Milagres, cenários de filme, pintxos: um giro pelo norte da Espanha

No topo de uma montanha, a quase 1.300 metros de altitude, uma pequena vila parece cenário de um filme medieval. Em um dos vários caminhos que levam a Santiago de Compostela, o Francês, está Cebreiro, lugar indicado pelo escritor Paulo Coelho como parada especial para os caminhantes. E não a troco de nada: lá, tão isolado e longe de tudo, conta-se que ocorreu um milagre: em um dos prédios baixos de pedra e teto de palha, no século XIV, numa capela, vinho e hóstia transformaram-se em sangue e vinho. O portal oficial de turismo da Espanha menciona que ali está um Santo Graal. Além da visita pela história, o lugar fica tomado pela neblina e pelo frio cortante, criando uma cena misteriosa interessantíssima.

Este é apenas um dos inúmeros locais incríveis a serem conhecidos no lado atlântico da Espanha. É possível circular de carro, trem ou ônibus para quem não tem pernas para seguir um dos inúmeros caminhos que levam a Santiago. Para todo lado que se olhe, nas trilhas, calçadas, rodovias, há um marco com o símbolo dos caminhantes: uma concha. E o ponto de chegada recebe-os com missa em uma catedral magnífica, tomada pela penumbra de um fumeiro que aromatiza o prédio onde estariam os restos mortais do apóstolo.

Seguindo pela costa, podem-se ver faróis impactantes, vigiando o Oceano Atlântico e orientando navegadores de outros tempos, começando por Finisterra, ou Fisterra, mais ao sul, no ponto mais ocidental da Espanha, onde se imaginava ser o fim da Terra, “donde el silencio esconde algo más que palabras”. Ou uns tantos quilômetros mais ao norte, chegando a uma ponta e caminhando um bom trecho a pé, o Faro Vilán se impõe, na costa de Camariñas; subindo mais ainda, chega-se a Coruña, onde está o imponente Farol de Hércules, em um promontório, o único farol romano ainda em funcionamento.

Para quem chega, chama a atenção a bruta estátua de Breogán, descendente dos celtas gaélicos que escolheram aquela região da Espanha. Seguindo pela costa rumo ao norte, a natureza mostra outras imagens encantadoras. Fios de mar avançam cidades adentro pelas chamadas rias, que sobem e descem com a maré, compondo uma bela paisagem em meio a rochas e montanhas. Dignas de uma parada estão San Vicente de la Barquera, Comillas e Santillana del Mar.

Nas regiões de Astúrias e Galícia, os frutos do mar são as estrelas dos menus. Por ali, estão também o Parque dos Picos da Europa e Santander. É uma mistura de mar e montanha que garante imagens lindas no verão e na época da neve, com picos cobertos de gelo.

O lugar mais impactante, sem dúvida, é Gaztelugatxe, tanto que foi cenário de Game of Thrones. É preciso fôlego para percorrer o longo trecho com subidas e descidas e escadas até chegar a um mosteiro no topo de uma rocha separada do continente. Lá, religiosos viveram isolados e hoje o local se tornou um movimentadíssimo destino turístico. Os cortes nas rochas, feitos pelo mar e pelo vento, são impressionantes.

Nas proximidades ficam Bilbao (ou Bilbo), com o belíssimo Museu Guggenheim e charmosas avenidas floridas, e San Sebastián (ou Donostia). No País Basco, tudo é escrito em espanhol e em basco. A identidade, ali, é questão de honra. Aliás, San Sebastián, famosa pelo festival de cinema e com um passado de reduto da aristocracia, é um balneário pequeno e gracioso que merece alguns dias de visita. A beleza está em explorar o lugar a pé, parando nos bares da parte antiga para comer pintxos, versão local das tapas. E a criatividade na preparação dos petiscos não tem limites.

Lá, reina a instagramável e viral torta basca, receita simples e sabor inesquecível, feita com cream cheese e ovos. Os queijos e embutidos também merecem ser lembrados. Aliás, queijos de leite de cabra, ovelha e vaca, separados ou misturados, mais frescos ou curados. Os torrones artesanais são outro sucesso.

Na cidade, uma coisa chama a atenção. Como há mar de um lado e morros de outro, falta espaço para a expansão urbana, então a cidade cresce para baixo, com estacionamentos e até comércios e mercados no subsolo de prédios do centro, mostrando que, onde faltam meios, a criatividade e a técnica devem imperar.

Os vinhos também são fortes na região. Mais ao interior, ganhando distância do litoral, fica a famosa região de La Rioja, tendo Haro como cidade central. A paisagem é árida, e há centenas de vinícolas: algumas gigantes, outras familiares; algumas modernas, outras com técnicas centenárias, como adegas sob as casas para manter o vinho fresco. Haro já é um encanto, mas, perto dali, ainda há Laguardia, um município sem carros, no alto, ideal para caminhar sem pressa pelas ruas de pedra e comer bem.

Por ali também há outros lugares cenográficos. A pequena Elizondo, com florestas úmidas, fica em Navarra, cenário dos filmes da Trilogia do Baztán, de mistério envolvendo bruxas. Ou ainda a famosa Pamplona, da festa do tomate e das corridas de touro pelas ruas, também já mostradas em filmes. Uma cidade viva, cheia de bares de pintxos.

Na região, há também outro lugar conhecido por um milagre: Santo Domingo de la Calzada. Em mais um dos caminhos de Santiago, passagem de peregrinos com muitas hospedarias, conta-se que um jovem alemão foi falsamente acusado de roubo por uma jovem e enforcado; na sequência, ressuscitou com a intercessão do santo. Os pais contaram a história à autoridade local e disseram que o filho estava tão vivo quanto a carne que seria servida na refeição. Foi quando um galo e uma galinha reviveram, dando origem à expressão “onde o galo cantou depois de assado”. Na imensa igreja da cidade, em uma parede, atrás de um vidro, periodicamente são trocadas aves vivas para manter aceso o milagre.

Herança real- A Espanha tem tradição católica e monárquica. Algumas cidades são emblemáticas e ostentam prédios imponentes. Em Burgos, há a lindíssima catedral gótica de Santa Maria, iniciada no século XIII, que parece um museu, de tantas obras de arte, e uma fortaleza no topo de um morro, alcançada por uma longa escadaria, mas a subida é recompensada por uma bela vista.

Perder-se pelas ruas da cidade é um ganho na viagem. Astorga também tem uma catedral de Santa Maria de tirar o fôlego e até ficar tonto com a experiência de fazer um tour com óculos 3D, com a sensação de estar flutuando no templo. Há ao lado dela uma casa episcopal desenhada pelo famoso arquiteto catalão Antoni Gaudí. E León também repete o impacto com uma igreja gigantesca e um centro vibrante. Essas três cidades estão na região de Castilla e León.

Para não esquecer – Em meio a tantas paisagens e atrativos, o norte da Espanha tem um lugar que merece ser conhecido e lembrado pelo símbolo que representa: a coragem diante da bestialidade. Perto de Bilbao está Guernica, ou Gernika, de pouco mais de 17 mil habitantes.

Seu centro é história viva, com painéis que contam o bombardeio aéreo realizado por nazistas em 26 de abril de 1937, que destruiu prédios, a pedido de Francisco Franco, antecipando tática repetida depois, na Segunda Guerra Mundial. A cidade sempre foi um ponto de encontro político dos moradores do norte, que se reuniam sob um carvalho, em um jardim. A árvore morreu e uma nova foi plantada para o futuro, mas o tronco original permanece no local, para manter a memória ativa. Ali, o tempo corre diferente. Tudo para na hora do almoço e os moradores se encontram para uma taça de vinho ou um copo de caña antes de voltar ao trabalho. As crianças brincam na praça.

Essa história também se tornou mundialmente conhecida pelo quadro homônimo de Pablo Picasso, instalado em uma parede inteira do Museu Reina Sofía, em Madri, feito em preto e branco, como deveria ser. A tela ficou em Nova Iorque e só voltou à Espanha após o fim da Era Franco, como exigiu o pintor. No país, contam que uma autoridade viu o quadro, com pessoas e bichos com cara de horror e tudo desfigurado pelo cubismo, e perguntou a Picasso se foi ele que fez aquilo. A resposta teria sido: não, foram vocês.

A cada viagem, enriquecemos por dentro.

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