Na ‘luta da retomada’, índios vêem inimigo público e poucos avanços
O dia 19 de abril para a maioria da população pode ser apenas mais um no calendário, mas para o povo originário do Brasil que, depois de 516 anos, continua lutando por um pedaço de terra é uma data de reflexão sobre os avanços na busca da qualidade de vida da geração futura. Nas aldeias de Mato Grosso do Sul, onde vive a segunda maior população indígena do Brasil, é momento de debate e fixação da cultura de um povo.
Lideranças indígenas de Mato Grosso do Sul reconhecem que nos últimos 16 anos ocorreram avanços na luta pela terra, mas os conflitos acabam acontecendo pela omissão do Poder Público, “que não prioriza a questão das indenizações das terras, tornando o processo muito demorado”, como reclama o kadiwéu Hilário da Silva, da Aldeia Alves de Barros, em Porto Murtinho.
Para ele, a luta pelo que chamam de retomada da terra indígena apresentou avanços, mas também foi marcada por decepções, por conta de muitas lideranças assassinadas, como ocorreu no caso do kaiowá Semeão Fernandes Vilhalva, 24 anos, baleado no fim de agosto de 2015, em disputa de uma área próximo a Aldeia Ñanderu Marangatu, no município de Antonio João, localizado a 279 da Capital, próximo à fronteira com o Paraguai.
Hilário lembra que os kadiwéu lutam por 538 mil hectares de terras em Mato Grosso do Sul, que seria uma área repassada por Dom Pedro II em reconhecimento à participação de seus ancestrais na Guerra do Paraguai. “Foi uma forma dele retribuir aos índios que estiveram na guerra”, comentou. No entanto, eles teriam mais de 100 mil hectares, ainda em litígio, mesmo com a definição de ser terra indígena.
Segundo ele, as outras nações indígenas lutam pela terra que os atuais proprietários dos títulos podem ter adquiridos de “boa fé, mas a maioria das terras no Brasil é indígena”, destaca. Conforme Hilário, as políticas públicas precisam ser revistas para evitar os confrontos. “Os produtores rurais defendem as terras por terem conseguido de boa fé e os índios consideram que são os verdadeiros donos”, afirma.
Esse também o pensamento do professor Alberto Terena, 48 anos, que é formado em pedagogia e entrou na luta pela retomada das terras em 2000. Morador da Aldeia Buriti, entre os municípios de Sidrolândia e Dois Irmãos do Buriti, ele conta que sua etnia reivindica a área desde antes da divisão do estado, quando seus avós viajavam até Cuiabá para pedir a demarcação das terras.
O professor Alberto, que dá aulas aos alunos do ensino fundamental da Escola Indígena Alexina Rosa Figueiredo, na Aldeia Buriti, diz que eles são acusados de infringir o direito de propriedade, “mas quem infringiu foi o Estado, quando desconsiderou a análise das áreas devolutas que pertenciam aos povos indígenas. Eles não tiveram a preocupação de verificar esse importante detalhe e estamos respaldados pela Constituição de 1988”, ressalta ele, acrescentando que a partir de 88, a Carta Magna deu prazo de cinco anos para demarcação das áreas.
De acordo com o professor, além da União, as unidades de federação, no caso o Mato Grosso do Sul não tiveram a preocupação de analisar o registro das áreas. Com isso, os índios ficaram de fora de suas terras por ignorância do Estado.
“Estamos determinados em busca de nossos direitos e melhorias para as novas gerações”, garante o professor Alberto. Para ele, não houve avanço significativo na luta pela terra, por falta de vontade política, mesmo os índios tendo buscado, por vários momentos, dialogar com o Estado e com os produtores.
Alberto conta que, após a morte do patrício Osiel Gabriel, em maio de 2013, na disputa próximo a Aldeia Buriti, aconteceu toda uma mobilização e o governo federal que tentou uma negociação com os proprietários dos títulos, mas nenhum acordo aconteceu devido ao valor da indenização não ser aceito. “Houve uma falsa esperança e percebemos que não estão querendo que haja demarcação das áreas”, comentou.
Outra liderança que também está na expectativa para uma solução às demarcações das terras indígenas é o atual coordenador do Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena), Lindomar Ferreira, 42 anos, que assumiu o órgão ligado à Sesai (Secretaria Especial da Saúde Indígena) do Ministério da Saúde, há menos de um mês.
Morador na Aldeia Cachoeirinha, no município de Miranda, a cerca de 200 km de Campo Grande, Lindomar disse que integra o movimento de retomada das terras indígenas desde 2003. Ele conta que de la para cá tiveram avanços, mas também perdas irreparáveis, lembrando também a morte de Oziel Gabriel, “que até então as autoridades não conseguiram identificar o assassino”, ressalta.
Dentre os avanços considerados pelo terena Lindomar está a decisão judicial que bloqueou os recursos do processo do leilão da resistência, feito por produtores do Estado para arrecadar fundos para contratar seguranças particulares para defender as fazendas contra os indígenas. Para Lindomar, o dinheiro seria para “pagar homens armados disfarçados de seguranças particulares”.
Diante do fato, Lindomar destaca que os próprios índios estão indo em busca de informações e se formando nas faculdades para fazer a defesa de seu povo. “Muitos jovens estão buscando conhecimento técnico e científico nas faculdades e retornando para ajudar seu povo”, conta o líder da Aldeia Cachoeirinha, que considera a luta de resistência em defesa da vida e do território acontece desde 1500 e não tão recente como algumas autoridades tentam imputar.
Em Mato Grosso do Sul, conforme dados do último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 2012, a população indígena chega a 61.737 pessoas, a segunda maior população indígena do País.
CPIs – Essas mesmas lideranças se dividem quando o assunto são as CPIs (Comissão Parlamentar de Inquérito) criadas na Assembleia Legislativa para apurar o envolvimento do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) nas reocupações de terras no Estado e a omissão do Estado nos atos de violência contra os povos indígenas em Mato Grosso do Sul, que ficou conhecida com CPI do Genocídio.
Para Lindomar, a luta de resistência em defesa da vida e do território acontece desde que os brancos chegaram ao País. No entanto, “as ONGs mais antigas datam de 30 a 40 anos enquanto nossa luta é secular”. Ele discorda sobre do fato que o CIMI estaria manipulando os índios. “Os indígenas conhecem seus direitos e passaram a atuar para garanti-los”, reitera.
Convocado a depor na CPI do CIMI, Lindomar deve depor na próxima semana. Ele disse acreditar que, pelo que acompanha dos depoimentos da Comissão, o resultado não deva ser positivo, considerando, em sua visão, que estaria havendo uma tentativa de “incriminar e fazer um pré-julgamento da entidade investigada.”
“Diante disso, acredito que o relatório final já estaria comprometido. Penso que o resultado final não vai levar a lugar algum“, comentou o terena Lindomar, acrescentando que em seu entendimento os políticos deveriam ter a grandeza de trazer a segurança jurídica para as partes, “tando para o índio quanto para o produtor. A CPI deveria apontar o caminho aos dois lados. Hoje vivemos em um estado de insegurança”, ressalta.
O Professor Alberto, que já depôs nas duas CPI's, também acredita que o resultado das comissões não vai melhorar em nada a vida dos indígenas. “Nas duas CPIS's percebo que eles não estão muito interessados em resolver nada e sim tentando incriminar as lideranças que buscam seus direitos.”
Alberto afirma que em Mato Grosso do Sul existe “genocídio sim”. Ele lembra que a todo momento há investidas contra as lideranças e cita como exemplo, além da morte de Oziel, o atentando a um ônibus indígena em Miranda, que até então são casos sem respostas. Também lembra os guaranis que vivem sob lonas acampados no sul do estado e até o confinamento de indígenas em pequenas áreas naquela região.
Contrariando o entendimento de Lindomar e professor Alberto, Hilário acredita que a CPI do CIMI tem importância para se buscar um horizonte de verificar a situação da ONG, ligada a igreja Católica, que atua em defesa dos indígenas. Em depoimento nessa segunda-feira, 18, ele disse que não tinha conhecimento sobre algum projeto concreto do CIMI nas comunidades do Estado. “Não vejo o Cimi atuar nas aldeias estruturadas, apenas em locais em que existe conflitos”, disse Hilário aos deputados da Comissão.
Dia do índio – Nas comunidades indígenas não é somente o dia de hoje que a população comemora. Hilário lembra a letra de uma música de Jorge Ben Jor que diz “Todo dia era dia de índio”. Na voz de Baby do Brasil passou a ser “Todo dia é dia de índio”.
“Consideramos a data especial por ser o momento de os indígenas poderem se manifestar, uma vez que os olhares são voltados à nossa população. Para nós, todos os dias temos a nossa luta, temos as nossas conquistas”, lembra Hilário.
Para o professor Alberto, o dia 19 é mais um dia de reflexão e de luta para o povo originário. “Na verdade, todo o mês de abril reservamos para chamar a comunidade e mostrar o processo de enfrentamento que desenvolvemos no dia a dia”, relata.
O professor conta também ser momento de festejar a nação indígena, para que não percam a esperança de uma vida melhor aos filhos e netos. “Perante todas as dificuldades, as crianças devem ter esperança. Para isso, aproveitamos para celebrarmos nossa cultura e a luta do nosso povo. Temos que estar juntos nesses momentos”, afirma o líder da Aldeia Buriti.
Lindomar também considera que a data, criada em 1940, durante o primeiro Congresso Indigenista Interamericano, ocorrido no México, e instituída em 1943, por Getúlio Vargas, é dia de reflexão sobre a vida do índio. “É momento em que refletimos sobre o que vivenciamos no dia a dia, os problemas e as lutas. Também é dia de mostrarmos às pessoas que não podemos ficar esquecidos”, observa.
Como termina a letra da música de Ben Jor, as falas das lideranças nesta matéria “é um choro de uma raça inocente que já foi muito contente, pois antigamente todo dia era dia de índio”.