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Comportamento

Regularizar favela não resolveu vida de quem sofre sem o básico

Apesar de promessas, a comunidade Só por Deus luta sem água tratada, rede de esgoto e asfalto

Por Natália Olliver e Aletheya Alves | 23/12/2024 07:03
Karla utiliza água da vizinha até para conseguir lavar louça. (Foto: Aletheya Alves)
Karla utiliza água da vizinha até para conseguir lavar louça. (Foto: Aletheya Alves)

A gente vive na fossa”, resume Yasmin Vieira dos Santos, moradora da Só por Deus.

No chão de terra batida, o anúncio de que o básico ainda não chegou na comunidade Só por Deus, localizada na região urbana do Anhanduizinho, em Campo Grande. Apesar das promessas feitas após regularização fundiária em 2022, moradores ainda lutam para conseguir algo essencial: água encanada, rede de esgoto e asfalto. E, embora a energia elétrica tenha chegado tarde aos olhos dos moradores, em 2023, ela apareceu e os residentes enfim puderam ver luz na favela de forma regularizada.

Os problemas começaram a ser resolvidos e os gatos deram lugar aos padrões de energia, mas os buracos sempre ‘são mais embaixo’. “Ninguém tem água ou encanamento de esgoto, essa luta continua aqui”. Há oito anos no local, Yasmim Vieira dos Santos, 26 anos, vive na comunidade com as filhas e o marido. Na casa de tijolos e reboco simples, ela recebe de bom grado a dupla de repórteres para mostrar a realidade de quem espera, já descrente de melhora, pelos pedidos no bairro Centro Oeste.

Registro da comunidade em 2020, antes da regularização emitida pela Prefeitura. (Foto: Aletheya Alves)
Registro da comunidade em 2020, antes da regularização emitida pela Prefeitura. (Foto: Aletheya Alves)
Caixa d'água na comunidade ainda é conquista de poucos. (Foto: Natália Olliver)
Caixa d'água na comunidade ainda é conquista de poucos. (Foto: Natália Olliver)

Ela conta que viveu altos e baixos morando na Só por Deus e que viu de tudo, inclusive o antigo barraco pegar fogo devido ao gato de energia, usado para ligar a bomba de água. Sem o líquido de forma encanada, o jeito foi improvisar usando poços. Aqui os moradores esbarram em outra dificuldade: o dinheiro para abrir os buracos no chão e ver o maquinário trazer a água.

De acordo com Yasmim, o custo do serviço passa dos R$ 400,00. Por sorte, um dos vizinhos trabalhava com construção e cavou a fossa na famosa “camaradagem”, ou seja, abaixo do valor de mercado. A conta ficou em torno de R$ 300,00. O recurso mínimo não é regra para todos, que precisam do verdadeiro “jeitinho brasileiro” de improvisos logísticos - por falta de recursos - para conseguir compartilhar as fossas.

Bomba de água foi conquista de Yasmin, que 'salva' outras famílias. (Foto: Natália Olliver)
Bomba de água foi conquista de Yasmin, que 'salva' outras famílias. (Foto: Natália Olliver)
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Antes da minha eu pegava água na vizinha, usava balde, galão azul e separava um para tomar e outros para o banho. Tudo era contado. Aqui já vi tanta coisa. Meu barraco mesmo, há três anos pegou fogo quando estava terminando de construir, sorte que já tinha legalizado tudo. Deu curto-circuito na bomba de água, porque não tinha padrão ainda, era gambiarra e foi pegando fogo em tudo", explica Yasmin.

Bomba compartilhada

Para ajudar os vizinhos, a jovem divide a bomba de água com mais três famílias. O insumo chega na casa deles através de mangueiras de jardim. A conta de energia é compartilhada entre as partes quando excede o valor do consumo mensal estipulado em até 220 kWh (quilowatt-hora). Isso porque, caso o gasto não ultrapasse o valor máximo, não há cobrança. Isso faz parte do programa Conta de Luz Zero, oferecido pelo Estado para pessoas em vulnerabilidade social.

A bomba de Yasmim é pequena e trabalha com dificuldade quando usada por muito tempo. Por isso, cada vizinho enche as caixas de água até duas vezes ao dia, conforme ela relata. Claro, alguns acabam usando mais que outros. O volume depende da quantidade de pessoas e da necessidade. Na casa dela, uma caixa por dia é o suficiente.

Além da dificuldade com água, ao passo que a conversa desenrola, o buraco vai ficando mais fundo. Tão profundo quanto a fossa seca que as famílias construíram embaixo dos sanitários para conseguir usar o banheiro.

Yasmim relembra que basta chover alguns milímetros para que o esgoto transborde e fique a céu aberto. Na comunidade, há uma piscina particular feita para que crianças e adultos aproveitem o pouco lazer oferecido. Não há parques ou praças públicas no local. A jovem relembra uma vez em que dejetos das fossas se misturaram com o vazamento de água limpa da piscina.

Em meio a tudo isso, mesmo sem rede de esgoto, moradores alegam estar sendo cobrados no valor de R$275,00 pelo serviço supostamente oferecido desde 2022. “No ano retrasado pediram pra umas vizinhas saírem das casas da esquina, que seria um local de água e esgoto, aí removeram elas, mas até hoje nada. Eles deram aluguel social para elas”.

Questionada pela reportagem, a Semadur (Secretaria Municipal De Meio Ambiente Desenvolvimento Urbano) informou apenas que, caso os moradores comprovem que a cobrança do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) - que abrange o saneamento básico (água e esgoto, coleta de lixo e limpeza urbana) - esteja sendo cobrado de maneira irregular, os proprietários devem procurar a Central de Atendimento ao Cidadão, com documentos pessoais, comprovantes de residência e a cópia do carnê do imposto.

“Assim, o processo é encaminhado à Semadur para a realização de vistoria e constatada a divergência, a alteração será realizada de imediato. Pontuamos, que tais alterações não impactam no valor do imposto”.

Caixa d’água, barata e sujeira

De acordo com dados do último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a comunidade Só por Deus tem 57 casas e 85 famílias. Enquanto a água encanada não chega, as caixas d’água abertas, baratas e sujeira no fundo dos tanques improvisados compõem o cenário rotineiro da moradora Ana Karla dos Santos Guerrise.

Na casa de alvenaria de um quarto, uma cozinha e um banheiro, ela mora com a mãe acamada e o namorado, Adriano Siscat.

“Cara falou que primeiro fariam o encanamento, nem isso fizeram ainda. Sem água é foda. Todo mundo usa mangueira, mas quando roubam a nossa é difícil. A gente traz a mangueira e coloca na bomba dela (Yasmin), faz com pedaço de borracha que a gente encontra. A Yasmim está salvando, não é qualquer um que tem condição de furar poço. Eu queria ter pra colocar um aqui” (sic), diz Ana Karla.

Recipiente para guardar água coletada diariamente não tem tampa. (Foto: Natália Olliver)
Recipiente para guardar água coletada diariamente não tem tampa. (Foto: Natália Olliver)

O valor pago para Yasmim pela água usada é de, em média, R$70,00 por mês. Ana usa dois galões por dia e separa um para as tarefas domésticas, como lavar a louça, e outro para banho. A parte destinada para o consumo também é separada. Os recipientes sem tampa permitem que os bichos façam, das caixas, piscinas particulares, e a poeira se deite no fundo do barril azul.

No banheiro sem luz artificial, Adriano fez um mecanismo para que a água desça pela caixa até o chuveiro.

Antes do problema de saúde da mãe, Ana era catadora de reciclado com ela. Juntas, elas reuniam o que ninguém quer para levar sustento para casa. Agora, a renda vem apenas de benefícios sociais.

Antes, a família tinha outros barris cobertos, mas agora o cenário se complicou. (Foto: Natália Olliver)
Antes, a família tinha outros barris cobertos, mas agora o cenário se complicou. (Foto: Natália Olliver)

Promessa, investimento e espera

No dia 23 de março de 2023 a prefeita Adriane Lopes assinou a ordem de serviço para instalação de 980 metros de rede de abastecimento de água esgoto na comunidade Só por Deus, durante o programa ‘Todos em Ação’, realizado no bairro Jardim Canguru. O investimento era de R$ 1,2 milhão. A assinatura também contou com a participação da coordenadora de responsabilidade social da Águas Guariroba, Bia Rodrigues e do gerente de serviços da concessionária, Rodrigo Moraes de Souza.

Sobre o assunto a prefeitura explicou que a Emha (Agência Municipal de Habitação e Assuntos Fundiários), presta assistências às famílias na comunidade Só por Deus e que já há projeto para implementação.

“Dentro do escopo do planejamento habitacional, atendeu as famílias com a regularização fundiária, e já possui projeto para iniciar as obras de saneamento, cuja execução será de competência da concessionária Águas Guariroba, porém, está na fase do reassentamento e adequações necessárias para liberação da área”.

Por sua vez, a concessionária reafirmou que o projeto está em andamento, mas que todo entorno da comunidade Só por Deus, que são o bairro Centro Oeste, Jardim Bálsamo, Jardim Canguru, Paulo Coelho Machado e Campo Nobre já está assistido pelo serviço de abastecimento de água e coleta de esgoto.  “A Águas Guariroba informa que aguarda regularização de uma área na comunidade por parte da prefeitura para que as obras possam ser concluídas”.

Filha de Yasmin ao lado do cano que compartilha a água. (Foto: Aletheya Alves)
Filha de Yasmin ao lado do cano que compartilha a água. (Foto: Aletheya Alves)

Recentemente, a empresa divulgou que nos últimos dois anos, o programa ‘Campo Grande Saneada’ implementou mais de 500 quilômetros de tubulação em diversos bairros e que a concessionária já conectou mais de 120 mil pessoas neste mesmo período. Em 2024  foram 204 quilômetros de rede implantados. A cobertura fechou em 93% na Capital.

Enquanto isso, a comunidade Só por Deus ainda luta para sair dos 7% que esperam pelo básico.

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