No Dom Antônio, favela ficou para trás e deu lugar a novos sonhos
Bairro, formado durante um dos maiores programas de desfavelamento da cidade, concentra histórias de recomeços e, hoje, tem na segurança a principal preocupação
A 16 quilômetros do Centro, o bairro Dom Antônio Barbosa, em uma das regiões mais populosas de Campo Grande, recebeu na década de 1990 centenas de famílias que, à época, foram retiradas de áreas consideradas de risco à beira de córregos. No dia em que o município completa 119 anos, o Campo Grande News volta no tempo e resgata a história de um dos maiores programas de desfavelamento registrados na Capital.
"O desafio era regularizar as áreas invadidas. Emitir o título para cada morador e abrir novos loteamentos para não se formar outras favelas", rememora o advogado Youssif Domingos, que entre 1993 a 1996 exerceu o cargo de secretário Municipal de Habitação e Assuntos Fundiários, na época foram iniciados dois processos de regularização fundiária. Youssif, que foi vereador, deputado estadual e hoje presidente a Agepan (Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Mato Grosso do Sul), traduz com um número a importância da ação de transferência das famílias. "Foram 10 mil famílias atendidas".
Para aquelas que não tinham condições, foram doados kits de material de construção. "Foi esse programa que deu o ponta pé inicial para regularização definitiva e tirou a cidade do ranking das capitais com o maior índice de favela", cita o então secretário.
De lá para cá, o bairro que leva o nome do primeiro arcebispo da Capital cresceu muito com as instalações de creches, escolas, posto de saúde, projetos sociais e comércios. Muitas famílias que vieram do interior viram no bairro a oportunidade de crescimento, apesar de muitos reclamarem da criminalidade.
Eles contam que a época de “matança e tiroteio” já passou. Porém, brigas de gangues entre moradores do Dom Antônio Barbosa e Parque do Sol, bairros separados pela rua Evelina Selingard, uma das principais vias, continuam tirando o sossego. O entorno também abriga o maior lixão da cidade, que já serviu de fonte de renda para muita gente.
"Nova vida" - Quando a dona de casa Luciene Pereira Alves, 47 anos, se mudou para a rua Rosa Orro, há 23 anos, só havia mato. Ela, que tinha quatro filho pequenos, o mais novo era um bebê de 15 dias, saiu do Jardim Aeroporto para morar no terreno oferecido pela prefeitura.
“A taxa do programa de habitação era mínima. Morei num barraco com lona cedida pela prefeitura até construir uma peça de alvenaria. No começo foi ruim. Não tinha nada, mas foi aqui que consegui criar meus filhos”, orgulha-se. Hoje, o imóvel de Luciene tem quatro peças. O pai dela vive numa edícula nos fundos. Os três dos quatro filhos casaram e moram em outros bairros.
Além do progresso, a moradora acompanhou a marginalidade crescer junto com a comunidade. “Em vista do que era, temos quase tudo. Mas ainda precisamos de um posto policial. Aqui tem muita briga de gangue. Já foi pior. Já vi muito jovem morrer assassinado e ser preso, mas volta e meia ainda escuto barulho de tiros. Quanto aos roubos e furtos, deu uma melhorada”, afirma.
No entanto, quem não vive ali, viu no bairro a oportunidade de montar comércio em razão da grande quantidade de consumidores. A comerciante Viviane Oliveira Alencar, 19 anos, tinha loja de roupas no Bairro Coophavila, mas há 3 meses, depois de uma pesquisa de mercado, resolveu alugar um salão por R$ 500 e montar o negócio no Dom Antônio.
“Visitei vários bairros. Mas aqui tem um diferencial. Há muitas jovens e adolescentes - público-alvo da loja”, diz a comerciante Viviane.
Vindo de Água Clara, Genaldo Oliveira Lima, 59 anos, deixou a fazenda onde trabalhava para tentar a vida como comerciante na rua Adelaide Maia Figueiredo. O plano deu certo. Ele montou uma mercearia e depois de quase 10 anos vivendo de aluguel conseguiu construir, na mesma rua, a casa própria com um salão. “O bairro melhorou muito. Antes não tinha asfalto. Agora tem em algumas ruas”, comemora. Para ele, a única coisa que falta é uma Casa Lotérica.
Há 21 anos, Ramona Rodrigues, 60 anos, também foi beneficiada com o programa da prefeitura e construiu duas peças para morar com os cinco filhos. Por muitas vezes, a dona de casa recorreu ao lixão para tirar o sustento e se orgulha em dizer que nunca deixou faltar nada para a família
Uma das recordações ruins que carrega no coração é a morte do filho quando ele seguia de bicicleta para trabalhar no lixão. "O caminhão passou por cima dele", conta. O seguro DPVAT (Danos Pessoais Causados por Veículo Automotores de Via Terrestre) recebido em razão da morte do rapaz - com 21 anos na época - foi usado para terminar a construção do imóvel, onde mora hoje com uma das filhas e vende geladinho para completar a renda.
Há moradores que iam buscar água na mina localizada na redondeza para cozinhar, tomar banho e fazer os serviços domésticos. Dona Emília Maria de Lucas, 66 anos, criou os sete filhos em uma casa na Rua Cecília de Araújo. Ela lembra que quando chegou ao bairro não tinha água nem energia elétrica. Hoje, a moradora mora com uma filha deficiente de 42 anos.
Memória - O prefeito Marquinhos Trad (PSD) participou do programa de desfavelamento quando foi para a Secretária de Assuntos Fundiários do Município - na gestão Municipal de André Puccinelli. "Conheci o dia a dia de um favelado. Recebemos a cidade com 119 núcleos de favela e assentamentos irregulares. Entregamos com apenas 17. Campo Grande foi a capital do desfavelamento. Recordo com carinho daquele bairro, que cresceu bem mais do que imaginávamos".