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Um componente curricular como a filosofia

Rita de Cássia Azzolin, María del Huerto, Tatiele Corrêa e Luciano Bedin (*) | 30/11/2021 13:30

Às vezes parece até ficção a necessidade de escrevermos uma carta em defesa da permanência da filosofia na escola. É quase inacreditável que Porto Alegre, que historicamente se constituiu como uma cidade democrática e inovadora, esteja hoje colocando em pauta a supressão do ensino de filosofia a estudantes da rede municipal de educação.

Dentre as várias modificações sinalizadas pela nova Proposta Pedagógica apresentada pela Secretaria Municipal de Educação (SMED), está a retirada da filosofia enquanto disciplina curricular, permanecendo de modo “transversal” ao longo de todo currículo. A questão da transversalidade da filosofia fica bastante evidente no discurso da secretária municipal de Educação junto à Câmara de Vereadores de Porto Alegre, em 18 de outubro de 2021, quando, ao lamentar que o debate da nova Proposta Pedagógica “fique reduzido à discussão de um componente curricular como a filosofia” (sic), justifica sua retirada com o argumento de que a filosofia é um “tema transversal que perpassa todas as áreas do conhecimento”, uma vez que “não é só na filosofia que nossos alunos aprendem a pensar, os nossos alunos aprendem a pensar em todas as áreas do conhecimento” (sic).

Se formos utilizar o critério da transversalidade para justificar a presença ou ausência de determinada disciplina, poderíamos também excluir boa parte dos componentes curriculares, uma vez que o português, por exemplo, está presente em todas as disciplinas, assim como a história, a matemática, e assim sucessivamente.

A “sacanagem” (tentamos encontrar palavra melhor mas não conseguimos) do argumento contido na nova Proposta Pedagógica está no fato de que, para justificar a retirada da filosofia do currículo escolar, diz-se que ela está em todos os lugares, não precisando ter um número de horas e dias para que seja ministrada. Saindo do “acho, não acho”, apresentaremos um pouco do impacto da filosofia na formação das crianças e adolescentes, trazendo narrativas de estudantes de escolas públicas que testemunham sua importância nos currículos escolares.

Na Carta à Comunidade Escolar da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (PoA), assinada pela secretária da Educação, Janaina Audino, em 12 de novembro de 2021, é apresentada a nova proposta pedagógica com a retirada da filosofia dos currículos, alegando fundamentação legal de que a filosofia “não se constitui como um componente curricular que deve ser ofertado no Ensino Fundamental”, conforme a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), Referencial Curricular Gaúcho (RCG/2018), a Lei Federal n.º 13.415/2017 e a Resolução CEEd/RS n.º 345/2018.

Tais normativas não banem a filosofia nem a proíbem enquanto componente curricular, pelo contrário, no RCG/2018, é concedida a autonomia de organização curricular prevista nos artigos 12, 13 e 23 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDBEN/1996). Manter a filosofia no currículo é garantir espaço especializado para a aprendizagem a partir do “eu”, do “outro”, do “nós”, na vida em sociedade e na cidade; promove vivências e práticas cognitivas e socioemocionais ao pensar as relações entre os sujeitos e o mundo. É na filosofia que se faz a experiência do pensar, do pensar sobre o pensar; exercitando o pensar filosófico, abre-se também a possibilidade de problematizar outros saberes.

O pensar filosófico nos conduz a mais perguntas do que respostas, mais dúvidas do que certezas. Em uma sociedade da lacração, onde cada um impõe violentamente seu modo de pensar sobre o outro, a criação de boas perguntas é uma prática que deve ser cultivada desde cedo.

“Não sou muito boa em textos. Mas estou escrevendo o que estou pensando desde o começo do ano em filosofia”, relata Larissa Miranda Ribeiro (13 anos). O testemunho de Larissa, bem como as demais falas apresentadas neste texto, encontram-se registrados no livro Inspiradores de Mundos, organizado por docentes da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Neusa Goulart Brizola. O livro, publicado em 2017, é resultado das tantas experiências do pensar filosófico de estudantes com idade entre 10 e 18 anos que acontecem na escola desde o ano de 2010.

Lamentável, triste e revoltante lermos que a secretária fundamenta a retirada da filosofia dos currículos em supostas “evidências de redes de ensino que já fizeram suas adequações e alcançaram melhores resultados educacionais”, não se interessando no que sentem e pensam as e os estudantes da Rede Municipal de Ensino de PoA. Dois dias antes da publicação da referida carta, conforme relato do professor da Rede Jaques Guimarães Schaefer, “Fica filosofia” foi o grito que ecoou nos corredores da EMEF Judith Macedo de Araújo durante a visita da secretária de Educação para entrega simbólica de cestas básicas.

Na própria carta, a SMED assume atuação autoritária “como indutores de processos”, lançando para o futuro a possibilidade de diálogo quando afirma “teremos muitos espaços de diálogo, construção e troca de experiências” (o fato de o verbo ter estar conjugado no futuro, e não no presente, revela a maneira como a atual gestão construiu a referida proposta, prometendo o diálogo, uma vez que o mesmo não aconteceu desde sua posse, no início de 2021).

A filosofia se faz presente nos currículos do Ensino Fundamental em escolas particulares de PoA, logo, o argumento legal de que a filosofia está fora da BNCC e demais normativas leva-nos a reforçar o questionamento. Como questiona o referido texto do professor Jaques Guimarães Schaefer, “a BNCC só concretiza a retirada da filosofia dos pobres ou daqueles que não têm como pagar por ela numa escola particular?”. Em 2014, a EMEF Neusa Goulart Brizola foi a única escola pública a sediar uma Olimpíada de Filosofia com crianças e adolescentes, evento que acontecia em outros espaços, como universidades e escolas privadas, como Americano e Farroupilha.

Há uma máxima na filosofia que parece fazer muito sentido: se a gente não aprender a pensar, com certeza alguém irá pensar por nós. É exatamente isso que estão querendo fazer, impor o pensamento equivocado de que, ao buscar uma melhor aprendizagem das disciplinas tidas como “necessárias”, é necessário retirar as “supérfluas”. “Nesse período em que estudo filosofia, aprendi que todos têm direito de se expressar, criar metas e objetivos, buscar conhecimento e levar isso como filosofia de vida. Na filosofia aprendi que sou dona de meus pensamentos e das minhas vontades”, relata Tanise Vidal (16 anos).

A nova proposta pedagógica propõe desvincular a filosofia do filosofar dentro de uma prática curricular, deixando-a sujeita a projetos que podem ou não acontecer. Se não tivermos professor(a)s de filosofia é bastante provável que não tenhamos projetos de filosofia nas escolas, uma vez que as condições de trabalho estão cada vez mais difíceis, e dar conta dos conteúdos específicos de cada um(a) já nos parece um ato heroico.

A luta pela filosofia na escola não exclui a luta por melhores condições no ensino de português e matemática. Ao contrário, é uma luta complementar, uma vez que aprender é um gesto que envolve o ser humano como um todo, movimentando reflexão, habilidades, corpo e sensibilidades.

Finalizamos com as palavras certeiras da estudante Bruna da Rosa (15 anos): “A filosofia ensina e motiva a ter noção de um mundo que existe apenas para aquelas pessoas que querem ser melhores que ontem, que querem mostrar que sim, que podem fazer deste mundo machista, homofóbico, racista e cheio de diversos preconceitos um mundo melhor. Aprendemos de muitos jeitos, mas quando estamos motivados e vivemos experiências aprendemos mais e de forma mais realista. A filosofia nos dá motivos para querer aprender e mudar o mundo”.

Se a ordem do dia é retirar da escola o componente curricular de filosofia, nos somaremos às vozes da comunidade escolar (sobretudo das e dos estudantes) gritando em alto e bom som: VOLTA FILOSOFIA!

(*) Rita de Cássia Nunes Azzolin possui graduação em Direito pela PUCRS.
(*) María Laura del Huerto possui graduação em Psicologia pela PUCRS. É mestranda no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS.
(*) Tatiele Mesquita Corrêa é licenciada em Ciências Sociais pela UFRGS e mestranda no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS.
(*) Luciano Bedin da Costa é docente no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS .

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