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Reportagens Especiais

Morte de Sophia comoveu a todos, forçou pai ao luto em público, mas mudou algo?

Pai da menina de 2 anos e 7 meses vítima de violência doméstica tenta ressignificar a vida todos os dias

Por Maristela Brunetto | 29/12/2023 06:23
Campo Grande News - Conteúdo de Verdade
Igor e Jean e a pequena Sophia, a alegria e presença roubadas de forma violenta (Foto: Arquivo pessoal)
Igor e Jean e a pequena Sophia, a alegria e presença roubadas de forma violenta (Foto: Arquivo pessoal)

Era uma noite de quinta-feira, 26 de janeiro, quando começou a circular no WhatsApp a notícia de que uma menina de apenas 2 anos e 7 meses chegou morta na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) do Bairro Coronel Antonino com marcas de violência pelo corpo e suspeita de estupro. Ouvir algo assim deixa qualquer pessoa consternada. Jean Carlos Ocampos, aos 27 anos, precisou viver isso na pele, reconhecer o corpo da filha, todo machucado, e entrar em um redemoinho que tornou sua vida pública e o obriga a viver um longo luto diante de todos.

A morte de Sophia, uma menina linda, com cabelo fininho, sorriso doce e olhinhos que transbordavam alegria, emoldurados por cílios grandes, nos mostrou uma rede cheia de falhas e que não a protegeu, mesmo diante de tantas leis modernas criando protocolos. A mãe e o padrasto seguem presos desde então.

Eu havia voltado ao jornalismo naquela semana, após 15 anos dedicados ao direito, e foi por essa conexão que entrei na cobertura do caso. Primeiro escrevi o relato comovido de Janice Andrade, que depois se tornou advogada de Jean e o companheiro dele, Igor Andrade. No dia seguinte ao crime, ela postou um vídeo chorando, em que contava ter visto os dois com Sophia na DEPCA (Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente), meses antes, com a perna engessada e o segundo registro de violência doméstica, e lamentava as falhas na proteção à pequena.

Três dias depois, entorpecidos, Jean e Igor me contavam sobre a breve e rica presença de Sophia na vida dos dois. Os dias se tornaram cinzas, relataram à época. O casal não conseguiu voltar pra casa por dias. As lembranças estavam por todos os cantos. A vida deles se tornou pública e a dor também.

Onze meses depois reencontro Jean, novamente na casa de Janice. Durante o ano, o acompanhamento do caso ficou a cargo das colegas que fazem a cobertura de polícia e me dediquei a escrever sobre a estrutura dos serviços de atendimento às crianças e adolescentes. Pedi à chefia para escrever sobre essa restrospectiva, porque o caso me marcou muito. Dei um longo abraço em Jean, único gesto que se pode dar a alguém que sofreu tanto. E Jean segue sofrendo.

Jean e a filha, em um dos vários registros que ele tem para relembrar dos momentos de alegria com a pequena
Jean e a filha, em um dos vários registros que ele tem para relembrar dos momentos de alegria com a pequena

Ele conta que convivem com uma ausência “que nos mata todos os dias”. Lembra que todos seus movimentos eram em torno da filha, o trabalho para criar condições, os momentos juntos quando ele a recebia da mãe, que tinha a guarda. Os dias eram de alegria, brincadeiras, tinham uma caixa de som e microfone e Sophia adorava cantar. As fotos que ele me mostra, cheias de cores e sorrisos, revelam esse cotidiano feliz.

Essa é uma das coisas que ele tenta voltar a fazer, em busca de se ressignificar. Jean precisou de apoio psicológico e psiquiátrico para lidar com essa dor sem nome. Pediu ajuda após meses entorpecido. Não tinha vontade de fazer nada, nem de sair da cama.

“A gente que é pai, tudo que vamos fazer é para o nosso filho, desde trabalhar, passear. Você planeja, sabe, você planeja o bem-estar do seu filho e de repente não tem mais”, desabafa Jean.

Mas ele precisava viver, se movimentar e criar um legado depois da tragédia da perda. E Jean precisou sair de uma vida discreta, alheia às redes sociais, e ocupar um espaço público. O assassinato da criança desencadeou um debate que ainda não se encerrou, sobre a necessidade de a rede de proteção ser eficiente em seus vários serviços.

Igor e Jean relataram os esforços para proteger Sophia; perda da filha fez com que protagonizassem debates por serviços mais eficientes (Foto: Arquivo/ Henrique Kawaminami)
Igor e Jean relataram os esforços para proteger Sophia; perda da filha fez com que protagonizassem debates por serviços mais eficientes (Foto: Arquivo/ Henrique Kawaminami)

“A morte da Sophia foi uma forma de gritar socorro, socorro para essas crianças, as pessoas que passam as mesmas dificuldades que eu e Igor passamos”, compara, lamentando ter precisado sofrer a perda trágica para que um debate tão urgente ocorresse. Jean foi à Câmara   de Vereadores contar sua via crucis para ficar com a filha diante de um plenário lotado. Ele registrou boletins de ocorrência, foi ao Conselho Tutelar, à Defensoria Pública. Quando Sophia morreu, contou que só não tinha tomado a criança pra si porque sabia que era crime. Ficava com ela alguns dias e a entregava, mesmo com o choro resistente dela.

Também foi a São Paulo expor seu relato a um fórum sobre a proteção à criança; o chamado Caso Sophia virou reportagens em muitos veículos nacionais.

Rede de proteção – Expor as falhas da rede tornou-se pauta constante da imprensa desde então. A Polícia Civil ampliou o atendimento especializado para o horário noturno, finais de semana e feriados, que antes eram feitos nos plantões comuns das delegacias, também foram feitos cursos para qualificar policiais em ouvir um depoimento especial de crianças e adolescentes, para tentar assegurar a prova de crimes, uma preocupação prevista em lei, para definir o procedimento e evitar a perda dos fatos e a revitimização. A Secretaria de Justiça e Segurança Pública termina o ano com uma área doada pela União para criar um centro especial, a exemplo da Casa da Mulher Brasileira, e promessa de licitar a obra nos próximos meses.

O Conselho Tutelar foi o serviço mais cobrado, já que tinha sido procurado mais de uma vez por Jean e é a porta de entrada de relatos de violação de direitos. A eleição de membros, em outubro deste ano, mostrou que a morte de Sophia estava na memória das pessoas. Jean foi votar, disse que muitas pessoas foram até ele na fila e diziam que estavam ali por causa da menina, que se comoveram com a dor dele. “Foi surreal”, comentou.

A participação popular quase dobrou, embora ainda seja pequena, com 36,5 mil votos. Poucos comparecem, por não ser uma votação obrigatória, muita gente sequer conhece o trabalho dos conselheiros. Mas o ano termina ainda com o serviço insuficiente. A Justiça determinou em agosto a criação de mais três unidades e estruturação das demais, obrigação para a Prefeitura implementar.

A solidariedade das pessoas sensibiliza Jean. “Por um lado, eu fico feliz, mas por outro, eu penso assim- porque minha filha? Porquê teve que acontecer tudo isso com minha filha para mudar alguma coisa? A votação, a cobrança de ampliar a estrutura do conselho tutelar, se era sabido que a necessidade é antiga.”

Para elaborar a dor, Jean conta que precisou ver pessoalmente os réus serem confrontados em juízo (Arquivo/ Juliano Almeida
Para elaborar a dor, Jean conta que precisou ver pessoalmente os réus serem confrontados em juízo (Arquivo/ Juliano Almeida

Frente a frente - Na tarefa de todo dia empilhar um tijolinho, como Jean compara a tarefa de ressignificar sua vida, ele se deparou com a necessidade de ir ao Tribunal do Júri e ver de frente a ex-mulher, Stephanie de Jesus da Silva, e Christian Campoçano Leithein, réus pela morte de Sophia.

Ele participou de duas audiências, junto com Igor. Mais difícil foi ver a ex, com quem conviveu por seis anos. Considera que encarar essa dor e mostrar que o protagonismo deve ser dele e não dos acusados nesse caso é um pilar para sua superação. Os dois seguem presos, foram pronunciados pela Justiça e serão levados a júri popular em março. Ele por homicídio e estupro, ela por homicídio.

Além de ficarem de frente com os réus, Jean e Igor também precisaram enfrentar ataques em redes sociais e a homofobia. Alguns, foram denunciados à polícia. A situação só amenizou depois que vieram à tona provas de que Sophia era vítima de violência, a partir de trocas de mensagens de celular entre Stephanie e Christian. Por outro lado, Jean também relatou muito acolhimento e palavras de apoio nas redes, vindos de pessoas que não conhece.

O pai da menina e Janice atribuem ao conservadorismo, até mesmo impulsionado por fundamentalismo religioso. Jean diz que muitos tentaram esconder isso atrás de opinião, quando se trata de preconceito.

Jean, onze meses após a morte da filha: esforço para transformar luto em luta e ressignificar a vida (Foto: Juliano Almeida)
Jean, onze meses após a morte da filha: esforço para transformar luto em luta e ressignificar a vida (Foto: Juliano Almeida)

Transformar o luto – O fim de ano de Jean será o primeiro sem Sophia. Ele e Igor não farão festa, não terá o karaokê, como ela gostava. Jean seguirá em seu esforço de transformar luto em luta. Em tempo de renovação de expectativas, ele, que perdeu o bem mais precioso e não se vê vivenciando a paternidade de novo, diz alentar um desejo. Quer ver a condenação do casal e os serviços de proteção às crianças funcionando. “É um desejo do meu coração.”

A dor não vai sumir, ele sabe, mas vai amenizar. “A minha ferida tá com uma casquinha, ela não cicatriza. Eu vejo que, não sei como, é uma força maior que me ajuda, pode ser a própria Sophia mesmo.”

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