindo outras 135 propriedades rurais.

Também foram autuados Armando Pereira Ferreira, da Fazenda Nossa Senhora de Fátima (R$ 10,6 milhões), Dendry Nery Oliveira Azambuja, da Fazenda Nixinica (R$ 1,05 milhão), e Felizardo do Carmo Filho, da Fazenda Mamoeiro (R$ 1,01 milhão), todos relacionados a queimadas que, somadas, alcançam cerca de 360 mil hectares. Também foram responsabilizadas a Rumo Malha Oeste S.A., gigante da logística ferroviária, e a Trill Construtora Ltda., ambas autuadas em R$ 50 milhões cada após um incêndio provocado durante obras de manutenção de trilhos, que consumiu quase 18 mil hectares do Pantanal, também em Corumbá.

Concentração fundiária e grilagem

O artigo desnuda também o eixo fundiário da crise: 97% do Pantanal pertence a particulares e apenas 3% ao poder público. As pequenas propriedades (até 500 ha) são maioria em número, mas ocupam frações mínimas: 16% da área em MT e 5% em MS. Na outra ponta, 1% dos imóveis em MT e 2% em MS, todos acima de 10 mil hectares, controlam entre 32% e 41% da área total.

Pelo critério legal de latifúndio (mais de 600 módulos fiscais), o Pantanal abriga 15 imóveis, que somam 663 mil hectares — algo como 4,5% do bioma. E um dado eloquente, indicando reconcentração fundiária: apenas 12 propriedades privadas possuem área maior que todas as terras públicas do Pantanal somadas.

A partir de 2019, essa fotografia se acelera. Utilizando o sistema de monitoramento conhecido como Land Tracking, os autores identificaram a mudança de titularidade de mais de 3,7 milhões de hectares entre 2019 e 2022, com picos em 2020 e 2022 — os mesmos anos da explosão de incêndios e salto no desmatamento. Corumbá lidera com 1,03 milhão de hectares transferidos, seguida por Barão de Melgaço (427,9 mil).

No mesmo período, surgiram 43,3 milhões de hectares como “novos imóveis” nos registros do INCRA, em volume que levanta hipóteses de “beliche fundiário” e sobreposição de títulos. Em Corumbá, Aquidauana, Porto Murtinho e Coxim, a área de imóveis “novos” se aproxima — ou supera — as dimensões oficiais dos municípios. Para o estudo, trata-se de sintoma clássico de grilagem e incorporação de terras públicas ao circuito privado.

Veja mapa da mudança de titularidade:

Pantanal caminha para o fim, com 97% de terras privadas e 82% menos água

Bioma sob lógica de mercado

Foi-se a pecuária tradicional, com seu gado magro e pequeno, mas que garantia renda de antigos proprietários e de peões pantaneiros. Na arquitetura interpretativa dos geógrafos da UFMS, o Pantanal deixou de ser território de vida, manejo comum e pecuária pantaneira para se converter em espaço de reprodução ampliada do capital. A terra vira ativo financeiro, reserva patrimonial e instrumento de acumulação. Nessa lógica, incêndios e desmate passam a ser métodos de conversão territorial — aceleradores econômicos mais do que tragédias ambientais.

Para além de abrir pasto, o fogo desencadeia um ciclo de degradação sistêmica: empobrece o solo, afeta a dinâmica hídrica da planície alagável, compromete fauna e flora e altera os processos de regeneração. Sem uma política de recursos hídricos específica e consistente com a natureza sazonal do Pantanal, advertem os autores, o bioma perde a própria base que o sustenta.

O estudo destaca que as causas não se limitam à ação privada. A fragilidade regulatória, a baixa capacidade de fiscalização e o desentrosamento entre órgãos ambientais, forças policiais e entes federativos criam um cenário de permissividade que favorece incêndios, desmatamento e grilagem. Diante da debilidade institucional, dos recursos escassos e da sobreposição de interesses econômicos, o Pantanal permanece vulnerável, com as populações tradicionais expostas aos impactos de um território que se torna mercadoria — e não casa.

Ao fim, a síntese acadêmica elaborada por Melo, Mendonça e Nardoque não deixa margem para interpretações conciliadoras: enquanto o Pantanal seguir preso à lógica fundiária concentrada, ao fogo como ferramenta de expansão e ao rentismo como motor econômico, o bioma caminha para um desfecho irreversível. E a imagem que resta, na secura extrema e na repetição de cinzas, é a de uma planície onde, como dizem os antigos pantaneiros, talvez “não sobre sequer um arbusto para a anta coçar as costas.”