A epidemia silenciosa da saúde mental que afeta o país
Nos últimos anos, o Brasil tem enfrentado inúmeras crises visíveis — econômicas, políticas, ambientais — mas há uma crise silenciosa, menos discutida e que se alastra com consequências devastadoras: a epidemia de saúde mental. Diferente de uma doença contagiosa, ela não é transmitida por vírus ou bactérias, mas pelo ritmo de vida exaustivo, pela pressão social, pela desigualdade estrutural e pela falta de acolhimento. Essa epidemia não se limita a estatísticas: ela está nos lares, nas escolas, nas empresas e até mesmo nas ruas, alterando profundamente a forma como vivemos e nos relacionamos.
O crescimento alarmante do sofrimento psíquico
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Dados de organismos nacionais e internacionais revelam um cenário preocupante: o Brasil está entre os países com maior número de pessoas ansiosas do mundo, e os índices de depressão, automutilação e suicídio crescem a cada ano, inclusive entre adolescentes e jovens adultos. A pandemia de COVID-19 intensificou ainda mais esse quadro, trazendo isolamento social, perdas familiares, insegurança econômica e o medo do futuro. O resultado foi um aumento expressivo de diagnósticos e, ao mesmo tempo, um colapso da rede de suporte emocional.
No entanto, mesmo diante desses números, muitos continuam sem acesso a atendimento psicológico ou psiquiátrico. O Sistema Único de Saúde, apesar de avanços, não consegue suprir a demanda crescente, e os atendimentos particulares estão fora da realidade financeira de grande parte da população. Esse vácuo de cuidado contribui para que milhares de pessoas sofram em silêncio.
Pressões modernas: produtividade e idealização
Um dos motores dessa epidemia é a cultura da performance. Vivemos em uma sociedade que valoriza excessivamente resultados, metas e conquistas, e que reduz o ser humano a números, currículos e produtividade. Não há espaço para falhar, descansar ou simplesmente ser. Nas redes sociais, essa pressão ganha novas formas: a comparação constante com vidas aparentemente perfeitas, a busca incessante por validação e a idealização da felicidade eterna.
Esse contexto gera frustração, baixa autoestima e um sentimento contínuo de insuficiência. A sensação de “não ser bom o bastante” alimenta quadros de ansiedade e depressão, principalmente entre jovens que crescem expostos a essas exigências irreais desde cedo.
Determinantes sociais da saúde mental
Não podemos, porém, reduzir o sofrimento psíquico a uma questão individual. Ele também é consequência direta das condições sociais. O desemprego, a precarização do trabalho, a violência urbana, o racismo, a falta de perspectiva para o futuro e as desigualdades históricas criam um ambiente de vulnerabilidade constante.
Pessoas em situação de pobreza, por exemplo, não apenas enfrentam maiores riscos de adoecimento mental, como também encontram mais barreiras para buscar ajuda. Já os jovens, expostos a um mundo instável e competitivo, muitas vezes se sentem sem horizonte, o que explica o aumento de casos de depressão e suicídio nessa faixa etária.
O impacto coletivo da epidemia
A saúde mental não é apenas uma questão individual, mas social. Quando alguém adoece, os efeitos se estendem para além do próprio sujeito: famílias sofrem rupturas, ambientes de trabalho perdem produtividade e o sistema de saúde enfrenta sobrecargas. Estima-se que transtornos mentais sejam hoje uma das principais causas de afastamento do trabalho, gerando custos bilionários à economia.
Ignorar essa epidemia é fechar os olhos não apenas ao sofrimento humano, mas também às suas consequências sociais e econômicas de longo prazo.
Caminhos possíveis para enfrentar a crise
O combate à epidemia de saúde mental exige múltiplas frentes:
Políticas públicas – É urgente ampliar o acesso a atendimento psicológico e psiquiátrico no SUS, fortalecer os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), investir em campanhas de conscientização e implementar programas de prevenção em escolas e comunidades.
Educação emocional – Ensinar desde cedo habilidades como empatia, autorregulação e resiliência pode ajudar a formar gerações mais preparadas para lidar com as adversidades da vida.
Ambientes de trabalho mais humanos – Empresas precisam rever práticas que adoecem, substituindo a cultura de metas inalcançáveis por políticas que valorizem o bem-estar, a saúde mental e a qualidade de vida.
Desconstrução do estigma – Precisamos romper com a visão preconceituosa de que “doença mental é frescura”. Falar sobre saúde mental com naturalidade é fundamental para encorajar quem sofre a buscar ajuda.
Apoio comunitário e familiar – Redes de apoio são essenciais. Muitas vezes, ouvir com empatia pode ser o primeiro passo para salvar alguém do isolamento e do desespero.
O papel individual e coletivo
Cada pessoa tem um papel nessa luta. No nível individual, é necessário aprender a respeitar limites, priorizar momentos de descanso, desconectar-se de exigências tóxicas e, sobretudo, buscar ajuda quando necessário. No nível coletivo, precisamos praticar a solidariedade, oferecer escuta, acolher sem julgamento e contribuir para ambientes mais humanos.
A epidemia de saúde mental é real, silenciosa e devastadora. Ela não está apenas nos consultórios ou nas estatísticas, mas nas casas, nas escolas, nas empresas, nas ruas. Reconhecer sua existência é o primeiro passo para transformar essa realidade.
O desafio é enorme, mas não impossível. Falar sobre o tema, investir em políticas públicas, fortalecer redes de apoio e cultivar empatia são medidas que podem salvar vidas. A saúde mental não é luxo, nem privilégio: é direito humano fundamental. E, se queremos um país mais justo, precisamos começar por cuidar daquilo que sustenta toda vida: a mente e o coração de cada cidadão.
(*) Cristiane Lang, psicóloga especializada em oncologia
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