A globalização, os paradoxos e os limites do Judiciário
Vivemos em tempos nos quais a globalização não é mais uma opção política, mas uma condição histórica. Seja ela vista como avanço ou retrocesso, o fato é que sua presença é inevitável e impacta diretamente a forma como concebemos o Estado, o Direito e as instituições democráticas. A figura do Estado-nação, estruturada sobre os pilares da soberania clássica, já não consegue oferecer respostas plenas aos desafios que se impõem. E essa constatação, por si só, exige de nós — juristas, estudiosos e operadores do Direito — uma profunda revisão dos nossos paradigmas decisórios.
A globalização impõe uma fragmentação do discurso jurídico. O Direito deixa de operar em um ambiente estável, binário e linear, e passa a ser instado a decidir em meio ao caos, à pluralidade, à heterogeneidade. A consequência disso é que o Judiciário, tradicionalmente acostumado a decidir conflitos a partir de normas claras e estáticas, passa agora a ser provocado a decidir aquilo que, na essência, é indecidível: os paradoxos.
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Aqui reside a distinção que considero essencial. Ao contrário dos hard cases, que ainda se enquadram dentro do campo do juridicamente resolúvel, os paradoxos são questões estruturais, multifacetadas e politicamente sensíveis, cuja natureza impede uma solução definitiva por meio da lógica judicial tradicional. Trata-se de temas como reforma política, reforma fiscal, regulação de novas tecnologias, biotecnologia, inteligência artificial, fake news, privacidade de dados. Temas em que a resposta jurídica não se encontra dada, mas em constante construção.
O que temos, então, é o paradoxo da decisão jurídica: espera-se do Judiciário que ele decida questões que não comportam uma resposta única, definitiva ou mesmo satisfatória. E esse é o grande impasse do nosso tempo. O Direito, historicamente, se estruturou sobre uma lógica de subsunção normativa (modelo clássico) e, mais recentemente, de ponderação e hermenêutica constitucional. Ambos os paradigmas, com suas virtudes e limitações, já não são suficientes para enfrentar o grau de complexidade que marca o mundo contemporâneo.
Por isso, faz sentido a proposta de autores como Rudolph Withoter e outros que propõem um terceiro paradigma, o da proceduralização. Nesse modelo, o Direito não se fecha em si mesmo, mas se abre à realidade que o cerca. Em vez de buscar decisões finais e impositivas, propõe-se a construção de procedimentos participativos, revisáveis e responsivos, que deem conta da mutabilidade do conhecimento e da multiplicidade de interesses legítimos em jogo.
Esse novo paradigma exige do Judiciário uma postura de humildade institucional. Nem tudo que é judicializado pode — ou deve — ser decidido. A função jurisdicional é essencial à democracia, mas sua atuação deve ser delimitada pelos próprios contornos do que é jurídico. Há temas que exigem não uma resposta de legalidade ou ilegalidade, mas a construção coletiva de soluções políticas e sociais. Quando o Judiciário ultrapassa esse limite, corre o risco de minar sua legitimidade, ao impor uma decisão definitiva sobre algo que ainda está em aberto.
Além disso, a definitividade da decisão judicial, que é uma de suas virtudes nos conflitos tradicionais, se torna um problema nos paradoxos contemporâneos. Decidir sobre pesquisa com células-tronco, por exemplo, é estabelecer um marco definitivo sobre algo que o conhecimento científico ainda está explorando. Da mesma forma, regular fake news por decisão judicial é limitar um fenômeno que se transforma todos os dias. A ausência de mecanismos institucionais para a revisitação das decisões judiciais em temas de alta complexidade revela um déficit democrático e funcional que precisa ser enfrentado.
Outro ponto que considero crucial é o modelo binário da decisão judicial. Ao julgar procedente ou improcedente, o Judiciário impõe uma lógica de vitória e derrota. Em temas profundamente polarizados e multifacetados, como as reformas estruturais, essa lógica produz ressentimento institucional. Diferentemente do processo político, que permite negociação, concessões e construção gradual de consensos, a decisão judicial muitas vezes deslegitima a parte vencida, intensificando tensões em vez de resolvê-las.
O que se impõe, portanto, é uma profunda revisão do papel das instituições no enfrentamento da complexidade. O Judiciário deve se concentrar naquilo que é juridicamente decidível, reconhecendo seus próprios limites, e ao mesmo tempo contribuir para a construção de procedimentos que envolvam outros atores — Legislativo, Executivo, sociedade civil, comunidade científica — na solução de problemas que extrapolam o campo estrito do Direito.
A crise da estatalidade, longe de representar o fim do Direito, aponta para a necessidade de um Direito mais aberto, mais processual, mais dialógico. Um Direito que reconheça que há perguntas para as quais ainda não temos respostas, e que nem toda ausência de resposta é uma omissão: pode ser, também, um ato de responsabilidade institucional, uma negação consciente ao autoritarismo das respostas fáceis.
O que realmente está em escassez, é a parte regulatória dos poderes, quando não há necessidade de judicializar questão que não podem ser decididas, mas que estão em discussão dentro da democracia trazendo a vitória ou derrota, ou seja, procedente ou improcedente.
(*) Wellison Muchiutti Hernandes, advogado e professor universitário, através do Estadão
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