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Beba das Crônicas

O Botafogo não é apenas paixão, é amor

Por André Luiz Alvez | 08/12/2023 08:28

Tudo começou quando um grupo de amigos resolveu usar um símbolo do universo sem pedir permissão. Não há nada mais sagrado para o universo do que uma estrela. E reparando direito, não é uma estrela, é um planeta, Vênus, aquele que brilha nos céus nas manhãs dos dias de verão e encantou os jovens que criaram o Botafogo no início do século passado. E por não ser apenas um time de futebol, também competia nas regatas. Foram eles que se deram com o planeta brilhando intensamente numa manhã plena de mistérios no Rio de Janeiro e acharam genial colocar uma estrela na camisa do clube. Estrela solitária. Um planeta feito estrela, sem pedir permissão. O universo não gostou e resolveu punir.

Assim, desde os anos setenta, quase tudo é decepção, desgosto, maldição. Azar? Não, azar é coisa passageira, no caso do Botafogo, o sofrimento parece ser estigma, está impregnado na alma, sem chances de escapes.

Torcer para o Botafogo é como entrar num nevoeiro ilusório a bordo de um navio sem leme. Às vezes é nuvem, noutras vezes é fumaça, não se sabe se navega acima do crepúsculo ou abaixo da poeira insana que permeia tudo em volta.

Não estou sozinho nessa loucura, nem somos tão poucos como muitos imaginam.

Paulo Mendes Campos marcava encontros com Clarice Lispector no Maracanã lotado em dias de jogos do Botafogo. Ele se transformava, xingava o juiz, os jogadores adversários, queria sair no tapa com a torcida dos outros times, especialmente aqueles vestidos de preto e vermelho, naquela época fregueses da estrela solitária. Clarice se assustava com a transformação: de repente, diante de seus enormes olhos esverdeados, o poeta era um ogro insano.  “Não venho nunca mais”, ela prometia para si mesma. Mas já no outro jogo, botafoguense apaixonada que também era, lá estava ela, balançando a bandeira preta e branca, admirada e tocada pela beleza do momento, dizia para Paulo: “grite meu bem, é o nosso amor, é o nosso fogão, é a chama que nos aquece”.  O namoro não deu certo, afinal, nada pode dar certo tendo o Botafogo como pano de fundo. Elza Soares que o diga. Pobre Garrincha.

Vinicius de Moraes, era outro apaixonado pelo time da estrela solitária. Certa vez, exilado nos Estados Unidos, bateu-lhe uma saudade imensa do Brasil e então escreveu uma carta direcionada a um imaginário bilionário americano, uma prosa poética que termina assim: “me diga sinceramente uma coisa, Mister Buster: o senhor sabe lá o que é um choro do Pinxiguinha? O senhor sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal? O senhor sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?”

Mister Buster não sabe, torcedores dos outros times não sabem, na verdade, bem lá no fundo, nem nós, botafoguenses, sabemos ao certo. É aquela agulhada no peito, a vontade louca de ver o time jogar, uma bola estufada nas redes, chutadas por um jogador vestido com a estrela solitária e então pular no ar girando o punho, gritar a pleno pulmão Bo ta fooogooooo, assim mesmo, em sílabas separadas, com ênfase ao fogo, pois não existe paixão sem chamas, amor sem agulhadas no peito, nem sentimento maior que a própria emoção não consegue explicar.

Quando alguém me pergunta, com total admiração e espanto: “você é Botafogo?” Sim, sou. “Mas como, com tantas opções, foi logo escolher esse time que quase nunca ganha?” A única resposta que tenho é aquela que algum poeta já andou dizendo: amor não se explica.

Deve ser a estrela, mas pode também ser coisa do destino, porque essa mania de escrever vem do costume de sonhar e o meu time é um sonho, muitas vezes (como agora) transformado em pesadelo.

Esse ano de 2023 foi muito dolorido, até mesmo cruel. “E aí, Botafogo campeão, hein?”, diziam os amigos, alguns, mesmo torcedores dos times adversários, tinham essa certeza e até gostavam da ideia de finalmente, após quase trinta anos de Túlio Maravilha, ver novamente o Botafogo campeão. Eu nunca tive essa certeza. A torcida do Botafogo inteira, também não. Nós sempre desconfiamos. Quando começaram os comentários de que o Botafogo já era campeão, diversas vezes nos questionamos: como assim? Não será tão fácil, provavelmente vai dar alguma merda, alguns imaginavam que um cometa colidiria com a Terra pouco antes, no exato momento que a taça estivesse brilhando no canto do estádio Nilton Santos.

O time jogava tão bem, encantava, desfilava no tapetinho, nome carinhoso dado ao gramado artificial do campo do Botafogo, mas a fase oculta da Lua sempre esteve à espreita. Não se pode confundir impunemente um planeta com uma estrela.

Stepan Nercessian, alvinegro vivido, deu a letra quando estávamos no auge: “não é assim, pode perder, vai acabar perdendo, a gente nunca ganha no final”. A sina é essa, é o sofrimento, a certeza da derrota, o time pode passar o jogo quase inteiro ganhando de três gols de diferença, mas a gente sabe que nos minutos finais a ave agourenta surgirá, impávida, vingativa e tudo se perderá. “Nunca vi algo assim”, disse-me um amigo querido, torcedor do Palmeiras, espantado ao ver o Botafogo fazer, no último minuto, um gol de pênalti no rebaixado Coritiba e, logo depois, o time inteiro ficar olhando o adversário tocar a bola até fazer o gol de empate assim que o jogo foi reiniciado. Nunca viu nada assim...Nós, botafoguense, já vimos coisa pior, e temos certeza que ainda veremos coisas assim, é a nossa sina, é a paga por ter pego, sem pedir permissão, um dos símbolos sagrados do universo. Esse mesmo amigo, entre um gole de cerveja e outro, disse há exatos dois meses: “o campeonato está decidido, Botafogo campeão”, e eu respondi de imediato: você não conhece o Botafogo. Esse amigo, por sinal palmeirense, agora está comemorando o décimo segundo título conquistado pelo alviverde de Parque Antártica. Décimo segundo título? Eu acho, sinceramente, que ninguém consegue suportar tantas conquistas. E rio, eles não entendem. Tínhamos doze pontos na frente e perdemos. Como isso aconteceu? O universo não perdoa. Minha filha, a me ver desabado no sofá, esmagado por mais uma sofrida derrota, dessa vez contra o Grêmio, quis me consolar, mas o fez da pior maneira possível, tentando relativizar a minha paixão: “é só um jogo de futebol, pai”, e eu a reprimi com total indignação, voz pesada, olhar de fúria:   quando você nasceu, a primeira camisa que usou, no berçário, foi uma branca com a estrela solitária no peito. Respeite a minha dor.

E restou o silêncio.

Armando Nogueira, outro iluminado escritor botafoguense, certa vez escreveu: “ser Botafogo é escolher um destino e dedicar-se a ele. Não se pode ser Botafogo como se é outro clube: você tem que ser de corpo e alma”. Certo seu Armando, mas devia acrescentar o quanto é dolorido ser Botafogo.

Muitas vezes eu morri e tive que nascer de novo nesses tantos anos entregues à essa paixão, a esse amor. O Botafogo é como um grão envolto em mistérios. Para semeá-lo, é preciso lágrimas.

Após o fatídico jogo da virada do Palmeiras, não conseguia dormir, revirei na cama sem compreender o resultado final, porque a bola não entrou no pênalti a nosso favor? O jogo estava três a zero, como perdemos, como tomamos quatro gols em cinco minutos? E quando o sono finalmente chegou, trouxe a inversão maravilhosa, porque nos sonhos tudo é ao contrário, pude ouvir nossa turma alvinegra cantando o hino, comemorando a conquista do título de campeão. Mas ao acordar, a realidade escancarou a crueldade e tudo voltou a doer intensamente.

Sonhos botafoguenses são sempre assim, nublados.

Os meus olhos de criança, que brilhavam diante da camisa alvinegra da estrela solitária, ainda é o mesmo, mas está cansado, esgotado, decepcionado. As minhas lágrimas não secam, a minha dor é tão imensa, tão sem fim...

O time que seria campeão acabou o campeonato em quinto lugar. E nós, botafoguenses da alma dolorida, estamos afogados na areia movediça, incrédulos, perdidos no quinto dos infernos.

Ser Botafogo é amar sem ser correspondido e eu não gosto de futebol, eu gosto do Botafogo. É o mais puro e cego amor.

Os meus dedos anseiam tocar o chão no qual pulsa a semente, a tentativa de desvendar os mistérios da terra e do céu. Pego-me então tateando o ar no qual a poeira voa, quem sabe não exista nesse denso nevoeiro aquele grão semeado com tanta dor e ele finalmente venha a brotar? Quem sabe, após tanto sofrimento, finalmente aconteça o perdão do universo? Quem sabe...

E mesmo que a agulhada dolorida no coração persista e a tristeza ainda me abrace, eu sei que logo a loucura voltará a pulsar, apanhado na paixão de sempre, nesse amor irretocável e incompreendido, a ânsia me dominando aos poucos, me perguntando sem parar, quando é que recomeça, quando é que o Botafogo volta a jogar?

André Alvez

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