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Comportamento

Até sem saber escrever, Unei leva jovens do crime à universidade

Enquanto João garantiu vaga na UFGD, Paulo conseguiu escrever até minibiografia

Aletheya Alves | 07/06/2023 07:26
Voltando a estudar na Unei, aluno conseguiu garantir vaga na UFGD. (Foto: Divulgação)
Voltando a estudar na Unei, aluno conseguiu garantir vaga na UFGD. (Foto: Divulgação)

Quando João (*) chegou à Unei Laranja Doce, não conseguia nem mesmo se concentrar para prestar atenção às aulas. Paulo (*), por sua vez, quase não compreendia o que estava escrito nos livros ou no quadro da Unei Pantanal. Hoje, o primeiro é estudante de Engenharia Mecânica na UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), enquanto o segundo conseguiu escrever até sua minibiografia.

Assim como o próprio nome indica, as Uneis são Unidades Educacionais de Internação e, teoricamente, o objetivo é que o adolescente permaneça apreendido enquanto recebe essa ressocialização focada na educação. Exemplificando como a ideia pode ser realidade, considerando inúmeros fatores, os dois alunos são daqueles que fazem os olhos da equipe se encher de orgulho.

Apreendido por assalto em Dourados, João havia parado de estudar no 1º ano do Ensino Médio e, conforme conta, em seu primeiro delito foi encontrado pela polícia. “Fui para a Unei, minha família continuou me apoiando, mas não vi eles porque pedi. É muito sofrimento”.

Durante mais de um ano em que permaneceu na Laranja Doce, precisou retornar aos estudos e, assim como a adaptação dentro dos muros foi difícil, pegar em seus cadernos também. Com uma rotina parecida com a de alunos regulares, ele explica que as aulas eram ministradas todas as manhãs.

Equipe de Dourados comenta sobre as mudanças causadas pela educação. (Foto: Divulgação)
Equipe de Dourados comenta sobre as mudanças causadas pela educação. (Foto: Divulgação)

Sendo sincero, o jovem conta que por muito tempo decidiu que realmente não queria estudar. Agora, já conseguindo sorrir, narra que a retomada foi complicada.

“Não tinha o que fazer, estudei porque era quase obrigado”, comenta João. E, quando já havia entrado no ritmo de aprendizado, relembrou que antes de tudo, gostava de Matemática.

Focando nisso e tendo apoio tanto da mãe quanto da equipe que o acompanhou, decidiu que iria tentar uma vaga na universidade. Mantendo o ritmo de estudos regular dentro da Unei, João explica que através do Enem conseguiu ingressar na UFGD.

Hoje, já fora da unidade, o desafio é conseguir se manter para persistir com os estudos na graduação de Engenharia Mecânica. “Quero trabalhar com carro, moto, mas aqui em Dourados mesmo. Tem muito serviço. Mas tudo é difícil, pagar conta, manter a faculdade”, diz.

Por isso, mesmo sem obrigação nenhuma, a equipe da unidade continua se esforçando para acompanhar o jovem e garantir que a educação retomada ali dentro não se perca.

Tendo chegado sem conseguir realmente ler, adolescente escreveu minibiografia. (Foto: Divulgação)
Tendo chegado sem conseguir realmente ler, adolescente escreveu minibiografia. (Foto: Divulgação)
Sonhos descritos no pequeno livro vão desde ter um emprego até conquistar casa na praia. (Foto: Divulgação)
Sonhos descritos no pequeno livro vão desde ter um emprego até conquistar casa na praia. (Foto: Divulgação)

Reescrevendo a história

Já em Corumbá, na Unei Pantanal, um dos alunos destaques é Paulo. Tendo chegado à unidade em 2022, o adolescente mal conseguia ler e escrever.

“Comecei nesse mundo muito cedo usando droga, depois fui furtar para pagar e acabei aqui”, resume o aluno. Diferente de João, que havia parado os estudos no Ensino Médio, Paulo ingressou no 6º e 7º ano quando perdeu a liberdade.

Contando que não se lembrava de como era uma rotina de estudos diária, alguns meses foram dedicados a entender que poderia tentar. Desde então, o interesse por livros foi notado pela equipe e, a partir dali, o adolescente decidiu que iria reescrever a história.

Com o processo de alfabetização comprometido, o primeiro desafio foi suprir essa falta e, através da leitura, o caminho evoluiu. Ainda com dificuldades, Paulo narra que depois de ler alguns livros, aceitou o desafio criado em conjunto ao professor de Português: escrever sua minibiografia.

Inspirado pelo livro “Caco” de Gilberto Mattje, que trata sobre um adolescente com psicológico abalado e que toma decisões duvidosas, Paulo quis transformar seu passado, presente e futuro em capítulos.

Escrito manualmente e colorido com desenhos, o pequeno livreto ganhou títulos no alto de suas páginas como “a vida do crime não compensa”, “Deus é mais”, “louco e sonhador” e “história de um menino de Miranda”.

A partir deles, Paulo reconta seus pensamentos, dúvidas e sonhos. “Sou de Miranda, tenho 17 anos de idade, e o sonho é grande igual o coração. Muitas pessoas sonham em ter a própria casa, um carro ou moto, mas meu sonho é comprar uma casa em Guarujá. Um dia vou realizar meu sonho, se Deus quiser”, escreveu em uma das páginas.

Reeducação dia a dia

Professora na Unei Laranja Doce, a professora Aparecida Jeanne Paz de Mattos explica que o processo de educação é diário na unidade. “Todas as oportunidades que os alunos em escolas gerais recebem, os alunos da Unei também recebem. Então, desde concursos até atividades, tudo faz parte e eles realmente se interessam, se empolgam”.

Assim como retomar o ritmo de estudos, a professora narra que os últimos anos intensificaram as dificuldades percebidas internamente. Isso porque a perda causada pela pandemia também afetou os adolescentes que estão apreendidos.

Diretor da unidade, José Marcondes Nantes de Brites explica que a ressocialização tem como pauta uma parceria intensa com a escolaridade. “Tudo o que fazemos tem essa parceria muito forte com a escola e quando nós vemos eles conseguindo entrar nas universidades, é uma alegria. Ficamos realmente orgulhosos porque esse é o objetivo”.

Da mesma forma que ocorre em Dourados, a percepção sobre a educação é compartilhada na Unei Pantanal. Coordenadora pedagógica, Laura de Abreu explica que o caso de Paulo, por exemplo, ilustra o que ocorre com diversos outros adolescentes.

“Ele teve um progresso significativo neste período de internação. Foi observado que mesmo com dificuldades, havia interesse por livros que temos na minha sala e aqui iniciou o processo de leitura”, explica Laura.

Responsável pelo projeto da minibiografia, o professor Rosenil dos Santos Gomes narra que propôs aos alunos que lessem alguns livros. E, com a ideia tendo dado certo, nasceu o desejo por parte dos internos em escrever sobre a própria vida.

Assim como Paulo, outros meninos também criaram seus livretos e, longe de manter a evolução sem liberdade, o projeto ingressou em feiras científicas.

(*) Os nomes dos adolescentes são fictícios para preservar sua identidade. 

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