Sem chefe, conselhos tutelares falham em evitar tragédias
Conselheiros são eleitos pelo voto e têm autonomia; qualidade do serviço volta ao debate após morte de menina

RESUMO
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O funcionamento dos conselhos tutelares enfrenta desafios devido à ausência de uma chefia centralizada, já que seus membros são escolhidos por eleição popular. Embora essa independência favoreça cobranças ao poder público, a efetividade do serviço depende do comprometimento individual de cada conselheiro. A discussão sobre a qualidade dos serviços ganhou destaque em Campo Grande após casos recentes de violência contra crianças. Dados do Atlas da Violência 2025 revelam que mais de 65% das agressões contra menores ocorrem dentro de casa. A cidade conta com 40 conselheiros tutelares, distribuídos em oito regiões, que enfrentam desafios como falta de estrutura e necessidade de maior capacitação.
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) atribuiu tanta relevância aos conselhos tutelares no Sistema de Garantia de Direitos que destinou um capítulo exclusivo a esse serviço, que é uma porta de entrada para o conhecimento de violência e violação de direitos e um meio de busca de soluções.
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Para assegurar a independência aos profissionais, foi definido que os conselheiros seriam escolhidos por eleição popular, realizada no ano anterior à escolha de prefeitos e vereadores. Se, por um lado, a condição favorece o trabalho de fazer cobranças ao poder público, por outro, deixa sem comando um serviço essencial e é nas lacunas que podem surgir “furos” na rede de atendimento, já que o comprometimento depende do esforço pessoal de cada conselheiro eleito.
A importância e a qualidade dos serviços dos conselheiros tutelares voltaram a ser debatidas em Campo Grande na semana passada, após uma menina de seis anos ter sido retirada de casa por um amigo dos pais. Horas depois, quando sua ausência foi percebida, constatou-se que ela havia sido estuprada e assassinada. O autor do crime foi morto no dia seguinte, durante ação policial para prendê-lo.
O tema não é novo. No começo de 2023, outra morte de criança causou comoção e revelou falhas e falta de comunicação entre os agentes da rede de proteção. Sophia Ocampo, de 2 anos, tinha histórico de passagens por serviços de saúde. O pai, Jean, já tinha procurado a polícia e o sistema de Justiça. O padrasto e a mãe foram condenados pela morte da menina.
Depois dela, outras histórias trágicas mantiveram o questionamento sobre como tornar os serviços mais efetivos, especialmente porque muitas violações ocorrem dentro de casa, como na morte de uma bebê em Camapuã, em julho, e de outra, queimada, em maio, na Capital, ambas tendo os pais como autores. Dados do Atlas da Violência 2025 apontam que 67,8% das agressões contra crianças de zero a quatro anos acontecem dentro de casa. Entre cinco e 14 anos, o índice chega a 65,9%.
O caso da menina assassinada passou pelo Conselho Tutelar Sul, o mais antigo da cidade, que fica no Aero Rancho e também era conhecido pelos serviços de saúde e de assistência social da Prefeitura. Foi acompanhado como situação de família vulnerável pela pobreza, com fornecimento de alimentação e inclusão em programa social. Não foi confirmado se conselheiros acionaram a polícia, embora houvesse suspeita de violência. A história fica mais complicada porque a reportagem do Campo Grande News descobriu que a mãe da criança foi interditada pela Justiça, diante de déficit intelectual, com capacidade equivalente à de uma criança de nove anos.
O ECA só fala em atribuições dos conselheiros, deixando a organização da rotina aos municípios. Na Capital há lei que prevê exigência de formação superior para os candidatos à função e também prevê punições por falhas disciplinares, que podem chegar à perda do mandato, a serem apuradas pela secretaria responsável pelos conselhos, e também há uma Comissão de Ética, formada por integrantes do sistema de Justiça e do CMDCA (Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente).
No final do ano passado, um projeto de lei propunha reorganizar o CMDCA e a situação dos conselhos, incluindo a centralização de plantões. Houve críticas à iniciativa e, em fevereiro, a Prefeitura retirou o texto da Câmara Municipal para mais debates.
Serviços integrados: o melhor dos mundos – A cada debate sobre a qualidade da atenção básica às crianças repete-se o que consta no ECA: os serviços devem dialogar. A lei fala que o Poder Executivo deve estar integrado “com os órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, com o Conselho Tutelar, com os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e com as entidades não governamentais que atuam na promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente”, além de mencionar a necessidade de qualificação permanente, o que nem sempre ocorre na prática.
Depois da morte de Sophia, surgiu a ideia de criação de um centro reunindo todos os serviços, a exemplo do que ocorre na Casa da Mulher Brasileira. A Sejusp (Secretaria de Justiça e Segurança Pública) recebeu uma área da União, fez um projeto e a licitação pode sair este ano para a obra ocorrer em 2026.
A proposta não é nova. O mesmo prédio onde funciona o Conselho Sul, o mais antigo, que atendeu denúncias sobre maus-tratos à criança assassinada na semana passada, já foi um centro com os dois conselhos tutelares que existiam à época (hoje são oito), os serviços do sistema de Justiça e outros órgãos públicos. Com o passar do tempo, a ideia foi abandonada.

Qualificação e fiscalização – A Capital tem 40 conselheiros tutelares, eleitos no final de 2023 e empossados no começo do ano passado para mandato de quatro anos, distribuídos por região. O Ministério Público tem a tarefa de acompanhar a rotina e verificar se os serviços estão funcionando. Com a morte da criança, semana passada, a instituição informou que vai apurar se houve negligência no atendimento.
No começo deste ano foi instaurado um procedimento, conduzido pelo promotor Oscar de Almeida Bessa Filho, e nele constam relatórios trimestrais que os conselheiros devem apresentar às autoridades, incluindo a Justiça e o Poder Executivo.
Nos documentos, verifica-se o volume de denúncias de violação de direitos, como a necessidade de oferta de atendimento especializado em saúde, como neurologia, psiquiatria e psicologia, de mais vagas em creches, de contra turno para acompanhamento escolar. Também constam queixas por falta de funcionários para suporte administrativo, como a entrega de comunicados. Evasão escolar é outra demanda que chega enviada pelas escolas, um indício de negligência da família, mas é uma investigação que fica em segundo plano diante de emergências, como os casos de violência e risco à integridade física e de serviços emergenciais.
Entre as várias intervenções atribuídas pelo ECA aos conselheiros, estão a atuação em casos de violência e a possibilidade de determinar o acolhimento emergencial; já em outras situações, só a Justiça pode determinar a retirada de crianças do ambiente familiar. No caso da menina assassinada na semana passada, não há informações de que tenha havido episódio anterior na esfera policial.
Nos relatórios de todos os conselheiros, remetidos ao Ministério Público, há o pedido de uma delegacia com atendimento 24 horas, como é a proposta do centro integrado. Sem o serviço, existe um plantão — já que a Depac (Delegacia Especializada de Atendimento à Criança e ao Adolescente) funciona durante o dia e fecha à noite e aos finais de semana. Nos plantões, embora haja uma sala especial, os conselheiros relataram que as crianças ficam no ambiente onde há acusados de diferentes crimes.
Além deste procedimento, o promotor instaurou outro no mês passado para atender à exigência do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), que publicou a Recomendação nº 119, de 24 de junho de 2025, e traz uma série de atribuições aos integrantes, como “a adoção de providências para fortalecer a cooperação e integração entre o Ministério Público brasileiro e os Conselhos Tutelares”. O documento destaca o papel dos promotores para “fomentar a devida estruturação e atuação do Conselho Tutelar”, uma vez que o Conselho Tutelar é instituição integrante do Sistema de Garantia de Direitos, e recomenda pelo menos uma visita por ano para avaliar as condições dos conselhos.
Presidente da Associação dos Conselheiros Tutelares de Mato Grosso do Sul, entidade que representa cerca de 200 pessoas, Adriano Vargas vê na capacitação uma forma de assegurar serviços mais eficientes. O ECA fala em capacitação permanente. Vargas informou que todos os dias recebe pedido de ajuda de colegas sobre como registrar situações no SIPIA (Sistema de Informação para a Infância e Adolescência), o sistema desenvolvido pelo governo federal, ou qual o encaminhamento para determinado caso. “Não basta receber o mandato e se virar”, analisa.
A entidade já promoveu alguns cursos. Na Capital, a Prefeitura também ofereceu formação aos atuais conselheiros tutelares. Vargas considera que o pleno conhecimento das atribuições resultaria em maior foco, sem risco de se perderem em tarefas que não competem aos conselheiros.
Como a escolha de conselheiros é pelo voto, não raro candidatos têm proximidade a lideranças políticas e religiosas e fica a preocupação com o impacto no dia a dia do cumprimento das tarefas.
O conhecimento e foco já haviam sido cobrados pela juíza da Infância Katy Braun quando a rede de atendimento se reuniu após a morte de Sophia, em 2023. Na época, ela lembrou que o conselheiro não era um mero “despachante de luxo” e que precisava ir a campo. Quando o serviço volta a ser debatido, ela explica à reportagem que a insuficiência de recursos humanos e estruturais dificulta o acompanhamento adequado das famílias encaminhadas pelo Conselho Tutelar. "Existem lacunas no sistema de proteção que podem ser mitigadas por meio de políticas públicas [...] e o fortalecimento das redes de apoio comunitárias", diz.