Feminicídio e o direito dos órfãos das vítimas
O Brasil ainda convive com uma das faces mais cruéis da violência de gênero: o feminicídio. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, quatro mulheres são assassinadas por dia no país por motivações ligadas ao gênero. Por trás dessas estatísticas, estão filhos e filhas que perdem suas mães de forma brutal e ficam marcados para sempre, muitas vezes sem qualquer amparo do estado.
Em Mato Grosso, os números escancaram essa tragédia: 28 mulheres foram vítimas de feminicídio apenas no primeiro semestre deste ano, sendo 10 só no mês de junho. Isso representa um aumento de 31,57% em relação ao mesmo período de 2024, que registrou 19 mortes. De janeiro a junho, 44 crianças ficaram órfãs em razão do assassinato de suas mães. Ao longo de todo o ano de 2024, foram 89 crianças e adolescentes que perderam as mães dessa forma.
A escalada da violência contra a mulher destrói a estrutura familiar e lança os filhos em um ciclo de abandono, vulnerabilidade social e sofrimento psicológico. Em muitos casos, o agressor está preso ou comete suicídio, e, conforme o artigo 92, inciso II, do Código Penal, perde automaticamente o poder familiar. Ou seja, essas crianças ficam duplamente desamparadas: pela morte materna e pela exclusão do pai do convívio familiar.
Diante dessa realidade, o país deu um passo importante com a criação da Lei nº 14.717/2023, que garante pensão especial no valor de um salário-mínimo para filhos e dependentes menores de 18 anos de mulheres vítimas de feminicídio, desde que estejam em situação de vulnerabilidade social. A lei é válida inclusive para crimes ocorridos antes de sua publicação e independentemente do julgamento do réu. O benefício deve ser solicitado junto ao INSS e não é acumulável com outros do Regime Geral de Previdência Social, como o BPC.
No entanto, apesar dos avanços legais, ainda há muito desconhecimento por parte das famílias sobre os direitos previdenciários e assistenciais disponíveis, como auxílio-reclusão, pensão por morte e o próprio benefício da nova lei. Na minha atuação como advogada, vejo diariamente o impacto desse desconhecimento, que agrava ainda mais o sofrimento dos órfãos do feminicídio.
É urgente que o poder público intensifique a divulgação desses direitos e que a sociedade cobre sua efetiva implementação. A proteção dos filhos das vítimas deve ser prioridade nas políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero. Precisamos ampliar o debate nacional sobre o que acontece com essas crianças e adolescentes após o crime, garantindo não só a punição do agressor, mas, principalmente, a reparação e o cuidado com os sobreviventes.
Como mulher, mãe, cidadã e advogada, reafirmo meu compromisso de contribuir com informação técnica, orientação jurídica e empatia. É com justiça social e ação coordenada que podemos enfrentar a violência contra a mulher e suas consequências devastadoras. Sigamos juntos nessa luta por dignidade, acolhimento e futuro!
(*) Valéria Lima, advogada especialista em Direito Previdenciário, Regime Geral (iniciativa privada) e Próprio (servidores públicos)
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