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Propriedade intelectual em tempos de pandemia

Lisiane Feiten Wingert Ody (*) | 17/06/2021 08:30

A pandemia de covid-19 fez da propriedade intelectual um assunto não mais de interesse exclusivo de técnicos, mas tema de conversas informais entre familiares, amigos e colegas. O isolamento social recomendado como medida de prevenção ao contágio pelo vírus SARS-CoV-2 introduziu novas práticas de estudo e trabalho e desafiou formas tradicionais de entretenimento. O ensino presencial tradicional deu lugar ao remoto, assim como o trabalho passou a ser realizado pelo meio virtual, quando possível. Subitamente, o lar se tornou sala de aula e escritório. Limitadas as possibilidades de lazer e de consumo, o acesso à arte e à cultura também passou a se dar exclusivamente no ambiente doméstico. Esses fatos despertaram interesse no direito autoral, que trata da proteção de criações de natureza literária, artística e científica. Pesquisas sobre a doença e o vírus que a causa, por sua vez, atraíram interessados no tema da propriedade industrial – que protege invenções aplicadas à indústria, como patentes de equipamentos, medicações e vacinas.

O Estado protege a criatividade de autores e inventores, garantindo-lhes exclusividade temporária na exploração da criação, em reconhecimento e incentivo, sendo excepcionais os eventuais limites a essa proteção. No âmbito da pandemia de covid-19, essas exceções ao direito do criador se evidenciaram importantes exemplos, como na política do fair dealing do Canadá, que autoriza o uso de artigos protegidos por copyright para fins de pesquisa e que tornou conhecida a disseminação do vírus, assim como no uso experimental de remédios existentes, fora da sua indicação principal, que constitui exceção às patentes.

A regulamentação da matéria é territorial, existindo, porém, acordos internacionais que aproximam as legislações de diferentes países, como é o caso do TRIPS, que trata de aspectos relacionados ao comércio da propriedade intelectual. No Brasil, há normas que disciplinam limites pontuais aos direitos do criador, mas não regra genérica que os preveja por “interesse público”. Aliás, deve-se refletir sobre a expressão popular quando se buscar restringir interesses individuais, pois é preciso explicitar em que consiste, já que existe interesse público na valorização de criadores e inventores, na retribuição do trabalho deles ou do investimento que receberam de privados ou do Estado, e não apenas no acesso à criação pela coletividade.

No caso das patentes, deve-se conciliar o direito humano à saúde e o incentivo à invenção – o que não se limita a medicamentos, em cujo âmbito de proteção já existe limitador do direito do titular, como a licença compulsória –, inaplicável, por ora, a outras invenções, como respiradores e kits para testes, por exemplo. São paradigmas dessa exceção os casos das medicações para AIDS e Anthrax (bioterrorismo), que foram tratados no âmbito do artigo 31 do TRIPS como emergência de saúde pública. Nesses casos, porém, o vírus e a bactéria eram conhecidos, estudados, e os tratamentos, consolidados. A questão envolvendo a covid-19 é mais sensível, pois não se conhece o vírus, a totalidade dos sintomas que provoca nem suas sequelas, tampouco se tem certeza da eficácia a longo prazo das medidas tomadas até aqui. A discussão envolve também a capacidade de produção das indústrias farmacêuticas titulares das patentes, que não têm dado conta da demanda de vacinas.

Licenças compulsórias têm lugar quando é necessário compensar o poder assimétrico de negociação entre o titular da patente e o Estado que busca obter a invenção. Nesse caso, o titular do direito não quer fornecer a invenção nas condições propostas pelo governo local, mas, sendo elas razoáveis, é compelido a fazê-lo. Ainda assim é um processo burocrático e, para combater a demora que lhe é inerente, existem hoje no Brasil inúmeros projetos de lei propondo alternativas.

A longo prazo, as soluções para o problema de assimetria nas negociações de vacinas ou medicações patenteadas não deve, porém, se limitar à licença compulsória. O ideal seria um tratado internacional que disciplinasse o tema para situações extraordinárias como a que vivemos. São exigidos, contudo, esforços hercúleos para a aprovação de uma norma internacional dessa magnitude, apresentando-se como alternativas mais viáveis recomendações e outras formas de direito flexível (soft law). Embora o uso desses instrumentos não resulte em uma norma executável de plano, esses acordos podem se incorporar ao direito interno dos países signatários por atuação dos tribunais, como produto da boa-fé, por exemplo. Ainda que seja norma não vinculante, o soft law direciona e estimula trocas entre países fracos e fortes, aumentando a perspectiva de sucesso dos primeiros na pressão às indústrias quando unidos aos últimos.

Para além das obrigações atribuídas aos governos, não se deve esquecer que privados têm mantido iniciativas de sucesso no combate à covid-19, como o Open Covid-19 Pledge, em que gigantes como Amazon, Intel, Microsoft, etc., liberaram em três níveis de licenças sua propriedade intelectual “com o fim de mitigar a pandemia de covid-19”. Nesse contexto, urge que também internamente os países tomem parte em ações para reduzir as assimetrias que prejudicam o acesso a remédios, imunizantes e demais instrumentos tecnológicos, o que se dá necessariamente pelo estímulo à competição e pela institucionalização de experts e de apoio técnico, como se faz em pesquisas nas universidades federais como a UFRGS.

Embora a propriedade industrial seja questão de destaque no âmbito da pandemia de covid-19, também em relação ao direito autoral se verifica um interesse público vital, consubstanciado na manutenção da nossa humanidade. O isolamento social afeta de forma incontestável a saúde mental e o espírito das pessoas. Por isso, também no âmbito do direito autoral, os titulares desses direitos patrimoniais deveriam ser incentivados a permitir, temporariamente, o uso de criações no meio digital de forma a minimizar o impacto da quarentena.

As circunstâncias peculiares da doença provocada pelo SARS-CoV-2, do qual se ignora mais do que se conhece, e a prevenção ao seu contágio afetam o físico, o emocional e o espiritual das pessoas. A incerteza de por que alguns sofrem consequências irreversíveis quando outros sequer manifestam sintomas provoca aumento da ansiedade em toda a coletividade. Nem mesmo em períodos de guerra houve experiência análoga – que não poupou sequer as crianças, impedidas de frequentar normalmente o ambiente escolar. Contrariando tradições milenares, o protocolo de cuidados resultou no afastamento de entes queridos: familiares e amigos não mais tratam de seus doentes e, pior que isso, não podem cumprir rituais de despedida quando se vão. E há, ainda, o flagrante recrudescimento de tensões, produtos de ideologias mal concebidas ou compreendidas, o que faz da covid-19 moléstia de falta de solidariedade. Claro que não se pode evitar os danos que advêm desses fatos, mas é possível minimizá-los.

Por conta disso, se poderiam admitir limites excepcionais à propriedade intelectual no âmbito dos direitos autorais, de forma que, para fins didáticos e pedagógicos, em universidades e escolas, fosse permitido compartilhar conteúdo protegido. Essa, porém, não parece ser a única – tampouco a melhor – abordagem, pois a experiência mostrou nesse primeiro ano de ensino remoto emergencial que a motivação e a disciplina para o estudo não são as mesmas durante o isolamento social. Por isso o acesso a conteúdo protegido pelos direitos autorais para fins terapêuticos e recreativos também se revela alternativa de combate às consequências nefastas da pandemia.

Naturalmente que não se pode imputar aos autores dessas criações – nem a outro titular do direito de exploração dessas obras – que suportem os custos da providência. Reconhecendo o acerto da compreensão de que todo trabalho é importante e deve ser valorizado, a distribuição dos ônus não pode prejudicar a retribuição do autor nem a preservação dos negócios de distribuição (editoras, produtoras, etc.), especialmente dos pequenos, que tendem a ter mais dificuldades para superar a crise. Analogamente às licenças compulsórias, deveria o Poder Público, que opera com os recursos dos contribuintes e tem o dever de promover a saúde, regulamentar a questão, ainda que emergencialmente, de forma a permitir o acesso da população a criações protegidas pelos direitos autorais, como livros e filmes, por exemplo, especialmente no formato online, sem prejuízo aos direitos do autor.

As normas que disciplinam a propriedade industrial e o direito autoral respeitam as peculiaridades dessas criações, que não podem ser equiparadas e devem proteger inventores e criadores mesmo em tempos de pandemia e de restrições e desafios que se impõem. Apesar disso, a preservação da nossa humanidade exige refletir sobre novos limites aos direitos de propriedade intelectual e sobre o papel que o Poder Público deve desempenhar, pois, se é verdade que as normas de propriedade intelectual asseguram o reconhecimento e a retribuição devidos aos criadores, também é verdade que as criações se destinam, cedo ou tarde, à coletividade, sendo interesse do Estado estimular e manter esse ciclo.

(*) Lisiane Feiten Wingert Ody é professora da Faculdade de Direito da UFRGS.

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