O doce de vó, feito com mandioca e coco, leva terreiro à vitória nacional
Receita ligada à espiritualidade no candomblé venceu edital da Fundação Palmares

Feito com mandioca e coco, um doce ancestral que vem de vó atravessou histórias de vida e as fronteiras de Mato Grosso do Sul para representar o Estado em um concurso nacional. O Abadô de Nanã, receita ligada à ancestralidade e à espiritualidade no candomblé, foi o prato que levou o Ilê Asé Efunsolá de Ajagunã, no Jardim Seminário, a vencer o edital público “Sabores e Saberes”, da Fundação Palmares.
RESUMO
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O Ilê Asé Efunsolá de Ajagunã, terreiro de candomblé localizado em Campo Grande, conquistou reconhecimento nacional ao vencer o edital "Sabores e Saberes" da Fundação Palmares com o Abadô de Nanã, doce tradicional feito de mandioca e coco. A casa foi a única representante de Mato Grosso do Sul entre 45 selecionadas em todo o país. O doce, que carrega forte significado espiritual e ancestral, foi escolhido pelo babalorixá Geiser Barreto em homenagem à sua avó falecida. A premiação permitiu a aquisição de equipamentos de cozinha industrial, abrindo possibilidades para novos projetos sociais na comunidade.
A casa foi aprovada no edital no fim do ano passado e, desde o início de 2025, recebeu a premiação que possibilitou a compra de 16 kits de cozinha industrial, adquiridos com o recurso.
Nesta semana, o líder da casa, babalorixá Geiser Barreto, esteve em Brasília representando a casa em um encontro com outros pais e mães de santo premiados. Ele foi o único representante de Mato Grosso do Sul entre 45 casas selecionadas em todo o País.
Mais do que uma receita, o Abadô de Nanã carrega memória, fé e um elo profundo entre quem cozinha, quem oferece e quem se alimenta, tanto no corpo quanto no espírito.
“Nanã é a nossa vó. É o orixá mais velho”, explica Geiser Barreto, líder do Ilê Asé Efunsolá de Ajagunã. Mineiro de Belo Horizonte, iniciado ainda criança no candomblé, ele conta que a escolha da receita não foi por acaso.
“O ano passado foi o ano do falecimento da minha avó de sangue, dona Leda. Ela era uma mulher de Nanã, formiguinha, adorava doce. Aí eu pensei: por que não fazer o Abadô de Nanã? É um doce de vó, um doce que abraça”, relata.
Feito à base de mandioca amarela, ingrediente tão presente na cultura alimentar de Mato Grosso do Sul, coco e açúcar, o Abadô lembra o beijinho, mas é mais simples e acessível. “Não vai leite, então até quem é intolerante à lactose pode comer. É um doce que todo mundo pode consumir”, diz Geiser.
Essa simplicidade foi um dos pontos fortes no edital, que pedia uma receita vocativa, comida de orixá, ligada ao território, à ancestralidade e à possibilidade de geração de renda. “É uma comida ancestral, mas também é pagã, no sentido de que todo mundo come. Alimenta o sagrado e alimenta o profano”, resume o babalorixá.
No centro da produção do vídeo-receita esteve Glória Dayane, filha de santo da casa e responsável pelo preparo do Abadô durante as filmagens. A ligação dela com o doce é profunda, e atravessa momentos difíceis da vida.
“Eu cheguei na casa em um momento muito complexo. Estava desempregada, sozinha com três filhos. Me senti acolhida desde o primeiro dia”, conta. Foi ali que, ainda no início da caminhada religiosa, ela ficou responsável justamente pelo Abadô de Nanã em uma grande festa da casa.
“Eu pesquisei, estudei. A Nanã vem do barro, da criação do homem. E a mandioca também vem da terra, do barro fértil. Fiz essa analogia e aquilo falou muito comigo”, lembra.
Anos depois, a conexão se tornou ainda mais forte quando sua filha foi apontada dentro da religião como ekedi, cargo de cuidado e zelo, regido por Nanã. “Ali eu entendi que eu estava na casa pelos meus filhos. Nanã conduziu tudo”, destaca
Quando o edital surgiu e Geiser escolheu o Abadô, Glória viu as peças se encaixarem. “Na religião, a gente não acredita em coincidência. Tudo tem um porquê. Quando comecei a cozinhar para o vídeo, veio toda essa história. Eu me emocionei. Cada vez que faço esse doce, lembro de onde eu estava e de tudo o que foi construído”, analisa.
A produção do vídeo foi coletiva, feita pelos próprios filhos da casa, sob coordenação da produtora cultural Mariane Lopes, também filha de santo. “A casa é cheia de fazedores de cultura. Foi um mutirão de afeto, criatividade e identidade”, resume.
O vídeo mostrou o passo a passo da receita, mas também a história do terreiro, das pessoas e do território. “Falar de comida é falar de afeto. E democratiza o acesso à cultura afro-brasileira, quebra preconceitos”, afirma Mariane.
Para Geiser, ser o único representante do Estado e de parte do Centro-Oeste no edital também tem um peso simbólico. “Não é porque nossa casa é melhor. A gente queria ter muito mais representatividade. Mas falta acesso, falta suporte. Isso também é uma forma de preconceito”, avalia Geiser.
Ainda assim, ele define o candomblé como resistência. “Campo Grande é uma cidade linda, onde a natureza abraça a religião. E a nossa religião vem da natureza. A gente não desiste. O candomblé é lugar de acolhimento, de encontro, de família. É uma casa de afeto. E a comida ancestral é uma ponte para que as pessoas entendam isso”, finaliza.
Agora, com os kits de cozinha industrial, a casa já projeta novos caminhos. “Uma mandioca cozida proporcionou tudo isso. Agora a gente pensa em projetos sociais, em como ajudar mais pessoas”, brinca Glória.
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