“O trabalho infantil é porta de entrada para outras violações”, diz chefe do MPT
Cândice Gabriela Arosio denuncia romantização do trabalho infantil e cobra políticas públicas
RESUMO
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O trabalho infantil ainda é tratado com naturalidade por parte da sociedade brasileira, alerta a procuradora-chefe do Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul, Cândice Gabriela Arosio. Segundo ela, existe uma romantização do trabalho precoce que prejudica o combate a essa violação de direitos. A procuradora destaca que o trabalho só é permitido a partir dos 16 anos no Brasil, com exceção da condição de aprendiz aos 14 anos. O MPT recebe dezenas de denúncias de exploração infantil e busca parcerias com estabelecimentos comerciais para coibir a prática, que pode levar ao abandono escolar, acidentes e outras formas de violência.
O trabalho infantil ainda é tratado com naturalidade por boa parte da sociedade brasileira. E isso, segundo a procuradora-chefe do Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul, Cândice Gabriela Arosio, é parte do problema. “As pessoas enxergam a criança trabalhando como alguém que está aprendendo, ajudando. Mas isso é uma violação de direitos. O trabalho infantil não ensina responsabilidade, ele antecipa sofrimento”, afirmou.
A declaração foi dada no podcast Na Íntegra, do Campo Grande News, em episódio especial que discutiu não só o tema do mês — o combate ao trabalho infantil —, mas também a lógica do trabalho como estruturador da vida em sociedade. Durante mais de 40 minutos de conversa com o jornalista Lucas Mamédio, a procuradora abordou desde questões legais até mitos culturais, passando por vivências pessoais e dilemas institucionais.
“Existe uma romantização muito grande do trabalho precoce. A frase que a gente mais ouve é: ‘Eu comecei a trabalhar com 12 anos e não morri’. Mas não é sobre isso. É sobre o que essa criança deixou de viver, sobre o que ela sofreu, sobre os traumas que talvez nem saiba que carrega.”
"Você deixaria sua filha fazer isso?" - O ponto de partida da conversa foi um exemplo vivido por Lucas. Em um aniversário de família, ao ver uma criança vendendo balas na rua, um parente tentou justificar a cena como algo positivo. “Eu perguntei: você deixaria sua filha fazer isso? Ele respondeu que não precisava. E aí está o ponto. Nenhuma criança deveria precisar.”
Cândice concordou e disse que esse tipo de fala é comum. “Muita gente acha que está tudo bem porque ‘é melhor do que estar roubando’. Mas isso é um discurso perigoso. A criança que trabalha está sendo violada nos seus direitos. E muitas vezes, não está sozinha — tem um adulto escondido atrás da árvore esperando ela fazer a volta”, relatou.
Segundo a procuradora, o Ministério Público do Trabalho recebe dezenas de denúncias envolvendo crianças em situação de exploração comercial e tem buscado parcerias com estabelecimentos para coibir a prática. “Não se trata de criminalizar os comerciantes, mas de torná-los aliados. Estamos construindo termos de cooperação com bares e restaurantes, por exemplo, para que se comprometam a não permitir esse tipo de atividade.”
Infância não é fase de produção - Ao falar sobre a legislação, Cândice explicou de forma objetiva o que é permitido e o que configura infração. “No Brasil, o trabalho só é permitido a partir dos 16 anos. Antes disso, só na condição de aprendiz, a partir dos 14, com um contrato formal que tem como foco a formação profissional, não a atividade econômica.”
Ela enfatizou que a infância é uma fase de formação, não de produção. “Criança tem que brincar, estudar, conviver, se desenvolver. Se você coloca uma criança para circular vendendo coisa, você tira dela tudo isso.”
Violência velada e ciclo de pobreza - Para além do sofrimento individual, Cândice alertou que o trabalho infantil é porta de entrada para outras violações. “Abandono escolar, acidentes, abuso sexual, cooptação pelo tráfico. Uma criança na rua está vulnerável a tudo isso.”
Ela pontuou que a violação muitas vezes se esconde sob a aparência de necessidade. “As famílias dizem: 'ele está ajudando em casa’. Mas quem deve prover são os adultos. A infância não pode ser trocada por um par de tênis ou um celular.”
Segundo a procuradora, o problema é ainda mais complexo no interior e em zonas rurais, onde práticas antigas são naturalizadas. “Vendia picolé, ajudava no sítio, fazia salgadinho… as pessoas acham isso normal. Mas o fato de sempre ter existido não torna certo.”
Trabalho escravo ainda existe em MS - Outro tema tratado com ênfase foi o trabalho análogo à escravidão. Segundo Cândice, o Mato Grosso do Sul registrou quase 90 pessoas resgatadas nessa condição em 2024. A maior parte dos casos ocorre em propriedades rurais, onde os trabalhadores ficam alojados sem estrutura, salário ou liberdade.
“Não é a escravidão do Brasil Colônia, mas é tão cruel quanto. A pessoa vive em condições degradantes, sem água, sem comida, sem salário. Trabalha para pagar a própria bota, o próprio facão, a comida da vendinha. Quando vê, está devendo mais do que ganha. Isso prende o trabalhador numa falsa liberdade.”
A procuradora disse que muitos empresários ainda tratam trabalhadores como peças. “A lógica do lucro acima de tudo desumaniza. Tem patrão que não vê o outro como pessoa, mas como mão de obra substituível. Isso vale para a fazenda e para a redação de um jornal.”
Educação é a única saída - Apesar das denúncias e desafios, Cândice acredita que há uma saída — e ela passa pela educação. “Só há uma forma de romper o ciclo de miséria: garantir escola de qualidade, atividades no contraturno, lazer, esporte e qualificação.”
Ela explicou que o MPT não atua apenas como órgão fiscalizador, mas como articulador de políticas públicas. “A gente não quer apontar o dedo para pais e mães. Todo mundo é, de alguma forma, vítima. O que queremos é garantir que as crianças tenham alternativas.”
Um olhar sobre o futuro - Ao fim da conversa, Lucas levantou a discussão sobre como o trabalho estrutura a identidade das pessoas — e o peso de uma sociedade baseada no desempenho constante. “Trabalhar muito virou um orgulho, mas também uma armadilha. Parece que o tempo todo a gente tem que produzir, render, entregar. E não sobra nada para descansar.”
Cândice concordou. “A gente precisa falar mais sobre saúde mental, sobre o direito à desconexão. A gente não nasceu para ser máquina. O trabalho tem que trazer dignidade, não adoecimento.”
Canais de denúncia - Denúncias podem ser feitas pelo site do MPT (www.mpt.mp.br), pelo telefone (67) 3358-3000 ou pelo Instagram @mpt_ms. Em Mato Grosso do Sul, o órgão possui unidades em Campo Grande, Dourados e Três Lagoas.