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A democracia sempre em vertigem: o que Platão pode nos ensinar

Gabriele Cornelli (*) | 02/01/2023 13:30

Larry Diamond, um dos maiores estudiosos sobre democracia da atualidade, acredita que os ataques violentos, articulados e crescentes às instituições e valores democráticos são, não somente em nosso País, sinais de uma recessão democrática.

A democracia nasceu na Grécia clássica, no quinto século antes da Era Comum. E a verdade é que ela foi quase imediatamente abandonada por ter sido considerada um projeto irrealizável, impertinente ou até perigoso. O atual consenso de que esta é a melhor forma de governo possível é uma conquista bem mais recente.

Resultado de uma conjunção peculiar de fatores econômicos e demográficos, a democracia previa o ostracismo e a escolha de representantes por sorteio, por exemplo. Dispositivos que nos contam algo muito preciso: desde então, ela sempre esteve “em vertigem”, e bem consciente desse perigo iminente.

Essa é a crise identificada com muita precisão por pensadores da vida e da política daquele tempo, de maneira especial pelo maior pensador político de todos os tempos: Platão.

A Atenas, na passagem entre o V e o IV séculos aEC, que ele nos apresenta é uma democracia instável, fruto da cisão e perene hostilidade entre “a cidade dos ricos e a cidade dos pobres” (Pl. R. IV 422e), com cada um dos lados por sua vez fragmentados em uma miríade de interesses privados. A melhor imagem para as cidades gregas, segundo ele, é o “jogo das póleis” (cidades, em grego), uma espécie de xadrez de 60 casas, as cidades, divididas por sua vez em dois lados, também chamado pólis:

Cada uma delas é, como no jogo, não uma cidade mas muitas. Seja ela o que for, nela haverá duas cidades, em luta uma contra a outra, a dos pobres e a dos ricos, e em cada uma delas muitas outras. Se as tratares como uma só, cometerá total engano (Pl. R. 422e).1

Assim, parafraseando Carville, poderíamos colocar na boca de Platão o celebre adágio, pelo qual a questão da democracia “é a divisão entre ricos e pobres, idiota!”.

Mas Platão, atento observador da crise das democracias de seu tempo, identifica uma segunda questão talvez ainda mais importante no xadrez da política. Por meio de Sócrates, sua personagem principal no diálogo, descreve o problema com o neologismo: misologia, “ódio aos discursos”, em grego:

Vamos ficar atentos para que não adoeçamos de uma doença específica. A de nos tornarmos misólogos, como aqueles que se tornam misantropos. Pois não há mal pior do que acabar por odiar os discursos. De fato, misologia e misantropia nascem da mesma maneira. A misantropia de fato se insinua quando se põe excessiva confiança em alguém sem ter a necessária competência: assim, acredita-se ser ele absolutamente sincero, sadio e de confiança, para descobrir pouco depois que é imprestável e pouco confiável, e a cada momento diferente (Pl. Phd 89c-d).

A misantropia é descrita como uma doença que acomete quem é incapaz de compreender que a maioria das pessoas não é nem boa nem má, mas algo no meio. O erro de juízo inicial se transmuta em ódio generalizado. Da mesma forma – diz Sócrates – fechando a analogia, a misologia ocorre quando alguém considera um discurso como absolutamente verdadeiro, para imediatamente depois lhe parecer falso, acabando assim por se decepcionar e desacreditar qualquer discurso (Pl. Phd 90b-c).

Epidêmicas em nossos dias, a misantropia e a misologia cobrem a política de negacionismos, fake news, gritos e ódio. Sem filologia, isto é, sem o amor pelas palavras (que é exatamente o contrário da misologia) e o apreço pelo método científico, a política se resume à bruta violência, quando não a novos fascismos.

Demagógicos subterfúgios cada vez mais tecnológicos distraem o povo do xadrez político de que nos alertou Platão: a cidade encontra-se sempre profundamente rachada entre ricos e pobres. A maioria desfavorecida, sem se compreender como tal, não luta pelos seus próprios interesses e, pelo contrário, defende os interesses dos mais poderosos. Uma cartilha bem conhecida.

Platão, portanto, lança uma crítica dura e definitiva à demagogia que assola todas as experiências democráticas. O erro da história do pensamento político sucessivo é, provavelmente, aquele de ter pensado a democracia como algo ontológico e estável, definido uma vez por todas. Dessa ilusão não perecia Platão, nem muitos dos pensadores originários. Ao contrário, para eles, a democracia, em sua excepcionalidade, apresenta um desafio e um convite aos humanos para um salto em busca de uma sociedade justa a ser construída com enormes e contínuos esforços, educativos, econômicos e políticos. Ler Platão em nossos dias tão atribulados é assim acolher o desafio de nos colocarmos à obra para defendermos a democracia... de nós mesmos, de alguma forma. É impedir que por via democrática, decidamos prescindir dela. A defesa da democracia é necessária para que possamos aprender juntos a sermos melhores.

(*) Gabriele Cornelli é professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília.

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