Enquanto só um cartório já arrecadou R$ 23 milhões no ano, taxas pesam no bolso
Muitos órgãos públicos levam seu quinhão nesse emaranhado de rentável burocracia
Na manhã de quarta-feira (dia 13), Jovita de Souza, 46 anos, deixava o cartório na Avenida Afonso Pena, um prédio moderno e de fachada envidraçada, em Campo Grande, após pagar R$ 65. Dentre os serviços, abriu e reconheceu firma. “Não é caro pela serventia que tem para gente. Mas, lógico, seria melhor se fosse mais barato”.
RESUMO
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Os cartórios brasileiros têm gerado receitas milionárias com taxas cobradas por serviços como reconhecimento de firma, procurações e registros de imóveis. Em Campo Grande, um cartório arrecadou R$ 23,8 milhões apenas nos primeiros sete meses do ano. Apesar de certidões de nascimento e óbito serem gratuitas, outros serviços pesam no bolso do cidadão, com valores considerados abusivos por muitos. Especialistas criticam a falta de modernização e a burocracia excessiva, destacando que algumas taxas, como o reconhecimento de firma, são vistas como obsoletas. A Defensoria Pública atua para garantir isenções a pessoas de baixa renda, mas a estrutura atual ainda dificulta o acesso a serviços essenciais. A discussão sobre a redução dessas taxas continua, com entidades defendendo mudanças urgentes.
No Brasil, certidão de nascimento é gratuita. Mas, depois, o cidadão vai ter que pagar para casar, fazer procuração, tirar um protesto de dívida ou vender o carro. De taxa em taxa, tem cartório de Campo Grande que já arrecadou R$ 23,8 milhões de janeiro a julho deste ano.
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O reconhecimento de firma é serviço corriqueiro e mostra como muitos órgãos levam seu quinhão nesse emaranhado de rentável burocracia: Ministério Público, Tribunal de Justiça, Defensoria Pública, Procuradoria-Geral do Estado e prefeitura.
Dos R$ 15,91 cobrados para reconhecer firma, R$ 10,24 são emolumentos (ficam para o cartório), R$0,61 vão para o Funadep (Fundo Especial para o Aperfeiçoamento e o Desenvolvimento das Atividades da Defensoria Pública), R$ 0,41 cai na conta do Funde-PGE (Fundo Especial da Procuradoria-Geral do Estado), R$ 1,02 para o FeadMP (Fundo Especial de Apoio e Desenvolvimento do Ministério Público), R$ 1,02 do Funjecc (Fundo Especial para a Instalação, o Desenvolvimento e o Aperfeiçoamento dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), R$ 0,51 de ISS (Imposto sobre Serviços/prefeitura) e R$ 2,09 do selo (cartório).
“Os preços são exagerados, muito fora da realidade nacional. Valores são fixados por lei. A Assembleia Legislativa já tentou reduzir, sem sucesso. As entidades empresariais e da sociedade civil - inclusive OAB - precisam se mobilizar. O cidadão não aguenta mais pagar tantas custas, emolumentos, taxas. Alguns serviços precisariam ser extintos ou modernizados, sendo exemplo o inacreditável reconhecimento de firma em pleno século XXI. É urgente a mudança”, afirma o advogado André Borges.
Em dezembro de 2023, após muita polêmica, que se arrastava desde 2017, a Assembleia Legislativa aprovou projeto enviado pelo TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul) para nova tabela das taxas cartorárias.
A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) destaca que foi contrária ao projeto. “As atuais taxas foram votadas e aprovadas pela Assembleia Legislativa em 2023 e a OAB/MS se posicionou contra. Mesmo assim, a Assembleia votou e aprovou o projeto”, informa a entidade.
Faturamento milionário
O Portal da Transparência Extrajudicial, disponível no portal do TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul), dá a medida de como cartório pode ser um bom negócio.
De janeiro a julho, o Serviço de Registro de Imóveis da 1ª Circunscrição de Campo Grande movimentou R$ 23.870.533,40. A cada mês, a receita com os emolumentos (taxas) foi acima de R$ 3 milhões.
Janeiro - 3.588.231,08
Fevereiro - 3.775.929,76
Março - 3.012.492,38
Abril - 3.401.432,82
Maio - 3.346.099,86
Junho - 3.135.530,21
Julho - 3.610.817,29
A reportagem entrou em contato com o cartório por telefone para posicionamento sobre os custos da atividade, mas foi orientada a procurar a Anoreg (Associação dos Notários e Registradores do Estado de Mato Grosso do Sul).
Já o 3º Serviço Notarial de Campo Grande arrecadou R$ 8.582.734,17 de janeiro a julho de 2025.
Janeiro - 1.108.868,03
Fevereiro - 1.228.832,11
Março - 1.171.473,06
Abril - 1.260.677,21
Maio - 1.254.461,04
Junho - 1.245.679,85
Julho - 1.312.742,87
A reportagem solicitou informações ao cartório por e-mail e aguarda retorno.
Salário melhor do que juiz
Em Mato Grosso do Sul, donos de cartórios ganham mais do que juízes. Levantamento do UOL mostra que essa é a realidade em 25 estados. Em MS, a média mensal de remuneração de titular de cartório é de R$ 169 mil. Eles não têm teto remuneratório, como o funcionalismo público.
Contudo, carreiras de magistrados e promotores conseguem escapar do teto remuneratório (R$ 46.366,19), com pagamento de “penduricalhos” por meio de verbas indenizatórias.
“Não faz sentido um valor tão alto”
Cleriston Trindade, 42 anos, foi ao cartório reconhecer firma devido a contrato de aluguel. “O valor é acessível, mas acho desnecessário”. Contudo, no ano passado, teve bastante gasto para retirar protesto de dívidas.
“Em torno de R$ 300 cada um. Sinceramente, esse foi caro. Tinha conta de R$ 100, que estava com protesto de R$ 300. São taxas abusivas, não faz sentido um valor tão alto”.
Adriana Lechuga do Amaral, 49 anos, pagou R$ 217 por um documento de inteiro teor por apostilamento de certidão de nascimento do filho. “É caro. Com certeza, poderia ser mais barato”, diz Adriana, que havia “perdido a viagem” ao cartório porque o pedido só ficaria pronto à tarde. O documento atende o Apostilamento de Haia e é usado fora do País.
Maria Luiza Farias da Silva, 29 anos, conseguiu comprovar que está desempregada e obteve gratuidade na segunda via da certidão de casamento. Com o documento em mãos, ela conta que precisa atualizar o cadastro da fila da casa própria.
“Vou atualizar o cadastro na Emha [Agência Municipal de Habitação e Assuntos Fundiários] e projetos sociais. Eu mostrei que estou desempregada desde o começo do ano e consegui a gratuidade”.
Defensoria recebe, mas “ajuda” em gratuidades
Uma das destinatárias do que é cobrado nas taxas cartorárias, a Defensoria Pública atua na outra ponta: para que os altos valores não se tornem impeditivos aos mais pobres.
“A Defensoria Pública não pode conceder isenções ou descontos, mas há diversas formas de auxiliarmos na obtenção de documentos. Atuamos na orientação, já que a lei assegura aos reconhecidamente pobres a dispensa do pagamento da taxa para emissão de certidões de registro civil, tais como certidão de nascimento e casamento, indispensáveis para expedir a carteira de identidade”, afirma o defensor Danilo Hamano Silveira Campos, coordenador do Nufamd (Núcleo Institucional da Fazenda Pública, Moradia e Direitos Sociais).
A Defensoria Pública também solicita diretamente aos cartórios as certidões sempre que a pessoa assistida se enquadre nos seguintes critérios de renda mensal: 3,5 salários mínimos para solteiros e cinco salários mínimos de renda familiar.
“Evitando que a falta de recursos financeiros se torne um obstáculo ao exercício de direitos. Em 2025, somente no Nufamd já realizamos 400 solicitações de certidões de registro civil. Destes, 193 são de pessoas em situação de rua, que não possuíam documento algum. Muitas vezes, os assistidos que desejam solicitar a 2ª via da certidão de registro civil desconhecem os dados registrais ou o local do registro, e nesses casos a Defensoria Pública possui um papel importante na busca desses registros”, diz o defensor.
Lei estadual também determina a isenção total para segunda via de certidões de registro civil para mulheres vítimas de violência doméstica e seus filhos menores de idade, além de registro de imóveis em regularização fundiária. Há, ainda, isenções parciais nos casos de aquisição de imóveis financiados pelo Estado, município e o Programa Minha Casa, Minha Vida.
“As taxas cartorárias, especialmente em atos como escrituras, registros, inventários e averbações, em casos de não isenção pela lei, podem chegar a valores bastante elevados. Caso inviabilizem o acesso a direitos pela população de baixa renda, há situações em que a Defensoria Pública pode ingressar com ação judicial, sem custas, para obter a documentação necessária. Ainda, recentemente a lei estadual passou a admitir o parcelamento desses valores, o que tem sido adotado pelos cartórios”, diz o coordenador.
Segundo o defensor, os recursos das taxas que vão para o fundo são aplicados na estruturação da Defensoria Pública. “Isto é, em áreas como aquisição de equipamentos, ampliação e modernização de unidades de atendimento e investimentos em tecnologia para tornar o atendimento mais rápido e eficiente. Esses valores não se destinam a custear taxas cartorárias diretamente, mas contribuem para fortalecer a capacidade de atendimento da população pela Defensoria Pública”.
A reportagem solicitou informações à Anoreg na manhã de terça-feira (dia 12) e aguarda resposta.
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