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IAvatares: quando a tecnologia serve à memória

Por Paulo Markun (*) | 27/11/2025 08:10

Novas tecnologias sempre enfrentaram resistência. O cinema gerou pânico moral, a fotografia foi apresentada como o fim da pintura, a taquigrafia foi rejeitada por parlamentares, a prensa de Gutenberg aposentou copistas medievais. Nos dias de hoje, a inteligência artificial oferece algo inédito — e igualmente polêmico: recriar vozes e falas de personagens históricos.

Dois experimentos recentes testaram essa possibilidade no Brasil. Em 30 e 31 de outubro, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo, visitantes e jornalistas "conversaram" com um painel de LED que reproduzia a voz de Vladimir Herzog (1937-1975), jornalista assassinado pela ditadura militar. De 1º de novembro até o final de março de 2026, no Centro de Convivência Cultural de Campinas (SP), a exposição "Pétalas e Estrelas" permite que visitantes telefonem para ouvir a voz do arquiteto Fábio Penteado (1929-2011), obtendo respostas sobre suas ideias e obras.

Criados por Pedro Markun e por mim, esses IAvatares usam a mesma tecnologia que reconstitui vozes de Elis Regina, Cid Moreira ou Michael Caine. Mas não para vender produtos ou reforçar crenças, e sim para manter viva a memória e difundir ideias de figuras relevantes da história brasileira.

Os projetos de Herzog e Penteado foram cercados de cuidados. Décadas de pesquisa constituem suas bases de conhecimento. Limites cronológicos impedem que especulem sobre o futuro ou apresentem afirmações sem sustentação. As famílias de ambos autorizaram expressamente a iniciativa.

Admito os riscos. Virginia Woolf, em "Granite & Rainbow", definiu o dilema das boas biografias: equilibrar o fato inamovível ("granite") com a personalidade ("rainbow"). Os IAvatares colocam essa meta em outro patamar —a junção de bases documentais rigorosas com simulação de voz e tom cria experiência potente, para a qual não temos repertório.

Seis milhões de brasileiros viram Fernanda Torres e Selton Mello interpretarem Eunice e Rubens Paiva em "Ainda Estou Aqui". O filme mudou o entendimento de toda uma geração que não viveu a ditadura, revelando a potência da recriação emocional de histórias reais. Ninguém se incomodou com atores incorporando personagens já falecidos. Os IAvatares operam em registro semelhante —mexem com as emoções, e nisso reside grande parte de sua força. O estranhamento que provocam existe por conta da novidade, da falta de letramento para essa linguagem emergente.

Mas os deepfakes se multiplicam. Drauzio Varella "anuncia" remédios para impotência e William Waack "endossa" investimentos fraudulentos.

O que diferencia IAvatares de deepfakes é transparência, rigor metodológico e finalidade pública. Não são simulacros para enganar, mas ferramentas pedagógicas claramente identificadas. Um estudante que "conversa" com Herzog sobre liberdade de imprensa experimenta nova forma de acesso ao conhecimento histórico.

Não se trata de substituir biografias, mas acrescentar camada interativa à preservação da memória. Em museus e escolas, essas vozes podem responder perguntas e contextualizar períodos históricos.

Os experimentos com Herzog e Penteado são o começo. Se bem conduzidos, com ética e rigor, os IAvatares podem ser aliados da educação e da memória coletiva. A tecnologia está disponível. Cabe decidir: deixá-la nas mãos de falsificadores ou explorar seu potencial educativo?

(*) Paulo Markun, jornalista e escritor, pesquisa usos da inteligência artificial; é mestrando em comunicação e cultura digital na UFBA (Universidade Federal da Bahia) e conselheiro do Instituto Vladimir Herzog, através da Folha de S.Paulo

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.