ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no X Campo Grande News no Instagram Campo Grande News no TikTok Campo Grande News no Youtube
MAIO, TERÇA  20    CAMPO GRANDE 25º

Artigos

Por que alguém ter um bebê reborn te incomoda tanto?

Por Cristiane Lang (*) | 20/05/2025 13:06

Você está numa sala de espera. Uma mulher entra, senta-se, e no colo dela está um bebê. Você olha, sorri, talvez até faça um comentário simpático. Mas algo não bate. A criança não se mexe, não pisca, não respira. Com um pouco mais de atenção, você percebe: não é um bebê. É um bebê reborn — uma boneca hiper-realista, feita para parecer, pesar e ocupar o lugar simbólico de um recém-nascido.

Por que isso te incomoda?

A resposta não é tão simples quanto parece. E ela diz muito mais sobre você do que sobre a boneca em si.

Bebês reborn: o que são e por que existem

Bebês reborn não são brinquedos comuns. São bonecas feitas artesanalmente para parecerem o mais próximo possível de um bebê real. Têm veias pintadas à mão, unhas minuciosamente polidas, cabelos implantados fio a fio. Muitas pessoas compram esses bebês por diferentes motivos: para colecionar, para viver uma fantasia estética, para lidar com o luto pela perda de um filho, para suprir carências emocionais ou até como terapia em casos de ansiedade e depressão.

Ou seja: a função do bebê reborn não é universal. Ele pode ser arte, consolo, brincadeira ou escudo. Mas a nossa reação a ele costuma ser uma só: desconforto.

O olhar que julga: entre o estranho e o familiar

O conceito de “uncanny valley” (vale da estranheza) ajuda a explicar parte do incômodo. É aquela sensação desconfortável que sentimos diante de algo que parece humano, mas não é completamente. Um robô com feições humanas. Um manequim com olhos de vidro. Um bebê reborn.

Mas o vale da estranheza não responde tudo. Porque a sensação de estranhamento poderia ser apenas estética — e, no entanto, para muitos, ela se transforma em julgamento. Um julgamento duro, moral, dirigido à pessoa que possui a boneca: “Essa mulher não superou o luto.” “Essa pessoa tem problemas.” “Isso é doentio.”

De onde vem essa necessidade de patologizar o outro?

A quebra de papéis sociais

O bebê reborn bagunça nossas categorias mentais. Ele é uma presença visual que exige uma reação — mas não sabemos qual. Ele não é um bebê, mas também não é só uma boneca. E, principalmente, quem cuida dele parece estar cuidando de um bebê. Isso desafia nossos scripts sociais.

Esperamos que uma boneca esteja nas mãos de uma criança. Mas quando vemos uma adulta embalando, trocando fraldas, alimentando com mamadeira um objeto inanimado, algo dentro de nós entra em curto-circuito.

Por quê?

Porque essa imagem escancara uma coisa que evitamos ver: a solidão, o luto, o desejo de amar e ser amado, mesmo que simbolicamente. E isso nos lembra da nossa própria fragilidade. Nos obriga a olhar para aquilo que normalmente escondemos — inclusive de nós mesmos.

Projeção: o espelho que incomoda

Muitas vezes, o incômodo que sentimos diante de alguém com um bebê reborn não é sobre ela, mas sobre nós. É como se víssemos um reflexo deformado de nossas próprias estratégias de sobrevivência emocional.

Talvez você também tenha um apego a objetos. Uma camisa velha que não joga fora. Uma lembrança de alguém que já morreu. Uma mania que te ajuda a lidar com a ansiedade. A diferença é que essas coisas são socialmente aceitas. O bebê reborn não é.

Então julgamos, porque julgar é uma forma de se distanciar. Quando classificamos alguém como “estranho” ou “doente”, não precisamos mais nos identificar com ela. Isso alivia a dor de perceber que também poderíamos estar ali — e talvez já estejamos, de outros jeitos.

O conforto do “normal” é o medo da transgressão

Nossa sociedade é viciada em normas. Normas de comportamento, de luto, de prazer, de maternidade. Espera-se que quem perde um filho sofra “do jeito certo”. Que quem não teve filhos não deseje tê-los de forma simbólica. Que os objetos permaneçam no campo da razão, e não invadam o da emoção profunda.

Mas o bebê reborn rompe todas essas barreiras. Ele é um objeto que demanda afeto, um substituto simbólico que escancara o desejo por algo que faltou — ou que partiu. E isso, para muitos, é inadmissível.

O desconforto como convite à empatia

Se a presença de um bebê reborn te incomoda, talvez a pergunta a se fazer não seja “O que há de errado com essa pessoa?”, mas “O que há em mim que reage com tanto incômodo diante disso?”

Talvez o bebê reborn te obrigue a encarar o que você esconde. Talvez ele revele, com sua pele de silicone e seus olhos parados, o quanto você reprime suas próprias dores. E, principalmente, o quanto você ainda acredita que certos sentimentos devem ser vividos apenas do jeito certo.

Mas a verdade é que cada um encontra suas formas de seguir. E algumas delas — embora diferentes, estranhas ou simbólicas — merecem mais empatia do que julgamento.

Porque, no fundo, todos nós estamos apenas tentando dar conta de existir.

(*) Cristiane Lang é psicóloga clínica.

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

Nos siga no Google Notícias