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Descentralização do cuidado

Por José Gomes Temporão (*) | 17/09/2025 08:30

A saúde pública enfrenta desafios complexos. A combinação do envelhecimento da população com o aumento da prevalência das doenças crônicas, a revolução trazida pelas novas tecnologias e o impacto das mudanças climáticas impõe aos sistemas universais a necessidade de revisar seus modelos de organização. Nesse contexto, a descentralização do cuidado em saúde não é somente uma tendência constatada em vários países, mas uma estratégia para garantir o acesso equitativo, eficiente e sustentável a longo prazo.

Aqui entendemos a descentralização como a reorganização do cuidado, de forma que o atendimento possa ocorrer em ambientes de menor complexidade e com maior proximidade no território, como unidades básicas, centros comunitários e até a própria residência. É um conceito que tem se mostrado decisivo para repensar modelos de atenção, desafogar hospitais, otimizar recursos e humanizar o atendimento. Hoje isso se torna factível com os avanços tecnológicos: telessaúde, monitoramento remoto, inteligência artificial e interoperabilidade de dados.

Experiências de países como Reino Unido, Cingapura e Holanda mostram resultados expressivos depois de instituir essa abordagem de atendimento. No NHS britânico, o número de internações caiu 12% em 2022. Em Cingapura, 7 mil dias de internação foram evitados graças a serviços hospitalares domiciliares e às plataformas digitais.

Esses dados fazem parte de um relatório divulgado recentemente em evento que reuniu atores de todo o espectro da saúde brasileira em Brasília para debater como a descentralização do cuidado é possível, eficaz e financeiramente viável. Nessa oportunidade, destacaram-se ainda experiências internacionais e propostas nacionais capazes de inspirar novas políticas públicas e fortalecer o SUS como um sistema moderno e inclusivo.

Essa abordagem é ainda mais oportuna no Brasil, onde o tamanho do território e as desigualdades regionais desafiam a oferta de serviços em tempo adequado. Essa premissa, inclusive, já está sendo implementada de forma bem-sucedida em diferentes regiões do nosso país, por meio da Estratégia Saúde da Família, que já se configura como exemplo de atenção descentralizada e resolutiva. Mas é preciso avançar, incorporando novas tecnologias e organizando redes integradas que garantam continuidade e segurança assistencial.

Para que o Brasil avance nessa direção, é necessário estruturar pelo menos cinco dimensões estratégicas:

1) Políticas públicas e regulação que incentivem redes regionalizadas e integração de serviços;

2) Investimento em tecnologias digitais e interoperabilidade de dados;

3) Incorporação de novas tecnologias diagnósticas e terapêuticas adequadas que viabilizem o cuidado próximo ao paciente;

4) Capacitação das equipes multiprofissionais para atuação em formatos descentralizados; e

5) Educação e informação para pacientes e sociedade.

Vale lembrar que a pandemia de covid-19 deixou lições valiosas também nesse tema. Estratégias descentralizadas de testagem, vacinação e teleatendimento foram decisivas para conter a doença, preservar vidas e garantir acesso em áreas remotas.

Portanto, a descentralização é uma ferramenta para garantir mais acesso, mais eficiência e mais respeito à singularidade de cada território e de cada pessoa, em contrapartida a um modelo excessivamente hospitalocêntrico e verticalizado. Embora o SUS tenha nascido tendo a descentralização como fundamento, enfrentamos desafios inerentes à fragmentação que exigem um esforço contínuo de superação.

A descentralização também deve ser compreendida como um instrumento de fortalecimento democrático da saúde, na medida em que aproxima gestores, profissionais e cidadãos das decisões e das práticas de cuidado. Ao permitir que a resposta em saúde seja moldada às realidades específicas de cada território, amplia-se a capacidade de reconhecer diferenças epidemiológicas, sociais e culturais, garantindo soluções mais efetivas e sustentáveis. Trata-se de um caminho que promove equidade não apenas no acesso, mas também na qualidade e na experiência do atendimento.

O desafio não se restringe a somente reorganizar fluxos assistenciais, mas a consolidar um modelo que valorize a participação social, estimule a corresponsabilidade das equipes de saúde e aproveite a potência transformadora da inovação tecnológica para articular prevenção, acompanhamento contínuo e gestão eficiente. É nesse movimento que encontraremos novas possibilidades de construir um SUS mais justo e resiliente.

Esta abordagem significa, portanto, uma mudança de perspectiva essencial: a de que o cuidado fora do ambiente hospitalar pode ser melhor para o paciente e para o sistema de saúde. Para fortalecer a capacidade de resposta do SUS, aumentar sua resiliência e garantir sua sustentabilidade, é imperativo que continuemos evoluindo na integração e no aprimoramento de redes de cuidado, superando os desafios da fragmentação e consolidando a descentralização como um eixo estratégico de sustentabilidade do SUS.

(*) José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde, através do Estadão

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.