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Cidades

Filhos que cresceram vendo mães apanharem vivem traumas que Justiça não registra

Histórias de vítimas revelam como sequelas atravessam gerações; especialista alerta para impactos na infância

Por Inara Silva | 05/09/2025 09:35
Filhos que cresceram vendo mães apanharem vivem traumas que Justiça não registra
Para preservar a família, Marcelo prefere não se identificar (Foto: Osmar Veiga)

Quando um ambiente que deveria oferecer acolhimento se transforma em espaço de violência, medo e humilhação, os impactos vão além da dor física. Muitas vítimas carregam cicatrizes emocionais que podem durar anos ou até a vida inteira.

RESUMO

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A violência doméstica em Mato Grosso do Sul registrou 14 mil casos em 2025, sendo 745 envolvendo crianças e adolescentes. As marcas deixadas vão além das agressões físicas, causando traumas psicológicos duradouros que afetam relacionamentos e autoestima. Especialistas alertam que o impacto é especialmente devastador em crianças, que aprendem a se relacionar com o mundo através dos pais. Quando expostas à violência, crescem carregando medo, insegurança e desamparo, como revelam os casos de Marcelo e Maria Clara, que vivenciaram agressões na infância.

Somente em 2025, Mato Grosso do Sul registrou 14 mil casos de violência doméstica, segundo o Monitor da Violência Contra a Mulher. Desse total, 745 situações envolveram crianças e adolescentes, o que equivale a três ocorrências diárias.

Por trás dos números, estão pessoas que testemunharam a agressão dentro de casa. Histórias de dor e resistência revelam como o trauma se perpetua, muitas vezes sem sequer chegar ao registro oficial. Este é o caso das vítimas ouvidas nesta reportagem.

Infância interrompida

Motorista de aplicativo, Marcelo (nome fictício), hoje com 47 anos, cresceu assistindo o pai agredir a mãe. Desde pequeno, tentava intervir, mesmo sem entender o peso daquilo.

“Eu me sentia impotente e, ao mesmo tempo, pensava que deveria respeitar meu pai. Eu aprendi assim”, lembra.

Aos 7 anos, presenciou a cena mais marcante: o pai alcoolizado ameaçava a mãe com uma faca, quando o menino o empurrou. O homem caiu desacordado, e foi nesse momento que a mãe decidiu fugir de casa com os três filhos. Marcelo era o mais velho e nunca mais conviveu com o pai, que morreu 30 anos depois em outro Estado.

“Ficou uma lacuna por não ter retomado contato. Minha mãe nunca falou sobre a violência que sofreu, e isso ficou comigo por anos”, diz.

Filhos que cresceram vendo mães apanharem vivem traumas que Justiça não registra
Marcelo, de 47 anos, relembra episódios da violência sofrida. (Foto: Osmar Veiga)

A dor que vem da própria mãe

No interior do Estado, Maria Clara (nome fictício), diarista de 54 anos, cresceu apanhando da mãe com cintas, pedaços de pau e cabos de vassoura. Era a caçula de 17 irmãos e também sofria agressões dos mais velhos. O pai, alcoolista, batia na esposa, mas nunca nos filhos.

“Sempre soube que minha família era desestruturada”, afirma.

Aos 12 anos, em uma briga com os irmãos, se recusou a descascar batatinhas e foi surpreendida pelas costas.

“Minha mãe bateu muito no meu rosto e na minha cabeça”, relembra a última surra.

Dias depois, a mãe morreu e Maria Clara foi ao velório ainda com o olho roxo por conta das agressões. Apesar da violência sofrida, ela admite que só há dois anos, em terapia, começou a elaborar o que viveu.

“Passei muito tempo anestesiada. Eu gosto da minha mãe e entendo porque ela era agressiva. Mas agora sinto tristeza, depressão. Parece que não tive tempo de sentir isso antes.”

Filhos que cresceram vendo mães apanharem vivem traumas que Justiça não registra
Sala de depoimento especial na Polícia Civil. (Foto: Henrique Kawaminami)

A violência e os traumas

Especialista alerta que a violência doméstica deixa marcas psicológicas duradouras, muitas vezes invisíveis.

“Traumas vividos na infância podem influenciar relacionamentos, autoestima e saúde mental por toda a vida”, explica a psicanalista Pricila Pesqueira de Souza, membro do Fórum do Campo Lacaniano de Mato Grosso do Sul e do Instituto Ágora.

Segundo ela, a violência doméstica rompe laços afetivos e provoca impacto devastador, sobretudo em crianças.

Para a psicanalista, os impactos são ainda mais profundos nas crianças, que estão em plena formação da subjetividade.

“É a partir dos pais que elas aprendem a se relacionar com o mundo. Por isso, quando vivenciam violência, crescem com a marca do medo, da insegurança e do desamparo”, explica.

Onde denunciar

  • Disque 180 – Central de Atendimento à Mulher

  • Ligue 190 – Polícia Militar

  • Promuse (Programa Mulher Segura): (67) 99180-0542 (inclusive WhatsApp)

  • 1ª DEAM (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher)

    • Endereço: Rua Brasília, s/n, Jardim Imá (Casa da Mulher Brasileira). Telefones: (67) 4042-1324 / 1319