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Cidades

Relatório denuncia tortura e abandono nos presídios de Mato Grosso do Sul

Documento expõe fome, doenças sem tratamento e pressiona Agepen, que anuncia melhorias

Por Inara Silva | 03/11/2025 18:44
Relatório denuncia tortura e abandono nos presídios de Mato Grosso do Sul
Mofo, descascamento, vazamentos e fiação elétrica exposta na Máxima. (Fonte: MNPCT)

Relatório do MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura) expõe um quadro de irregularidades em três unidades prisionais de Mato Grosso do Sul. A equipe vistoriou a PED (Penitenciária Estadual de Dourados), a PFCG (Penitenciária Federal de Campo Grande) e o Estabelecimento Penal Jair Ferreira de Carvalho, conhecido popularmente como Máxima.

RESUMO

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O relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) revela condições degradantes em três unidades prisionais de Mato Grosso do Sul. As inspeções, realizadas em outubro de 2024, constataram superlotação, falta de água potável, alimentação insuficiente e práticas de tortura, como isolamento abusivo e castigos físicos. Presos relataram violência, doenças não tratadas e ambientes insalubres, com esgoto a céu aberto e infestação de pragas. O documento aponta que o sistema prisional opera com 202% da capacidade, agravando a crise sanitária e humanitária. O MNPCT classifica as condições como "incompatíveis com a dignidade humana" e recomenda ações urgentes. A Agepen afirma que está ampliando vagas e melhorando infraestrutura, mas ainda não recebeu formalmente as recomendações do relatório.

Apesar de diferenças estruturais e de gestão, todas compartilham o mesmo cenário descrito pelos peritos: condições insalubres, fome, doenças sem tratamento e práticas de castigo classificadas como tortura. Em entrevistas, os presos relataram ainda violência física, psicológica, isolamento, castigos e tratamentos degradantes.

Segundo o documento, divulgado no sábado (01/11), as visitas foram realizadas de 20 a 25 de outubro de 2024 e revelaram violações reincidentes e agravadas desde as últimas inspeções em 2016 e 2021.

O relatório aponta ainda falta de água potável, colchões, produtos de higiene e assistência médica, além de alimentação insuficiente e inadequada, com relatos de jejum forçado e surtos de doenças de pele, como furúnculo, e transtornos mentais.

Lotação – Conforme o relatório, o sistema prisional do Estado enfrenta superlotação. No primeiro semestre de 2025, 17.478 pessoas ocupavam celas projetadas para 8.632 vagas, operando a 202% da capacidade. A situação é ainda mais crítica entre presos provisórios, com ocupação 1.521% acima do previsto. Para os que aguardam julgamento, existem 277 vagas formais, mas a lotação é de 2.164 pessoas. Os dados são do SISDEPEN (Sistema Nacional de Informações Penais), referentes ao primeiro semestre.

Após inspeção, o MNPCT informou que enviou ofícios às autoridades competentes solicitando providências urgentes para a assistência à saúde, psicossocial e jurídica aos presos.

Relatório denuncia tortura e abandono nos presídios de Mato Grosso do Sul
Alimentação precária e insuficiente com fornecimento rotineiro de ultraprocessados (Foto: MNPCT)

Dourados – Sobre a PED de Dourados, a comissão descreve superlotação extrema em meio a mofo, infiltrações, fiação exposta e esgoto a céu aberto. As equipes constataram falta de água potável e de energia regular, agravando as más condições de higiene e a disseminação de doenças.

“Os custodiados relataram racionamento de água, fornecida em média seis vezes ao dia (manhã, tarde e noite). Afirmaram também que a situação é agravada pela constatação de caixas d'água destampadas contendo animais mortos, o que representa um risco sanitário iminente”, relata o documento.

Foram observados surtos de escabiose (sarna) e furúnculos, sem atendimento médico, e casos de transtornos mentais não tratados. O documento relata que cerca de 500 dos 2.400 presos foram afetados pela sarna, conforme já noticiado anteriormente pelo Campo Grande News.

Cadeiras de rodas quebradas, ausência de leitos e falta de acesso à Rede de Atenção Psicossocial revelam, segundo o relatório, “um ambiente de sofrimento físico e psicológico constante”.

A alimentação, por sua vez, é descrita como insuficiente e de baixa qualidade, composta por marmitas de peso reduzido e alimentos ultraprocessados, como três salsichas por marmita. Em alguns casos, o alimento é usado como forma de punição, com presos submetidos a jejum forçado de até dois dias após desentendimentos ou supostas infrações disciplinares.

No relatório, o MNPCT classifica essa prática como tortura. Também são recorrentes denúncias de castigos físicos, isolamento abusivo e restrição de banho de sol, medidas sem respaldo legal.

Relatório denuncia tortura e abandono nos presídios de Mato Grosso do Sul
Infiltrações, paredes quebradas, rachaduras, instalações sanitárias danificadas. (Foto: MNPCT)

Indígenas - O documento evidencia a vulnerabilidade da população indígena nas prisões de Mato Grosso do Sul, especialmente na Penitenciária de Dourados, onde estavam 229 pessoas autodeclaradas indígenas no dia da inspeção. Os custodiados enfrentam barreiras linguísticas e culturais no acesso à justiça, à saúde e à defesa, sem intérpretes, perícias antropológicas ou políticas específicas, comprometendo seus direitos.

Além disso, conforme o relatório, os indígenas sofrem maior exposição à violência, à discriminação e ao isolamento em celas superlotadas, com pouca articulação entre o sistema prisional e a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), evidenciando, conforme o MNPCT, um padrão de racismo institucional que ignora suas especificidades culturais e viola direitos fundamentais.

Máxima - Em Campo Grande, o presídio conhecido como “Máxima” (Estabelecimento Penal Jair Ferreira de Carvalho) apresenta superlotação elevada. Segundo o relatório, 2.427 pessoas ocupam um espaço para 642 vagas, uma taxa de 378% acima da capacidade. O relatório descreve corredores alagados, paredes com mofo, esgoto, calor intenso e falta de ventilação. Internos dormem no chão ou em redes empilhadas, sem colchões, roupas de cama ou produtos de higiene.

Durante a vistoria, a equipe constatou que a alimentação no local é precária e repetitiva e que a assistência médica é quase inexistente. O MNPCT relata casos de doenças de pele, infecções e transtornos mentais não tratados, além de pessoas com deficiência e idosos abandonados sem cuidados. O ambiente foi classificado como “insalubre, perigoso e indigno”.

Na inspeção, o relatório identificou graves violações no Pavilhão VI, usado como um RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) ilegal. Os presos ali, conforme a inspeção, não tinham direito a visitas nem banho de sol e eram enviados ao local sem processo disciplinar formal. As celas eram escuras, úmidas, sem ventilação e infestadas por ratos e baratas. No dia da visita, os inspetores encontraram corredores alagados com água fétida e esgoto, evidenciando condições insalubres e degradantes.

 O relatório conclui que manter pessoas nessas circunstâncias por meses configura tratamento cruel, desumano e degradante.

“Não havia colchões, sendo obrigadas a dormir diretamente sobre o piso de concreto. Ademais, não dispunham de escova e pasta de dente, itens de higiene pessoal, pertences ou material de limpeza. Verificou-se também a falta de água e de energia elétrica, bem como a proibição de trazer pertences pessoais. Pessoas recolhidas a este pavilhão relataram não ter sido submetidas a qualquer processo administrativo disciplinar”, afirma o relatório.

Relatório denuncia tortura e abandono nos presídios de Mato Grosso do Sul
Presidiários sofrem com doenças de pele, como furúnculo. (Foto: MNPCT)

Isolamento - Apresentada como modelo de segurança máxima, a Penitenciária Federal de Campo Grande foi descrita pelos inspetores como um ambiente de confinamento extremo e desumanizado. Cada pessoa permanece 23 horas por dia trancada sozinha em cela individual, sem contato físico com outras pessoas nem acesso à luz natural. As janelas são vedadas, o ar é abafado e a temperatura elevada, condições que o relatório considera cruéis e degradantes.

Em relação à saúde mental, o quadro observado chama a atenção, pois os presos relataram adoecimento psicológico severo decorrente do isolamento extremo, ociosidade e restrição sistemática de contato humano. Muitos afirmaram que a prisão na unidade é “enlouquecedora”, com relatos de incentivo ao suicídio e comportamentos que lembram um “hospital psiquiátrico”, evidenciando sofrimento intenso e comprometimento psíquico generalizado.

Apesar de o contrato com o presídio prever seis refeições diárias, os custodiados afirmaram à comissão que recebem apenas três por dia, café da manhã, almoço e jantar. O resultado é um jejum prolongado de 13 a 14 horas durante a noite, e todos relataram que a alimentação é insuficiente, causando fome, sobretudo no período noturno.

Relatório denuncia tortura e abandono nos presídios de Mato Grosso do Sul
Instalações sanitárias precárias e fiações expostas em Dourados (Foto: MNPCT)

Tortura - Os inspetores destacam ainda o uso sistemático da violência como método de controle nos presídios do Estado. Há registros de castigos coletivos, uso abusivo da força e de spray de pimenta e isolamentos prolongados sem justificativa formal. O relatório afirma que as unidades mantêm práticas que configuram tortura, tanto física quanto psicológica, e denuncia a “naturalização da crueldade como instrumento disciplinar”.

Na Penitenciária Estadual de Dourados, por exemplo, os presos teriam relatado à comissão que agentes penais teriam disparado spray de pimenta dentro de celas fechadas, aumentando o risco de asfixia, além de agressões físicas por parte de policiais penais, quando pediam ajuda por problemas de saúde.

Também foram denunciados espancamentos com fraturas nas costelas e violência contra uma pessoa LGBTI+, sem que os agentes interviessem, evidenciando omissão e abuso por parte da segurança.

Em suas conclusões, o MNPCT afirma que o sistema prisional de Mato Grosso do Sul opera em colapso sanitário e institucional, com tortura disseminada, ausência de políticas de saúde e educação e violação sistemática de direitos básicos. As condições observadas, segundo o documento, “não apenas violam normas nacionais e internacionais de direitos humanos, mas evidenciam a falência da função ressocializadora da pena”.

O órgão recomenda ações urgentes dos governos estadual e federal para garantir alimentação, água, saúde e dignidade, além da investigação das práticas de tortura e da revisão dos regimes disciplinares abusivos. Para o relatório, os presídios do Estado são “espaços de sofrimento extremo, onde a punição ultrapassa todos os limites da legalidade e da humanidade”.

Relatório denuncia tortura e abandono nos presídios de Mato Grosso do Sul
Celas escuras, com pouca ventilação e altas temperaturas (Foto: MNPCT)

Resposta da Agepen – A Agepen (Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário) administra a PED, de Dourados, e a Máxima, de Campo Grande. A agência  informou, por meio de nota, que ainda não recebeu formalmente as recomendações do MNPCT, mas destaca que vem implementando ações alinhadas ao Programa Nacional Pena Justa.

Entre essas medidas estão a ampliação de vagas no sistema prisional com a construção de quatro novos presídios masculinos e ampliações em unidades existentes, totalizando 1.954 novas vagas, além de reformas estruturais em celas e manutenção de instalações como caixas d’água.

No caso de Dourados, por exemplo, conforme a Agepen, "as caixas d’água foram reformadas, e não há qualquer racionamento de água nem fornecimento de água imprópria para consumo".  Em relação às doenças, a Agência informou que medidas foram tomadas para combater os focos de escabiose (sarna) e furunculose na PED.

Segundo a nota, o fornecimento de alimentação, água, colchões e kits de higiene é supervisionado por servidores e fiscalizado pelo Ministério Público e Judiciário, garantindo condições adequadas para os internos. No campo da ressocialização, o governo do Estado desenvolve projetos de educação formal, cursos profissionalizantes e oficinas de trabalho, com 33,53% da população carcerária inserida em atividades laborais, acima da média nacional.

A assessoria de imprensa informou que a assistência à saúde segue a PNAISP (Política Nacional de Atenção Integral à Saúde Prisional), com setores de saúde funcionando dentro das unidades. Entre as inovações recentes, destaca-se a implantação do cartão de visitante, que pode ser solicitado online, facilitando o acesso dos familiares e aumentando a segurança na administração das unidades prisionais.

Quanto ao uso da força, a Agepen ressalta "que policiais penais não utilizam sprays de pimenta ou granadas de gás lacrimogêneo em rotinas diárias, sendo esses instrumentos empregados exclusivamente em situações de intervenção ou retomada de controle da ordem, seguindo protocolos operacionais padronizados e em consonância com as normativas nacionais de uso diferenciado da força".

Para a Agepen, "as informações descritas no relatório do MNPCT são baseadas em relatos de internos, sem constatação direta, por parte dos peritos, de situações de tortura durante as inspeções. As unidades prisionais do estado são constantemente fiscalizadas pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, o que assegura o acompanhamento regular das condições de custódia".

No que se refere aos internos indígenas, a Agepen informou que "mantém uma rotina de inclusão e respeito à diversidade cultural. Internos que dominam o idioma de suas etnias atuam como intérpretes de seus pares, com direito à remição de pena pelo trabalho. Já os intérpretes judiciais e laudos antropológicos constituem atribuições do Poder Judiciário, responsável por garantir esses instrumentos no âmbito dos processos legais".

Relatório denuncia tortura e abandono nos presídios de Mato Grosso do Sul
Corredores do pavilhão de isolamento na Máxima alagados com água de esgoto. (Foto: : MNPCT)

Segue a nota na íntegra:

“A Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário (Agepen) ainda não recebeu formalmente o documento com as recomendações do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). No entanto, a Agepen informa que vem adotando uma série de medidas em consonância com o Programa Nacional Pena Justa, resultado de um trabalho conjunto entre o Governo do Estado, o Poder Judiciário e demais órgãos vinculados à execução penal.

Entre as ações em andamento está o enfrentamento à superlotação carcerária por meio da ampliação de vagas no sistema prisional. Estão previstas a construção de quatro novos presídios masculinos de regime fechado, que somarão 1.632 novas vagas. Além disso, duas ampliações de unidades já estão em andamento: uma no interior, com 186 novas vagas, e outra na capital, com 136 vagas adicionais. Ao todo, serão 1.954 novas vagas destinadas ao regime fechado masculino.

Obras de melhorias estruturais também estão sendo executadas, incluindo reformas em celas do Estabelecimento Penal Jair Ferreira de Carvalho e manutenção das caixas d’água da Penitenciária Estadual de Dourados. A Agepen esclarece que não há registros de racionamento de água nem de fornecimento de água imprópria para consumo nas unidades prisionais administradas pelo órgão.

A alimentação dos internos é fornecida por empresa terceirizada, sob fiscalização de servidores designados, com pesagens diárias e inspeções periódicas realizadas pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário durante visitas regulares. Colchões e kits de higiene pessoal são repostos de acordo com a necessidade, e os familiares podem fornecer itens básicos adicionais, garantindo acesso contínuo a esses materiais.

No âmbito da ressocialização, diversos projetos são desenvolvidos nas unidades penais de Mato Grosso do Sul, incluindo educação formal da alfabetização ao ensino superior, cursos profissionalizantes e oficinas de trabalho. Com mais de um terço da população carcerária inserida em atividades laborais, o estado se destaca nacionalmente, com 33,53% dos internos trabalhando, acima da média nacional de 26,15%, figurando entre os 10 estados com os melhores índices de reinserção por meio do trabalho prisional, conforme dados da Senappen.

A assistência à saúde prisional segue a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde Prisional (PNAISP), sob responsabilidade das secretarias estadual e municipais de saúde, com setores de saúde funcionando como unidades básicas dentro das unidades prisionais.

Entre as inovações recentes, a Agepen implantou o cartão de visitante, documento obrigatório para acesso às unidades prisionais, que pode ser solicitado online, sem necessidade de comparecimento presencial. A medida representa um avanço tanto para os familiares quanto para a administração pública, promovendo mais segurança e agilidade no acesso às unidades”. *Matéria editada às 23h30 para incluir posicionamento da Agepen sobre as denúncias de tortura, a questão da saúde e a situação dos indígenas.

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