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Capital

Antes de morrer, Dulci foi a avó que amava sorrir, cozinhar e fazer crochê

"Feminicídio não tem idade. É decorrente da nossa sociedade machista e patriarcal, que a mulher é vista como inferior", diz juíza

Paula Maciulevicius Brasil | 01/12/2020 12:40
O marido Vicente, que matou Dulci e ainda colocou fogo na casa, aparece ao lado da esposa junto com os netos dela, Rebecca e Mateus. (Foto: Arquivo Pessoal)
O marido Vicente, que matou Dulci e ainda colocou fogo na casa, aparece ao lado da esposa junto com os netos dela, Rebecca e Mateus. (Foto: Arquivo Pessoal)

"Parece algo bobo, mas a gente chegava e falava 'oi vó' e já começava a rir". As lembranças que hoje consolam o neto Mateus Marques Martinelli, de 26 anos, são carregadas de saudade e com o sotaque curitibano. Mesmo tendo deixado o Paraná há anos, dona Dulci ainda tinha o "erre" como herança.

Mãe, avó e bisavó, Dulci da Silva Martinelle morreu depois de ter a casa incendiada pelo marido na madrugada de ontem, no Bairro Tarsila do Amaral, em Campo Grande, mostrando que feminicídio não tem idade. Dona Dulci tinha 80 anos e o marido que a matou, Vicente Mendes de Campos, tem 76.

Nascida em Curitiba, foi ainda criança que ela veio morar em Mato Grosso do Sul. Se casou, ficou viúva, casou novamente e se despediu de mais dois maridos. Teve 10 filhos no total, um morreu ainda criança e a outra faleceu há quase 20 anos. Viu nascer e serem criados pelo menos 12 netos e deixou uma bisneta.

Parte dos netos de dona Dulci ao redor do bolo de comemoração aos 78 anos da avó. (Foto: Arquivo Pessoal)
Parte dos netos de dona Dulci ao redor do bolo de comemoração aos 78 anos da avó. (Foto: Arquivo Pessoal)

"Eu gostava da forma como a gente fazia ela rir de coisas engraçadas, quando a gente imitava o sotaque dela com o 'R' puxado e a gente dava risada", recorda Mateus. Fora de Campo Grande, ele não esteve no velório nem no sepultamento da avó, e de consolo, repete para si mesmo que da forma como aconteceu, é melhor manter a imagem da avó sorrindo.

A família sabia que a relação com o marido era complicada, tanto é que já tinham até tentado tirá-la do casamento, mas ela voltava. Ninguém jamais pensou que fosse acabar assim. Em chamas.

"Talvez devido a forma como ela foi criada, para servir ao marido, ela cedeu. Não sabemos o quanto terror psicológico ele deve ter colocado na cabeça dela para ela ter continuado com ele", afirma o neto.

O sentimento de posse do marido, já relatado em outras matérias, limitava o contato dos filhos e netos. Eles estavam juntos há cerca de 10 anos. "Apesar disso, sempre fazia questão de ir vê-la com minha prima para que ela se sentisse melhor. A gente gostava de ir durante a tarde para comer pão caseiro que ela vazia e tomar café com leite, às vezes ela me dava um tapete de crochê que fazia", narra o neto Mateus.

Uma das netas, Rebecca Martinelli, de 20 anos, fala que sempre recebia ligações da avó que queria saber como ela estava. "Minha vó era uma mulher muito sorridente, amava fazer seus tapetes, tomar chimarrão e cozinhar", descreve. A saudade vai ficar no carinho que dona Dulci demonstrava a ela e a filha. "Sempre telefonava para saber como estávamos".

Na casa incendiada, fotos de uma Dulci nova ao lado dos porta-retratos do casal. (Foto: Silas Lima)
Na casa incendiada, fotos de uma Dulci nova ao lado dos porta-retratos do casal. (Foto: Silas Lima)

A história de Dulci daria um livro de tão bonita que foi a vida que ela viveu. As palavras são da irmã, Dirce da Silva Gonçalves, de 78 anos, que por conta da covid-19 não foi ao enterro. Agradecida pela chance de falar da irmã, ela reafirma a todo momento que Dulci não merecia essa morte

"Ela tinha 80 anos, ela era uma pessoa extremamente bondosa, adorava fazer o bem para as pessoas, foi excelente. Só tinha qualidades e que eu me lembre, nunca levantou a voz pra ninguém", resume.

Dona Dulci era costureira, também fazia trabalhos manuais e cozinhava muito bem. "Era perfeita em tudo", lamenta Dirce.

Feminicídio - Em entrevista anterior, um dos filhos de dona Dulci, José Paulo Martinelli fala que pela idade da mãe, a família esperava um desfecho que caminhasse para causas naturais ou doenças, nunca um feminicídio. "A minha mãe tinha 80 anos, a gente esperava que ela fosse morrer de qualquer coisa, covid sei lá, menos dessa forma".

"Feminicídio não tem idade. É decorrente da nossa sociedade machista e patriarcal, que a mulher é vista como inferior ao homem, propriedade do homem. Geralmente um homem que não aceita o fim do relacionamento ou a autonomia da mulher, ela está passível sim de sofrer violência doméstica".

A fala é da responsável pela Coordenadoria Estadual da Mulher em situação de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Mato Grosso do Sul, juíza Helena Alice Machado Coelho, e resume bem a explicação de que a característica da violência contra a mulher é justamente não haver perfil nem idade.

Imagem do quarto incendiado onde dona Dulci foi encontrada. (Foto: Silas Lima)
Imagem do quarto incendiado onde dona Dulci foi encontrada. (Foto: Silas Lima)

"Desde que você se reconheça como mulher, dentro do gênero feminino, você está passível de sofrer violência doméstica. Dos 8 aos 88, não existe uma idade em que se é vítima", exemplifica a magistrada.

De um modo geral, a juíza ressalta que o feminicídio ocorre, invariavelmente, numa escalada de violência, por isso é importante que desde a primeira situação, a vítima procure as autoridades. "Seja injúria, ameaça, lesão mais leve, ou vias de fato. Desde a primeira situação, a mulher já deve procurar as autoridades".

Dona Dulci já tinha, segundo a família, feito uma denúncia contra o marido em outubro e pedido medida protetiva, mas acabou voltando para casa. No momento em que a perícia estava na casa incendiada, o filho José Paulo Martinelli relatou que a mãe já tinha sofrido ameaça de morte e que Vicente não a deixava sair, além de ser muito ciumento e agressivo.

A juíza ainda reforça para que nenhum tipo de violência seja menosprezada. "Se for o caso, faça o pedido de medida protetiva, porque elas são efetivas, elas salvam vidas. Ano passado, das mais de 30 vítimas de feminicídio, a totalidade delas não tinham medidas protetivas em vigor".

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