Parentificação: quando a criança vira o colo que ela não tem
Há crianças que aprendem cedo demais a cuidar. Sabem o momento certo de calar, notam a mudança de humor dos pais, aprendem a preparar o jantar para os irmãos ou a esconder o choro para não “dar trabalho”. Essas crianças parecem maduras, prestativas, resilientes. Mas, por trás desse comportamento, pode haver algo mais profundo — e doloroso: a parentificação.
O que é parentificação?
Parentificação é um fenômeno psicológico em que a criança assume responsabilidades e funções que deveriam pertencer aos adultos. Ela, em algum grau, vira o pai ou a mãe de seus próprios pais, seja cuidando de tarefas práticas, seja oferecendo apoio emocional. Em outras palavras, é como se a criança se tornasse o colo que ela mesma precisava receber.
Essa inversão de papéis, por mais sutil que pareça, tem impactos profundos e duradouros. A infância deixa de ser um espaço de segurança e descoberta, e se transforma num campo de alerta constante. A criança não é cuidada — ela cuida.
Tipos de parentificação
Existem duas formas principais:
Parentificação instrumental: A criança assume tarefas práticas da casa. Pode cuidar dos irmãos menores, preparar refeições, lembrar os pais de compromissos, administrar a casa na ausência ou negligência dos adultos.
Parentificação emocional: A criança se torna o apoio psicológico dos pais. Ouve seus desabafos, consola suas dores, lida com crises emocionais. Muitas vezes, é tratada como uma “melhor amiga” ou um “confidente” do adulto.
Ambas as formas podem ocorrer simultaneamente, e muitas vezes passam despercebidas, naturalizadas sob frases como “essa criança é muito madura” ou “ela é meu braço direito”.
Por que isso acontece?
A parentificação geralmente acontece em famílias disfuncionais ou em contextos de fragilidade emocional e social, como:
● Doença mental ou física de um dos pais
● Separações traumáticas ou perdas
● Dependência química
● Pobreza extrema ou ausência de rede de apoio
● Pais emocionalmente imaturos ou negligentes
Nesses casos, o adulto falha — consciente ou inconscientemente — em oferecer o cuidado necessário, e a criança, em sua tentativa de sobreviver emocionalmente, preenche o vazio assumindo o que não é dela.
As marcas deixadas pela parentificação
Embora pareça um ato de amor — e muitas vezes é —, a parentificação rouba da criança o direito de ser criança. Ela cresce sem chão, sem colo, sem o espaço seguro para errar, brincar, expressar fragilidade.
Entre os efeitos mais comuns na vida adulta, estão:
● Excesso de responsabilidade e culpa
● Dificuldade em estabelecer limites
● Relacionamentos desequilibrados (atração por pessoas emocionalmente dependentes)
● Ansiedade constante e medo de falhar
● Necessidade de aprovação
● Dificuldade em pedir ajuda ou reconhecer vulnerabilidades
É como se, mesmo adulta, essa pessoa ainda vivesse no papel que aprendeu na infância: o de sempre dar conta, de sempre ser forte, de sempre resolver.
A romantização do trauma
É importante não romantizar esse comportamento. Muitas pessoas que foram parentificadas se orgulham de sua independência precoce — e, de fato, podem ter desenvolvido habilidades valiosas. Mas é necessário separar o aprendizado do trauma. Ter aprendido a cuidar cedo não deveria ter sido uma necessidade.
Dizer que alguém “amadureceu rápido” pode esconder uma dor profunda. Não é natural que uma criança segure a barra que um adulto não conseguiu segurar. E embora ela possa ter dado conta, isso sempre vem com um custo: o custo do que foi perdido — infância, liberdade, espontaneidade.
Como romper o ciclo?
A conscientização é o primeiro passo. Reconhecer que houve parentificação não é uma acusação contra os pais, mas uma forma de entender a própria história com mais compaixão e clareza.
Buscar ajuda terapêutica pode ser essencial. Na terapia, é possível:
● Ressignificar o passado
● Entender as consequências emocionais
● Desenvolver uma nova relação com a vulnerabilidade
● Aprender a cuidar de si com o mesmo zelo que se aprendeu a cuidar dos outros
Além disso, quem passou por isso e se torna pai ou mãe precisa estar atento para não repetir o ciclo. É comum que adultos que foram parentificados tenham dificuldade em confiar nos outros e acabar exigindo dos filhos o que eles mesmos viveram. Quebrar esse padrão exige coragem — e é uma das formas mais bonitas de se cuidar e cuidar da próxima geração.
A criança que virou colo para os outros carrega uma força admirável, mas também uma ferida invisível. Não basta reconhecer essa força — é preciso acolher essa ferida. Cada um merece ter tido, em algum momento da vida, o direito de ser amparado, de ser frágil, de ser apenas… criança.
Romper com a parentificação não é abandonar os laços familiares, mas reconstruí-los de forma mais justa e amorosa. É, finalmente, dar a si mesmo o colo que faltou. E permitir-se, talvez pela primeira vez, descansar.
(*) Cristiane Lang, psicóloga clínica especializada em Oncologia
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