Morte de Sophia comoveu a todos, forçou pai ao luto em público, mas mudou algo?
Pai da menina de 2 anos e 7 meses vítima de violência doméstica tenta ressignificar a vida todos os dias
Era uma noite de quinta-feira, 26 de janeiro, quando começou a circular no WhatsApp a notícia de que uma menina de apenas 2 anos e 7 meses chegou morta na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) do Bairro Coronel Antonino com marcas de violência pelo corpo e suspeita de estupro. Ouvir algo assim deixa qualquer pessoa consternada. Jean Carlos Ocampos, aos 27 anos, precisou viver isso na pele, reconhecer o corpo da filha, todo machucado, e entrar em um redemoinho que tornou sua vida pública e o obriga a viver um longo luto diante de todos.
A morte de Sophia, uma menina linda, com cabelo fininho, sorriso doce e olhinhos que transbordavam alegria, emoldurados por cílios grandes, nos mostrou uma rede cheia de falhas e que não a protegeu, mesmo diante de tantas leis modernas criando protocolos. A mãe e o padrasto seguem presos desde então.
Eu havia voltado ao jornalismo naquela semana, após 15 anos dedicados ao direito, e foi por essa conexão que entrei na cobertura do caso. Primeiro escrevi o relato comovido de Janice Andrade, que depois se tornou advogada de Jean e o companheiro dele, Igor Andrade. No dia seguinte ao crime, ela postou um vídeo chorando, em que contava ter visto os dois com Sophia na DEPCA (Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente), meses antes, com a perna engessada e o segundo registro de violência doméstica, e lamentava as falhas na proteção à pequena.
Três dias depois, entorpecidos, Jean e Igor me contavam sobre a breve e rica presença de Sophia na vida dos dois. Os dias se tornaram cinzas, relataram à época. O casal não conseguiu voltar pra casa por dias. As lembranças estavam por todos os cantos. A vida deles se tornou pública e a dor também.
Onze meses depois reencontro Jean, novamente na casa de Janice. Durante o ano, o acompanhamento do caso ficou a cargo das colegas que fazem a cobertura de polícia e me dediquei a escrever sobre a estrutura dos serviços de atendimento às crianças e adolescentes. Pedi à chefia para escrever sobre essa restrospectiva, porque o caso me marcou muito. Dei um longo abraço em Jean, único gesto que se pode dar a alguém que sofreu tanto. E Jean segue sofrendo.
Ele conta que convivem com uma ausência “que nos mata todos os dias”. Lembra que todos seus movimentos eram em torno da filha, o trabalho para criar condições, os momentos juntos quando ele a recebia da mãe, que tinha a guarda. Os dias eram de alegria, brincadeiras, tinham uma caixa de som e microfone e Sophia adorava cantar. As fotos que ele me mostra, cheias de cores e sorrisos, revelam esse cotidiano feliz.
Essa é uma das coisas que ele tenta voltar a fazer, em busca de se ressignificar. Jean precisou de apoio psicológico e psiquiátrico para lidar com essa dor sem nome. Pediu ajuda após meses entorpecido. Não tinha vontade de fazer nada, nem de sair da cama.
“A gente que é pai, tudo que vamos fazer é para o nosso filho, desde trabalhar, passear. Você planeja, sabe, você planeja o bem-estar do seu filho e de repente não tem mais”, desabafa Jean.
Mas ele precisava viver, se movimentar e criar um legado depois da tragédia da perda. E Jean precisou sair de uma vida discreta, alheia às redes sociais, e ocupar um espaço público. O assassinato da criança desencadeou um debate que ainda não se encerrou, sobre a necessidade de a rede de proteção ser eficiente em seus vários serviços.
“A morte da Sophia foi uma forma de gritar socorro, socorro para essas crianças, as pessoas que passam as mesmas dificuldades que eu e Igor passamos”, compara, lamentando ter precisado sofrer a perda trágica para que um debate tão urgente ocorresse. Jean foi à Câmara de Vereadores contar sua via crucis para ficar com a filha diante de um plenário lotado. Ele registrou boletins de ocorrência, foi ao Conselho Tutelar, à Defensoria Pública. Quando Sophia morreu, contou que só não tinha tomado a criança pra si porque sabia que era crime. Ficava com ela alguns dias e a entregava, mesmo com o choro resistente dela.
Também foi a São Paulo expor seu relato a um fórum sobre a proteção à criança; o chamado Caso Sophia virou reportagens em muitos veículos nacionais.
Rede de proteção – Expor as falhas da rede tornou-se pauta constante da imprensa desde então. A Polícia Civil ampliou o atendimento especializado para o horário noturno, finais de semana e feriados, que antes eram feitos nos plantões comuns das delegacias, também foram feitos cursos para qualificar policiais em ouvir um depoimento especial de crianças e adolescentes, para tentar assegurar a prova de crimes, uma preocupação prevista em lei, para definir o procedimento e evitar a perda dos fatos e a revitimização. A Secretaria de Justiça e Segurança Pública termina o ano com uma área doada pela União para criar um centro especial, a exemplo da Casa da Mulher Brasileira, e promessa de licitar a obra nos próximos meses.
O Conselho Tutelar foi o serviço mais cobrado, já que tinha sido procurado mais de uma vez por Jean e é a porta de entrada de relatos de violação de direitos. A eleição de membros, em outubro deste ano, mostrou que a morte de Sophia estava na memória das pessoas. Jean foi votar, disse que muitas pessoas foram até ele na fila e diziam que estavam ali por causa da menina, que se comoveram com a dor dele. “Foi surreal”, comentou.
A participação popular quase dobrou, embora ainda seja pequena, com 36,5 mil votos. Poucos comparecem, por não ser uma votação obrigatória, muita gente sequer conhece o trabalho dos conselheiros. Mas o ano termina ainda com o serviço insuficiente. A Justiça determinou em agosto a criação de mais três unidades e estruturação das demais, obrigação para a Prefeitura implementar.
A solidariedade das pessoas sensibiliza Jean. “Por um lado, eu fico feliz, mas por outro, eu penso assim- porque minha filha? Porquê teve que acontecer tudo isso com minha filha para mudar alguma coisa? A votação, a cobrança de ampliar a estrutura do conselho tutelar, se era sabido que a necessidade é antiga.”
Frente a frente - Na tarefa de todo dia empilhar um tijolinho, como Jean compara a tarefa de ressignificar sua vida, ele se deparou com a necessidade de ir ao Tribunal do Júri e ver de frente a ex-mulher, Stephanie de Jesus da Silva, e Christian Campoçano Leithein, réus pela morte de Sophia.
Ele participou de duas audiências, junto com Igor. Mais difícil foi ver a ex, com quem conviveu por seis anos. Considera que encarar essa dor e mostrar que o protagonismo deve ser dele e não dos acusados nesse caso é um pilar para sua superação. Os dois seguem presos, foram pronunciados pela Justiça e serão levados a júri popular em março. Ele por homicídio e estupro, ela por homicídio.
Além de ficarem de frente com os réus, Jean e Igor também precisaram enfrentar ataques em redes sociais e a homofobia. Alguns, foram denunciados à polícia. A situação só amenizou depois que vieram à tona provas de que Sophia era vítima de violência, a partir de trocas de mensagens de celular entre Stephanie e Christian. Por outro lado, Jean também relatou muito acolhimento e palavras de apoio nas redes, vindos de pessoas que não conhece.
O pai da menina e Janice atribuem ao conservadorismo, até mesmo impulsionado por fundamentalismo religioso. Jean diz que muitos tentaram esconder isso atrás de opinião, quando se trata de preconceito.
Transformar o luto – O fim de ano de Jean será o primeiro sem Sophia. Ele e Igor não farão festa, não terá o karaokê, como ela gostava. Jean seguirá em seu esforço de transformar luto em luta. Em tempo de renovação de expectativas, ele, que perdeu o bem mais precioso e não se vê vivenciando a paternidade de novo, diz alentar um desejo. Quer ver a condenação do casal e os serviços de proteção às crianças funcionando. “É um desejo do meu coração.”
A dor não vai sumir, ele sabe, mas vai amenizar. “A minha ferida tá com uma casquinha, ela não cicatriza. Eu vejo que, não sei como, é uma força maior que me ajuda, pode ser a própria Sophia mesmo.”
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