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Comportamento

Zaqueu cresceu com a mãe em cárcere privado, torturada e espancada pelo pai

O jovem é filho de dona Cira, mantida em cárcere pelo marido por 22 anos no Aero Rancho e libertada em 2013

Alana Portela | 22/04/2019 08:27
Zaqueu mostra a foto da mãe, 5 anos depois da libertação. (Foto: Kisie Ainoã)
Zaqueu mostra a foto da mãe, 5 anos depois da libertação. (Foto: Kisie Ainoã)

Foram dez anos de sofrimento, amarrado, espancado e agredido verbalmente. O mais sórdido nessa história foi ver a mãe trancada pelo marido em casa, ao lado de outros três irmãos menores, todos apanhando diariamente do pai. A vida de Cira da Silva virou inferno depois do casamento com Ângelo da Guarda Borges. Para Zaqueu Borges, hoje com 20 anos, as dores só começaram a diminuir em 2013, quando ele e a família foram resgatados pela polícia da casa onde moravam no bairro Aero Rancho, “Ufa, saímos daquele inferno”, lembra o jovem, que hoje tem vontade de se tornar o pai que nunca teve.

O sofrimento atinge qualquer um só de ouvir os relatos do rapaz. “A gente vivia trancado, sofria agressões verbais e físicas. Meu pai bebia direto, xingava minha mãe e batia. Se lhe dava um prato de comida e tivesse sem sal, ele jogava o prato nela ou na parede. Nós chorávamos apavorados, não conseguia fazer nada na época, e se fizesse, ele dava porrada, pegava o que aparecesse na frente e jogava em nós”, recorda Zaqueu sobre os dias de desespero.

O jovem hoje é casado, trabalha fazendo bicos e faz curso de gestão de estoque no período noturno. Foi vítima de uma história que chocou a cidade em dezembro de 2013, quando por meio de uma denúncia anônima, a polícia bateu na porta da casa onde vivia para libertá-los do cárcere privado. A protagonista, dona Cira, ficou presa na residência por 22 anos, humilhada e agredida na frente de Zaqueu e de mais três filhos que hoje têm, 11, 15 e 19 anos.

“Ele já pegou uma mangueira de gás, fio de energia e batia na gente. Eu ficava numa beliche, na parte de cima, e lá vinha ele me bater a noite toda. Jogava coisas na minha mãe. Às vezes, deixava a chave da casa com ela, para receber algum material de construção. Queríamos sair de lá, mas sentíamos medo, receio dele vir atrás”, conta o mais velho dos irmãos. Zaqueu recorda que certa vez, a mãe foi até a delegacia prestar queixas contra Ângelo, no entanto, como não tinha provas, retornou para o local e teve que aceitar a vida que levava.

“Fomos de ônibus à delegacia, ficamos o dia todo lá, tentamos prestar queixa, mas não conseguimos porque não tinha provas. Tivemos que voltar para casa, meu pai já estava lá e ficou xingando”, lembra Zaqueu, com a cabeça baixa, visivelmente abalado pelas recordações. “As coisas ruins eram sempre com meu pai, chegou até a me amarrar e me agredir o dia inteiro no terreno da casa”.

Apesar de ter sido espancado várias vezes, Zaqueu afirma que o que mais marcou, na época, era ver a mãe e os irmãos sofrendo. “Era o que mais me machucava. Meu pai já bateu na minha mãe por conta da data do meu aniversário. Ela dizia que era em setembro e ele teimava dizendo que era no mês de agosto. Isso já era motivo para dar socos e tapas, e fazê-la sangrar”, conta.

Dona Cira queria que os filhos tivessem um futuro melhor, por isso não abria mão dos estudos das crianças. Na escola, Zaqueu ficava quieto, não queria que ninguém soubesse da sua realidade. “Não tinha medo, só não queria mesmo. Não achava necessário contar”, relata.

Lembranças ruins voltam à cabeça a todo momento, como no dia que achou que a mãe iria morrer. “Tentou matar minha mãe enforcada, tapava a boca e o nariz dela. Quando via que estava sem ar, ele soltava. Lembro da cena, meus irmãos chorando e eu lá, sem poder fazer nada”, diz Zaqueu emocionado.

Ângelo não queria que ninguém saísse da casa, deixava um amigo vigiando o local. Contudo, Cira sabia que ao menos os filhos, precisavam respirar novos ares. “Ela deixava a gente sair, mas teria que ser escondido, nos defendia. Meu pai tinha me dado uma bicicleta, porém a ordem era andar somente ali. Meus irmãos sentiam muito medo, então ficava com nossa mãe”.

Zaqueu mostra a foto de dona Cira que mais gosta e lembra o amor e carinho que recebia da mãe (Foto: Kisie Ainoã)
Zaqueu mostra a foto de dona Cira que mais gosta e lembra o amor e carinho que recebia da mãe (Foto: Kisie Ainoã)

Saindo do inferno - Depois de anos de sofrimento, Zaqueu relata que uma agente de saúde percebeu que havia algo estranho na casa e fez uma denúncia anônima. “A polícia apareceu no portão, eu com medo do que meu pai pudesse fazer com a gente, pedi para irem embora. Em seguida chegou o SAMU [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência], para atender minha mãe, que estava muito machucada. Quando os médicos chegaram, ela não queria atendimento, estava apavorada, pensando que meu pai iria chegar a qualquer momento”, lembra.

“A polícia disse que teria de fazer aquilo, pois recebeu uma denúncia e tinha provas que ela foi agredida”. Depois que deixaram a casa, dona Cira e seus quatro filhos foram para um abrigo, na Capital. “Ficamos um tempo lá, para se recuperar dos traumas. Eu e meus irmãos ficamos dois meses, aí viemos morar com meus avós maternos. Minha mãe ficou três, por ter sofrido muito”, conta.

Após saírem do abrigo, o pai de Cira, Adão Sabino construiu uma casa em frente à residência onde mora no bairro São Francisco, para que a filha pudesse morar com seus netos. “No local, ela viveu um ano e alguns meses, até descobrir um nódulo na musculatura da perna e morrer”, conta Zaqueu. Cira faleceu aos 46 anos, de câncer, 16 meses depois de ser libertada.

“Nossa mãe tinha ficado muito feliz, queria nos ajudar a mudar de vida. Iríamos viver bem, se preocupava com nossos estudos. Ela viajou, conheceu Ana Maria Braga, foi para o Rio de Janeiro. Sempre aconselhava a gente, dava amor e carinho. Hoje, faço o possível para não imitar meu pai, as coisas ruins que ele fazia”, afirma.

Lembranças da época em que dona Cira viajou para o Rio de Janeiro e conheceu a praia (Foto: Kisie Ainoã)
Lembranças da época em que dona Cira viajou para o Rio de Janeiro e conheceu a praia (Foto: Kisie Ainoã)

Depressão e perdão - Zaqueu se esforça para superar todos os traumas vividos na infância, diz que hoje perdoou Ângelo. Cinco anos já se passaram, no entanto, afirma que seus três irmãos ainda estão traumatizados e sentem medo do pai. “Estão psicologicamente abalados, ficam nervosos e agressivos. Meu pai incentivava a bater, mas isso é errado e só gera mais violência. Temos que agir com amor e respeito”, destaca.

O jovem relata que o irmão Jah, era muito apegado à dona Cira, e sofre com a falta dela. “Ficou muito mexido. Após o falecimento, ele mudou de comportamento, a mente ficou diferente, passou a beber e ficava chorando. No seu aniversário, ficou o dia inteiro triste e dizia que queria um abraço da mãe, mas ela não estava ali”.

Para ajudar o irmão, ele diz ter assumido o papel do pai. "Tento ser a pessoa que meu pai não foi, carinhoso, amoroso, atencioso. Aconselho, digo para pensarem no futuro. Temos que superar”. 

Mas se crescer já é difícil, com o peso da violência nas costas fica desumano, diz Zaqueu. “Meu irmão parou os estudos por conta da bebida, da droga. Ele morava com meu avô, mas brigavam direto e foi expulso. Agora mora em uma oficina. Vivemos por muito tempo em um ciclo de violência, o psicológico fica abalado”, relata Zaqueu.

O irmão adolescente de 15 anos, que na época da prisão do pai tinha só 10 anos, hoje também é uma preocupação. “Não quer mais estudar, diz que não é necessário. Está deprimido, se sente um lixo. Meus irmãos estão com depressão, precisam de uma atenção especial. Converso com eles, explico que estudar é adquirir conhecimento, porque quando se estuda é mais fácil viver”, afirmou.

Zaqueu conta que conversou com o pai por telefone e não guarda rancor (Foto: Kisie Ainoã)
Zaqueu conta que conversou com o pai por telefone e não guarda rancor (Foto: Kisie Ainoã)

Soltura - Atualmente, Ângelo está no regime semiaberto e já até conversou por telefone com Zaqueu. “O processo criminal concluiu no final de 2018, nos falamos. Pediu perdão, disse ter se arrependido, contou que na cadeia apanhou bastante. Mas, não pode se aproximar da gente, pois temos uma medida protetiva”, conta.

“Quando o meu pai foi solto, sentimos medo dele fazer alguma coisa. Mas, acho que isso não é possível. Ele também tem medo, já está fichado na polícia e está trabalhando numa obra. Contou que na cadeia os bandidos bateram muito nele, tanto que ficou com hérnia e teve que operar. Agora frequenta igreja, disse que não quer mais saber de casamento, nem de mulher porque dá trabalho. Não quer mais morar em Campo Grande”, relata Zaqueu.

Atualmente, Ângelo mora na mesma casa em que manteve a família em cárcere privado. “Retornei lá uma vez e lembrei de coisas boas, da minha mãe. Não guardo remorso. Quero ter filhos e ser um pai que nunca tive. Não vou xingar, agredir. Quero ter o entendimento de como criar meu filho com educação, dar o melhor das coisas que meu pai não me deu”, finaliza.

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Fotos de Cira, de vestido rosa, que estão guardadas com a família  (Foto: Kisie Ainoã)
Fotos de Cira, de vestido rosa, que estão guardadas com a família (Foto: Kisie Ainoã)
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