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Reportagens Especiais

Furnas do Dionísio reverencia o passado, mas meta é fomentar ecoturismo

Dentro da comunidade, há proprietários que já trabalham com passeios em trilhas e cachoeiras

Por Silvia Frias | 21/02/2024 07:11
Campo Grande News - Conteúdo de Verdade
Dona Dete mostra como prepara a farinha de mandioca, uma das fontes de renda da comunidade (Foto: Marcos Maluf)
Dona Dete mostra como prepara a farinha de mandioca, uma das fontes de renda da comunidade (Foto: Marcos Maluf)

A estrada de terra vermelha e batida, em frente da casa de Lurdete Santos Silva, 63 anos, é a extensão do quintal dos netos da produtora rural. Com cavalos de pau e muita imaginação correm no trecho interditado da MS-010, cercado por paredão de rocha, em Jaraguari, a 47 quilômetros de Campo Grande.

Futuramente, as crianças terão que achar outro lugar para brincar; a terra batida da rodovia será coberta pela pavimentação, obra que facilitará o acesso às Furnas do Dionísio, uma das comunidades quilombolas mais conhecidas do Estado, que tem na produção agrícola a função motriz da economia, mas que também é conhecida pelos atrativos turísticos.

“A gente já viveu muito no sacrifício, de usar carro de boi para chegar na cidade”, lembrou Lurdete, conhecida na comunidade como dona Dete.

Na capela de Nossa Senhora de Aparecida, netos de dona Dete rezam o terço: "hoje eles me deram nó" (Foto: Marcos Maluf)
Na capela de Nossa Senhora de Aparecida, netos de dona Dete rezam o terço: "hoje eles me deram nó" (Foto: Marcos Maluf)

Nascida e criada nas Furnas dos Dionísio, aprendeu ofício da produção de farinha e da rapadura com a mãe, trabalho que ainda é realizado pela família. O tacho e a moenda estão no quintal de casa, onde a farinha é produzida.

A produção de dona Dete é vendida em Jaraguari e na Associação de Pequenos Produtores Rurais de Furnas do Dionísio, a exemplo do que é feito por outras famílias.

Além de manter a tradição na agricultura, dona Dete é uma das figuras católicas mais fortes das Furnas do Dionísio. Há cerca de 40 anos, fez promessa para que o filho ficasse curado de desmaios recorrentes e, todo ano, reza o terço em homenagem à Nossa Senhora Aparecida. Depois, construiu capela onde a festa é realizada, no dia 12 de outubro.

Receptivo da associaçao, um dos pontos em que os turistas podem comprar produção local (Foto: Marcos Maluf)
Receptivo da associaçao, um dos pontos em que os turistas podem comprar produção local (Foto: Marcos Maluf)

Os fieis participam de cavalgada que cruza o território das Furnas do Dionísio, depois, voltam para casa de dona Dete e sobem o morro, carregando o andor até a capela. As mulheres fazem doces e iguarias, enquanto os homens organizam o barracão onde a missa para dezenas de pessoas é realizada. A fé também está presente na igreja evangélica, que fica em outra área da comunidade.

Os netos, de coração e de sangue, sabem bem como é a avó, doce mas firme, como a rapadura que produz: flagrados no passeio de cavalo de pau fora de hora, quando deveriam estar na pequena capela de Nossa Senhora Aparecida, tiveram que deixar a brincadeira de lado para rezar Pai Nosso, a Ave Maria e agradecer pelas bênçãos. "Toda sexta-feira tem que rezar, mas hoje eles me deram nó, vão ficar um pouquinho de castigo".

Produção dos moradores de Furnas do Dionísio é vendida na associação (Foto: Marcos Maluf)
Produção dos moradores de Furnas do Dionísio é vendida na associação (Foto: Marcos Maluf)

História - A comunidade foi formada a partir de 1890, com a chegada do escravo liberto Dionísio Antônio Vieira e da mulher, Joana Luísa de Jesus, vindos de Minas Gerais.

Vera Lúcia Rodrigues dos Santos, 41 anos, ex-presidente da associação e coordenadora de Políticas para Promoção da Igualdade Racial de Jaraguari, conta que Dionísio chegou ao sul do então Mato Grosso uno em 1890, tendo como primeira parada a região onde hoje é a Comunidade Quilombola Tia Eva, em Campo Grande. “Ele deixou família lá e veio fazer o reconhecimento aqui. Gostou, voltou e trouxe a família”, diz.

Dionísio e Joana trabalhavam na roça e ela ainda cuidava dos nove filhos. Entre 1917 e 1918, o patriarca recebeu a escritura documental definitiva da compra de área ocupada por sua família.

Depois da morte do casal, na década de 1930, as terras foram divididas entre os filhos, que também se casaram, formando famílias e fazendo aumentar a comunidade.

Em 1989 foi fundada a associação. Na década de 1990, a energia elétrica chegou à comunidade, posto telefônico foi montado e maquinários foram adquiridos para melhoria da produção.

O território foi titulado pela Fundação Cultural Palmares em 2000, com portaria reconhecida pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em 2009. O processo de regularização, porém, ainda está pendente, aguardando sentença final.

Vera Lúcia conta a história da formação da comunidade (Foto: Marcos Maluf)
Vera Lúcia conta a história da formação da comunidade (Foto: Marcos Maluf)

No território quilombola, há duas escolas em funcionamento. A municipal Dionísio Vieira, fundada em 1984, que oferece ensino básico e a estadual Zumbi dos Palmares, inaugurado em 1996, com ensino fundamental e médio em período integral.

Vera Lúcia diz que um posto de saúde será instalado na comunidade e o projeto está em fase de licitação pela prefeitura de Jaraguari. Vera fez parte da diretoria de 2018 e se elegeu presidente da nova gestão, mas se licenciou para assumir a coordenação municipal. Luta para que as mulheres sejam mais reconhecidas pelo trabalho que fazem na região. "Sempre faço questão de mencionar dona Joana".

Uma das cachoeiras dentro das Furnas do Dionísio, destino procurado por turistas (Foto: Marcos Maluf)
Uma das cachoeiras dentro das Furnas do Dionísio, destino procurado por turistas (Foto: Marcos Maluf)

Riqueza - A maioria dos descendentes vive da produção agrícola, do plantio do limão, milho, quiabo, berinjela, abobrinha, da fabricação da farinha de mandioca e dos derivados da cana-de-açúcar, como rapadura, melado e açúcar mascavo. Além de abastecer o consumo interno, tudo também é vendido para a Ceasa (Central de Abastecimento de MS), em Campo Grande.

Sinval Pereira dos Santos, 43 anos, é produtor rural, cultivando abobrinha, jiló, vagem e quiabo em área de 3,5 hectares, sendo vendido na associação e na Ceasa. Nunca saiu da região. “Para quê? Aqui é tudo, é minha raiz, nunca tive vontade de sair”, diz, contando que a esposa até tentou convencê-lo, sem sucesso.

Cachoeira Véu da Noiva, outro ponto turístico no local (Foto/Arquivo pessoal)
Cachoeira Véu da Noiva, outro ponto turístico no local (Foto/Arquivo pessoal)

Pai de dois filhos, admite que não é tarefa fácil fazer com que os mais jovens mantenham a tradição. O mais velho, de 18 anos, mora e trabalha em Campo Grande. “Eu tento fazer com que gostem da terra, mas é difícil, difícil”.

Felipe dos Santos Passos, 21 anos, não é exceção. Nasceu em Campo Grande e foi morar no território há 11 anos, quando mãe, descendente de Dionísio, voltou para casa. Hoje, mora nas Furnas do Dionísio com a família e trabalha na produção de hortifruti. O sonho, porém, é estudar música e, para isso, pensa em se mudar. Mas garante que a ideia é voltar para a comunidade.

Investimento - Para o público em geral, no entanto, Furnas do Dionísio é mais conhecida pelo turismo, com cachoeiras e trilhas em paisagem típica de cerrado, protegida pela Serra de Maracaju.

O precursor é Osvair Barbosa da Silva, 53 anos. “Há 20 anos um rapaz veio aqui com meu primo, para visitar, e falou que eu estava com riqueza nas mãos”, contou. Com ajuda de motoclube, abriu as primeiras trilhas, usadas pelos motociclistas e, depois, para caminhadas.

Hoje, tem 48 roteiros dentro da Chácara Recanto da Ceci, com níveis de dificuldade conforme o gosto do turista. Entre os passeios, há a Trilha do Balanço, com caminho que leva cerca de 1,5 quilômetro a um mirante, no alto do morro, e a rota das Cachoeiras, a mais procurada. Para quem quer conhecer a história da comunidade, tem a Travessia do Quilombo.

Osvair acredita que o turismo pode ser o “coração” da comunidade, unindo o ensino da cultura negra na escola e a produção agrícola local, sendo comercializada para os turistas.

Centro comunitário e escola da Furnas do Dionísio, em meio a paisagem de tirar o fôlego (Foto: Marcos Maluf)
Centro comunitário e escola da Furnas do Dionísio, em meio a paisagem de tirar o fôlego (Foto: Marcos Maluf)

Esse caminho está sendo sedimentado dentro da associação, que tem dois receptivos e planos para expandir o ecoturismo.

A pavimentação da MS-010 é um dos trunfos para esta meta. O asfalto vai se estender do trecho da rodovia que se inicia no distrito de Rochedinho e segue até o acesso à comunidade. As festas também fazem parte do calendário tradicional e atraem atenção de turistas, como o Festival da Rapadura e as celebrações religiosas.

Vera Lúcia conta que 41 associados e filhos de associados receberam treinamento para fomentar o TBC (Turismo de Base Comunitária). O curso havia sido iniciado em 2020, mas teve que ser suspenso no período da pandemia, sendo finalizado em agosto de 2023.

Os guias treinados atendem turistas e pesquisadores de universidades e escolas que visitam a comunidade. Os turistas também procuram diretamente as propriedades privadas, como o Recanto da Ceci, que pertence a descendentes e que oferecem passeios e alimentação.

Escola estadual instalada dentro da comunidade (Foto: Marcos Maluf)
Escola estadual instalada dentro da comunidade (Foto: Marcos Maluf)

Um dos guias é Declair Santana da Silva, 43 anos, que trabalha em um dos receptivos da associação. Também coordena grupo de dança do Engenho Novo, uma das danças histórias das Furnas do Dionísio.

Ao som de sanfona, violão e pandeiro, os dançarinos fazem os passos que lembram o engenho. “Os antigos faziam essa dança quando faziam a colheita de cana para fazer rapadura. Conforme vai dançando, como o engenho roda, você roda na dança”. O grupo é formado por 16 integrantes, a maioria, de jovens. “Já é tradição, faz parte da nossa cultura”.

Declair é nascida e criada nas Furnas do Dionísio. Chegou a sair e morar em Campo Grande e repensou a trajetória. “Morava de aluguel e pensei: ‘se tenho minha terra, meu cantinho, porque vou ficar sofrendo aqui? Aí vim embora”, contou. “Aqui para mim é tudo, meu lugar”, afirmou.

Apresentação das crianças durante uma das edições do Festival da Rapadura (Foto/Arquivo pessoal)
Apresentação das crianças durante uma das edições do Festival da Rapadura (Foto/Arquivo pessoal)




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