Com 2ª maior taxa de feminicídio do País, por que continuam julgando a Capitu?
Na vida real de MS, jovem que usava esse nome foi encontrada morta dentro de mala
Na hora de fazer júri simulado em Mato Grosso do Sul, Estado que tem a 2ª maior taxa de feminicídio do Brasil, não há solução, é sempre Capitu quem vai parar nos bancos dos réus.
RESUMO
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Mato Grosso do Sul, segundo estado com maior taxa de feminicídio no Brasil, usa a personagem Capitu, de Machado de Assis, em júris simulados. A prática questiona a tendência de julgar a figura feminina, mesmo em casos fictícios, como o adultério de Capitu, que não é crime no Brasil desde 2005. O Ministério Público realizou dois júris simulados com estudantes, que absolveram a personagem. Em contraste com os julgamentos ficcionais, o estado enfrenta uma realidade violenta contra as mulheres. O Mapa da Segurança Pública 2025 aponta a taxa de feminicídio em 2,39 por 100 mil habitantes, atrás apenas de Mato Grosso. Campo Grande ocupa a sexta posição entre os municípios com mais registros de feminicídio em 2024, evidenciando a urgência de ações efetivas para combater a violência de gênero.
A despeito de ser uma personagem literária, da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, se instaurou no inconsciente coletivo dos leitores a pergunta: ela traiu ou não traiu o esposo Bentinho? Mas os simulados em série também retratam que no imaginário coletivo é sempre a mulher a ser julgada.
Apesar de a própria literatura também oferecer personagens masculinos para julgamento, vide Raskolnikov, o autor de duplo homicídio de Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, a rotina é ter a pobre da Capitu em julgamento. Vale lembrae que no Brasil a traição, suposta ou não, nem é crime.
O adultério deixou de ser crime há 20 anos, quando a Lei 11.106/2005 tirou do Código Penal a pena de quinze dias a seis meses de detenção para a prática.
Nesta semana, a predileção por julgar a personagem feminina também chegou ao MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul). Na quarta-feira (dia 11), o projeto “Vem pro MP” reuniu estudantes de colégio particular. Eles foram divididos em duas turmas e fizeram dois julgamentos de Capitu. Nos dois casos, o resultado foi pela absolvição da personagem, “inocentada” pelo crime de adultério.
Em 2019, Capitu foi parar de fato no banco dos réus, num julgamento dentro do Tribunal do Júri de Campo Grande. A ré Maria Capitolina Santiago era acusada pelo crime de adultério. A mulher teria mantido relações extraconjugais com Ezequiel de Souza Escobar, melhor amigo de seu esposo Bento de Albuquerque Santiago. Todos personagens de Dom Casmurro.
No júri simulado com os estudantes, as sessões de julgamento contaram com juízes de toga, bancada de advogados, comissão de promotores, depoimento de testemunhas e o interrogatório de Capitu.
Crime da mala – Na vida real, a única Capitu a passar pelo Campo Grande News foi uma jovem de 26 anos. Em 2012, o corpo da mulher, que era garota de programa e conhecida como Capitu, foi encontrado dentro de uma mala Corumbá, na Estrada do Assentamento, próximo ao lixão da cidade. Ela foi morta estrangulada por um militar, condenado a 20 anos de prisão.
A Capitu assassinada, num tempo em que o crime nem se chamava feminicídio, morava com a mãe e deixou três filhos.
Mapa da Segurança – Conforme o Mapa da Segurança Pública 2025, divulgado na quarta-feira (dia 11), Mato Grosso do Sul tem a segunda maior taxa de feminicídio do Brasil: 2,39 por 100 mil habitantes. Atrás somente de Mato Grosso (2,47).
Campo Grande é o sexto município do Brasil que registrou mais feminicídio em 2024.
Ciúmes, ego e controle – Ciúmes, ego e controle disfarçado de cuidado fazem parte do enredo que tristemente nos leva ao desfecho de um feminicídio.
“A maioria deles enxerga a mulher como propriedade. Ela é minha. Se não for minha, não vai ser de mais ninguém. Tem muto esse sentido de posse. Eles não tratam a mulher como uma pessoa, mas sim como propriedade. E eles têm um complexo de inferioridade absurdo. Quando vê a mulher romper, o ego fica ferido e partem para a agressão”, afirma a delegada Analu Ferraz, adjunta da Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher).
O controle do corpo e da vida da companheira também se torna regra para o homem violento. Ele começa a diminuir a mulher e querer impor uma rotina do chamado cuidado excessivo.
Uma pessoa controlar aonde você vai, aonde você deixa de ir, com quem você fala, com quem você não fala, a que horas você sai, a que horas você volta, por que demorou cinco minutos, por que parou para falar com o colega de trabalho, pede a senha das redes sociais. Isso não é normal. Isso não é a pessoa cuidando de você, isso é a pessoa te controlando”, destaca a delegada.
Nas ruas, traição ainda é algo que pesa na balança. Independente de "provas", para a maioria é "melhor investigar antes" a "confiança é tudo", campo-grandenses revelam reações opostas quando o amor entra em xeque
A resposta parece depender da idade, da experiência e até das feridas deixadas por amores antigos. Em Campo Grande, entrevistados de diferentes faixas etárias e vivências mostram que, embora o discurso da confiança seja valorizado, na prática, a dúvida costuma falar mais alto, especialmente entre os mais jovens.
“A gente espera um milagre” - O ourives Valmir Pareias da Silva, de 45 anos, fala com a voz de quem já foi marcado por decepções. “Fui corno duas, três vezes”, conta com sinceridade. Ainda assim, não abre mão da confiança como pilar de um novo relacionamento. “Ou você confia ou não confia. Não tem meio termo.”
Valmir garante que nunca vasculha o celular da parceira. “Se eu tiver que olhar WhatsApp pra saber de alguma coisa, já não vale a pena. Se não passa confiança, melhor nem continuar.”
“Dou uma conferida antes de falar” - A jovem Kaira Sobrinho, de 18 anos, enxerga a confiança com mais cautela. “Depende da situação. Geralmente eu confio, mas se a suspeita for forte, dou uma conferida antes de falar.” Segundo ela, “hoje ninguém quer amar, só trair”, e isso mina a segurança nos relacionamentos.
Kaira admite que investiga redes sociais em busca de sinais antes de confrontar qualquer parceiro. “Dou uma olhada nos seguidores, vejo se bate mesmo.”
“Confiança e diálogo resolvem tudo” - Já para Maria Lúcia Silva Lopes, de 66 anos e casada há mais de 40, a experiência ensina o caminho oposto. “Se tem dúvida, conversa. Desconfiança só faz mal”, resume. Ela afirma que o amor resiste ao tempo justamente por estar baseado em sinceridade e respeito. “O que a gente quer pra gente, não deve desejar pros outros.”
“Se precisar, até o Google Maps entra” - A empresária Katia Regina Sobrinho, 43 anos, tenta equilibrar a razão e o coração. Casada há 17 anos, ela valoriza a confiança, mas reconhece que a dúvida exige investigação, nem que seja com a ajuda da tecnologia. “Tem que conversar. Mas se tiver alguma coisa errada, também não pode deixar passar. Até usar o Google Maps se precisar”, brinca.
Apesar da piada, ela faz um alerta: “Hoje, sem diálogo, a confiança some. As pessoas vivem no celular, não se olham mais. Isso abre espaço pra desconfiança.”
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