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Política

De Mato Grosso do Sul à Faria Lima: as brechas em que o PCC ergueu seu império

Cadeia de combustíveis operada em Iguatemi sonegou impostos e criou base na fronteira com produtores de coca

Por Vasconcelo Quadros, de Brasília | 05/09/2025 12:31

De Mato Grosso do Sul à Faria Lima: as brechas em que o PCC ergueu seu império
Estrada que leva à Iguatemi, um dos destinos da Operação Carbono Oculto em MS (Foto: Arquivo)

RESUMO

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O Primeiro Comando da Capital (PCC) construiu um império bilionário através de empresas de fachada no setor de combustíveis em Mato Grosso do Sul. A Operação Carbono Oculto revelou que oito empresas ligadas ao grupo de Mohamad Hussein Ali Mourad movimentaram cerca de R$ 10 bilhões entre 2020 e 2025, burlando fiscalização e impostos. A organização criminosa evoluiu de uma facção prisional para um conglomerado sofisticado, com ramificações no mercado financeiro da Faria Lima, em São Paulo. O esquema envolvia tráfico de drogas, adulteração de combustíveis e sonegação fiscal, aproveitando-se de brechas regulatórias e da fragilidade das instituições de controle.

O “laranjal” de empresas mostrado pela Operação Carbono Oculto em Iguatemi, no km 18 da Rodovia da Balsinha, em Mato Grosso do Sul, revela que o Estado brasileiro está perdendo a guerra contra o tráfico e se encaminha para um quadro de deterioração semelhante ao vivido por Colômbia e México, quando foram dominados pelo crime organizado. As investigações da Polícia Federal e do Gaeco paulista ainda estão em curso, mas já demonstram a incapacidade do município, do governo estadual e do governo federal de enfrentar o PCC.

Entre 2020 e 2025, oito empresas ligadas ao grupo de Mohamad Hussein Ali Mourad controlaram a cadeia de combustíveis em Mato Grosso do Sul, movimentando perto de R$ 10 bilhões e burlando fiscalização e cobrança de impostos. O império foi construído diante dos olhos das autoridades, sustentado por brechas regulatórias, negligência dos controles e a contaminação de órgãos públicos por agentes pagos para proteger o esquema e fornecer informações sigilosas.

O caso só começou a ruir por acaso, em 14 de maio de 2023, quando a Polícia Rodoviária Federal interceptou um caminhão carregado com metanol importado. O produto, que não é fabricado no Brasil e deveria abastecer usinas químicas de Mato Grosso, estava sendo desviado para postos da Grande São Paulo para adulteração de gasolina. A apreensão revelou o tamanho da engrenagem: até R$ 54 bilhões movimentados, com impacto estimado em R$ 8,7 bilhões em perdas de arrecadação. Só o BK Bank, parte do esquema, lidou isoladamente com R$ 46 bilhões.

De Mato Grosso do Sul à Faria Lima: as brechas em que o PCC ergueu seu império
Foto registrada pela Polícia Federal durante investigação contra o empresário Mohamad Mourad

Um império na fronteira

As fraudes envolveram mais de mil postos e ao menos 15 distribuidoras de fachada que seguiram em operação mesmo após cassações regulatórias. Em Iguatemi, sete distribuidoras foram registradas no mesmo endereço, cada uma com capital social de R$ 4,5 milhões. Uma delas saltou de faturamento de R$ 3 milhões para R$ 3 bilhões em pouco tempo.

A Duvale Distribuidora de Petróleo e Álcool, inativa em 2020, movimentou R$ 2,79 bilhões no ano seguinte. Estimativas apontam que a Prefeitura de Iguatemi, com orçamento anual de R$ 134 milhões, deixou de arrecadar algo em torno de R$ 800 milhões. Procurado, o prefeito Lídio Ledesma não respondeu.

As empresas operaram sem licença ambiental do Imasul e driblaram restrições da Agência Nacional do Petróleo. O tamanho da fraude só foi descoberto na fase policial. Relatórios da Receita Federal indicam que Mourad chegou a formar um cartel. Mesmo após a ANP cassar licenças da Copape Produtos de Petróleo Ltda., responsável pela formulação, e da Aster Petróleo Ltda., na distribuição, o grupo seguiu ativo.

Para driblar as proibições, Mourad teria se associado ao Grupo Manguinhos e seguiu operando. Quando a Copape entrou na mira do Ministério Público, os negócios passaram para a Europa Produtos de Petróleo S/A, registrada pelo irmão Armando com o nome fantasia Monroy West Energy. Outras empresas, como Sudeste Terminais e a própria Duvale, camuflaram a continuidade das operações.

A lógica do grupo é de blindagem patrimonial: quando um sócio ou empresa entra na mira das autoridades, as atividades rapidamente são transferidas a terceiros. Como um consórcio invisível, compartilham sócios, imóveis e fluxo de caixa. A ANP só reforçou sua atuação depois que o esquema já estava consolidado. Passou a apoiar buscas, atestar adulterações e ampliar o monitoramento do setor.

Antes, limitava-se a autuações formais, enquanto o PCC lavava fortunas. Em resposta ao Campo Grande News disse que está investigando a rede, revogou autorização de algumas empresas mas, sob o pretexto de as investigações ainda estarem em andamento, não quis citar nomes. Procurado, o Imasul não respondeu até o fechamento da reportagem.

Segundo a PF, Mourad ainda criou a Arka Distribuidora em nome do traficante Daniel Dias Lopes e a Tlog Terminais em endereços ligados ao Grupo Manguinhos no Rio. Mais tarde, a própria Duvale assumiria parte da operação, com ramificações em Iguatemi, Guarulhos (SP), Senador Canedo (GO) e Duque de Caxias (RJ).

Os cérebros por trás do ciclo que unia tráfico de cocaína, gestão de empresas de fachada e inserção no sistema financeiro da Faria Lima, Mourad, José Augusto Lemes da Silva e Daniel Lopes, escaparam de prisão em operações, suspeita-se, por vazamento interno.

De Mato Grosso do Sul à Faria Lima: as brechas em que o PCC ergueu seu império
Rebelião comandada pelo PCC no Presídio de Segurança Máxima de Campo Grande, em 2006 (Foto: Arquivo/Campo Grande News)

Do Carandiru à Faria Lima

O PCC montou um sistema em que lucra em todas as frentes: exporta cocaína para a Europa e os Estados Unidos, opera empresas de fachada que adulteram combustíveis e ainda sonega impostos. O avanço foi possível pela omissão e pela conivência do Estado, que não conteve a infiltração do crime na economia legal.

Pouca gente sabe, mas o grupo já era chamado de “turma do PCC” nos anos 1990, em referência a três presos: Paixão, César e Cezinha, na Penitenciária do Estado, no Carandiru. Paixão, um negro franzino que circulava pelo pátio com um corvo no ombro, era a figura central. A turma ganhou coesão ao observar a disciplina dos sequestradores do empresário Abílio Diniz, militantes da esquerda armada latino-americana que cumpriam pena no Brasil e protagonizaram a maior greve de fome da história do sistema penitenciário, que durou 46 dias.

O episódio só terminou após negociação entre Lula e o então presidente Fernando Henrique Cardoso. Um caso marcante envolveu o brasileiro Raimundo Rosélio da Costa Freire, jurado de morte por dívida de drogas, que foi salvo pela intervenção dos sequestradores, impondo respeito coletivo. Essa lógica de solidariedade se projetou em 2001, quando o PCC coordenou rebelião simultânea em 29 prisões. Sob o governo de Geraldo Alckmin, consolidou o domínio dos presídios, transformando ladrões comuns em operadores do mercado formal.

Hoje, a estrutura de investigação e inteligência se dispersa em dezenas de órgãos, como PF, MPF, ANP, COAF, CGU, TCU e AGU, que não dialogam. O resultado é uma máquina cara que “enxuga gelo”. O uso da rede de combustíveis para lavagem já funcionava desde 2010 e foi identificado em 2020, quando a PF prendeu José Carlos Gonçalves, o Alemão, ligado à rede de postos Boxter e ao líder do PCC, Marcola. Também foi preso Natalício Pereira, dono do conglomerado, junto de três filhos.

De Mato Grosso do Sul à Faria Lima: as brechas em que o PCC ergueu seu império
Imagem da avenida Faria Lima, que entrou na mira da Receita Federal e da polícia (Foto: Assessoria SP)

A engrenagem do cartel

Outro exemplo é Daniel Dias Lopes. Apesar de longa ficha criminal, ele se consolidou como empresário de combustíveis. Condenado por tráfico internacional e investigado por fraudes em São Paulo, Lopes seguiu expandindo negócios. Atuou na Duvale, braço do grupo Mourad, e na Arka Distribuidora, ligada à Rede Sol Fuel. Contou com a esposa, Miriam Fávero Lopes, sócia de postos em São Paulo e no Paraná, além de empresas de conveniência e holdings usadas para blindagem patrimonial. Relatórios da Receita mostram que ela registrou veículos de luxo e imóveis em nome da família. O casal também manteve holdings como Hard Holding Trading e MFL Holding, usadas para aquisição de imóveis caros.

As conexões de Lopes com a Duvale e a Arka reforçam como o setor de combustíveis virou plataforma de lavagem do PCC, abrindo caminho para infiltração no sistema financeiro. Duas gestoras de recursos, Reag e Altinvest, sediadas na Faria Lima, funcionaram como pilares de movimentação de capitais e blindagem patrimonial, sob comando dos executivos João Carlos Falbo Mansour, Ramon Pessoa Dantas e Silvano Gersztel. No início de setembro, toda a diretoria da Reag renunciou e o conselho da companhia foi extinto.

O silêncio das prefeituras, a omissão do Imasul e a lentidão da ANP permitiram que o esquema prosperasse por quatro anos. Enquanto o Estado se limitava a fiscalizações formais, o PCC consolidava um império que transcendeu o tráfico de drogas. O que antes era bocas de fumo nas periferias hoje está entranhado na economia formal e já ocupa salas de vidro nos centros financeiros de São Paulo.

A Operação Carbono Oculto mostra que o crime organizado brasileiro já não se limita a territórios dominados por fuzis. Ele se instala em escritórios de alto padrão, movimenta bilhões com aparência de legalidade e se beneficia de corrupção policial, promiscuidade política e despreparo institucional.

O Brasil se tornou atrativo para esse tipo de empreendimento criminoso: fácil de burlar pela burocracia, pela fragilidade das instituições e pela corrupção nos órgãos de controle. O que a polícia encontrou na Faria Lima revela que parte do sistema financeiro funciona como um paraíso fiscal sem leis próprias.

A lição é amarga: enquanto o Estado permanece acuado, o PCC coleciona vitórias sucessivas e expande seu império. A história registra que escaladas dessa envergadura, se não forem contidas, corroem governança e a própria democracia.