ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no X Campo Grande News no Instagram Campo Grande News no TikTok Campo Grande News no Youtube
OUTUBRO, QUARTA  08    CAMPO GRANDE 26º

Artigos

A era do anafalbetismo funcional

Por Cristiane Lang (*) | 08/10/2025 08:30

Este é um tempo curioso e paradoxal. De um lado, a humanidade nunca teve tanto acesso à informação; de outro, nunca se viu tanta dificuldade em compreender, refletir e aplicar aquilo que se lê. O chamado analfabetismo funcional é o retrato mais evidente dessa contradição.

Não é a incapacidade de juntar letras ou escrever o próprio nome. É algo mais sutil e, justamente por isso, mais perigoso: é a dificuldade de interpretar, relacionar e transformar informação em conhecimento. É ler sem compreender, ouvir sem assimilar, falar sem refletir.

O que é o analfabetismo funcional?

O analfabeto funcional sabe decifrar palavras, mas não consegue compreender plenamente um texto. É capaz de ler uma manchete, mas não de perceber as intenções escondidas nela. Consegue assinar um contrato, mas não identificar cláusulas abusivas. Entende números, mas não enxerga suas implicações práticas.

Em resumo: decodifica letras, mas não decifra o mundo.

Causas e raízes

As origens desse fenômeno são múltiplas e complexas:

Educação superficial, que prioriza índices e não aprendizagem real.

Falta de hábito de leitura, cada vez mais substituída por conteúdos rápidos e descartáveis.

Superficialidade digital, onde a avalanche de informações substitui a análise crítica.

Desigualdade social, que limita o acesso a recursos culturais.

Cultura da pressa, que sufoca a pausa necessária para refletir.

Essas causas se combinam e criam uma geração de pessoas que sabem ler, mas não compreendem — sabem ver, mas não enxergam.

Consequências sociais e individuais

O analfabetismo funcional fragiliza o indivíduo e a sociedade.

Na vida cotidiana, limita decisões, cria dependência e aumenta a vulnerabilidade diante de armadilhas simples.

No mercado de trabalho, reduz oportunidades, já que exige-se cada vez mais interpretação, análise e pensamento crítico.

Na política e na democracia, abre espaço para manipulações, fake news e discursos populistas que encontram terreno fértil em quem lê sem interpretar.

É como se o cidadão tivesse os olhos abertos, mas um véu encobrisse o sentido daquilo que vê.

A dimensão poética dessa prisão invisível

O analfabetismo funcional é uma prisão sem grades. Uma cela onde as pessoas acreditam estar livres porque conseguem assinar o nome, mas vivem algemadas à incapacidade de compreender o que assinam.

É como olhar o mar e não perceber sua profundidade. É como ouvir uma música sem captar a melodia. As palavras entram pelos olhos, mas não se instalam na mente nem no coração. São folhas que o vento carrega — leves, soltas, sem direção.

E o mais cruel é que essa prisão se disfarça de autonomia: “eu sei ler”, diz a pessoa, sem perceber que não sabe interpretar. É um náufrago em um oceano de letras, cercado de textos por todos os lados, mas sem barco nem bússola para navegar.

Caminhos para a libertação

Apesar do cenário preocupante, há possibilidades de saída:

Educação transformadora, que vá além da memorização e ensine a refletir, questionar, analisar.

Valorização da leitura, criando ambientes culturais acessíveis, bibliotecas vivas, clubes de leitura e incentivo familiar.

Uso consciente da tecnologia, escolhendo qualidade em vez de quantidade, profundidade em vez de superficialidade.

Compromisso coletivo, reconhecendo que o problema não é individual, mas estrutural.

Estamos, sim, na era do analfabetismo funcional. Uma era em que muitos sabem juntar letras, mas poucos sabem construir sentido. Em que informação é abundante, mas sabedoria é rara.

Mas também podemos estar na era da redescoberta do significado. Depende de como lidamos com as palavras: se apenas as decodificamos ou se permitimos que elas nos transformem.

Porque compreender é mais do que ler. É enxergar o mundo com olhos inteiros, é fazer das palavras pontes e não muros, é escolher a liberdade de pensar em vez da prisão da ignorância.

(*) Cristiane Lang é pisóloga clínica.

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.