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Homicídio e o assassinato da memória da vítima

Por Claudio Barros (*) | 25/08/2025 13:30

No país com mais homicídios do mundo, ainda é preciso lembrar: quem morre também tem direitos.

É inquestionável que todos têm direito à defesa. Igualmente induvidoso que a defesa – sobretudo no Tribunal do Júri – é plena. Está assegurado na Constituição federal.

Mas existe um limite ético?

O caso Mariana Ferrer, de ampla repercussão nacional e internacional, expôs essa tensão. Na época, a jovem influencer digital figurava como vítima em processo criminal por possível crime contra a liberdade sexual. Durante a audiência, a defesa, visando a absolvição do acusado a qualquer custo, apresentou documentos e formulou perguntas absolutamente alheias ao mérito da causa, expondo e constrangendo profundamente a vítima. Um tratamento considerado, na ocasião, indigno e até humilhante.

Diante da gravidade do episódio que, infelizmente, não é isolado no processo penal brasileiro e alcança crimes e vítimas das mais diversas, o Congresso Nacional reagiu. E, com o propósito de coibir a prática de atos que violam ou desrespeitam a dignidade da vítima e de testemunhas, aprovou a Lei n.º 14.245/2021, conhecida como Lei Mariana Ferrer, que alterou o Código de Processo Penal. A partir de então, todas as partes e sujeitos envolvidos no processo e presentes ao julgamento devem zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa. Proibiram-se expressamente manifestações sobre circunstâncias alheias aos fatos e a utilização de linguagem, informações ou materiais ofensivos à dignidade da vítima ou de testemunhas.

No entanto, por um aparente lapso legislativo, ao replicar a inovação ao rito do Júri, em julgamentos de crimes dolosos contra a vida, o novo artigo 474-A do Código de Processo Penal limitou a proteção à “instrução em plenário”, isto é, à fase de produção de provas, que antecede os debates entre acusação e defesa, na sessão popular de julgamento. Isso gerou a falsa impressão de que, durante a argumentação defensiva e sob o pretexto da plenitude de defesa, a vítima poderia ser novamente exposta e desrespeitada.

Um notório equívoco.

A resposta está na própria exposição de motivos da lei: a exigência de zelar pela integridade da vítima repousa na dignidade da pessoa humana. Dignidade que, enquanto fundamento do Estado Democrático de Direito (artigo 1.º, III, da Constituição), desautoriza que o ser humano seja tratado como mero instrumento para alcançar os objetivos de outra pessoa – na clássica e filosófica lição de Immanuel Kant. Ou, em outras palavras, impõe que qualquer pessoa, inclusive a vítima, seja respeitada em sua própria individualidade e valor.

Tratamento que, por evidente, não pode esbarrar nos limites da fase procedimental. Pretender o contrário redundaria no inaceitável reconhecimento no sentido de que, finda a instrução, estaria a parte incumbida da defesa autorizada a proferir toda sorte de ataques à memória ou à honra da vítima, ao endereçar o seu discurso precisamente aos destinatários da prova, o Conselho de Sentença, enquanto representantes da sociedade.

Ocorre que o princípio da dignidade da pessoa humana não é monopólio do réu. Ele alcança também quem foi brutalmente silenciado e sua família, ainda viva na dor, de modo a harmonizar a proteção constitucional à intimidade e à imagem da vítima, em seu conceito mais amplo. Proteção que se destina, portanto, às vítimas diretas (as que sofreram as consequências imediatas da ação criminosa) e indiretas (pessoas que detenham relação de afeto ou parentesco com a vítima), em sintonia com a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade, editada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 1985.

Trata-se de texto do qual o Brasil é signatário. Logo, comprometeu-se o País a implementar os princípios adotados na referida Carta, no âmbito de sua legislação interna, com a consequente adoção de políticas que assegurem a efetiva proteção das vítimas.

A Constituição federal que garante ao réu a ampla defesa estabelece, no mesmo artigo 5.º, que todos são – ou deveriam ser – iguais perante a lei.

E não há respeito à dignidade se esse tratamento se limita à fase de instrução. Afrontar o passado da vítima, antes de assegurar o direito ou estratégia de defesa, é tolerar a indesejada e agora expressamente vedada revitimização. Permitir ataques morais de qualquer natureza durante os debates, fase seguinte à produção da prova, sob a escusa da técnica defensiva, é como oferecer sombra com a árvore e depois cortar as raízes. É uma contradição que fere a hermenêutica e o bom senso.

Num país que ainda enterra quatro vezes mais cadáveres do que a média global, segundo dados divulgados pela ONU, liderando, constrangedoramente, o ranking mundial de homicídios em números absolutos, sequer deveria ser necessário editar norma para exigir respeito à vítima. Mais grave ainda é haver quem insista numa interpretação literal da lei, distorcendo o seu verdadeiro propósito.

Permitir que se ataque a vítima após sua morte é autorizar um segundo homicídio – desta vez, da sua memória.

No Tribunal do Júri, não se mata apenas com armas. Também se mata com palavras.

Afinal, os fins justificam os meios?

(*) Claudio Barros, promotor de Justiça no Ministério Público de Minas Gerais e coordenador estadual das Promotorias de Justiça do Tribunal do Júri (Cojur), através do Estadão

 

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