ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no X Campo Grande News no Instagram
NOVEMBRO, SÁBADO  23    CAMPO GRANDE 32º

Cidades

Mayara Amaral, a musicista de MS que virou símbolo contra o feminicídio

Aos 27 anos, ela foi foi brutalmente assassinada por quem dedicava afeto, há um ano. Seguir o caminho da música e da arte é uma forma de entender como a musicista ainda “vive” e inspira lutas

Izabela Sanchez | 25/07/2018 07:55
A musicista Mayara Amaral (Reprodução)
A musicista Mayara Amaral (Reprodução)

“Um lençol bordado flutua à sua janela.

Desejaria pensar que você canta e ri

talvez por detrás da porta”

É um trecho do poema “Tombeau de Mayara Amaral” (Túmulo de Mayara Amaral), do francês Pierre Troullier. Mayara Amaral era artista e hoje, um ano após sua morte, ela vive na arte. A musicista foi brutalmente assassinada no dia 25 de julho de 2017 e tornou-se símbolo de resistência à violência contra a mulher, contra o feminicídio, após o caso ganhar o país e ainda romper fronteiras.

A musicista tinha 27 anos quando foi brutalmente assassinada. A última vez que foi vista, estava na companhia do algoz, o músico Luis Alberto Bastos Barbosa, em um ensaio, um dos projetos musicais de Mayara. O destino final da musicista só foi descoberto depois. Seu corpo foi encontrado parcialmente carbonizado na estrada que dá acesso a cachoeira conhecida na Capital como ‘Inferninho’. Mayara foi morta em um quarto de motel. Foi ferida a golpes de martelo e teve o corpo abandonado e incendiado no fim da tarde do mesmo dia.

Sua morte teve projeção nacional e motivou protestos em diversas cidades. Hoje, a memória da musicista “vive” por meio de músicas, homenagens, poema e até documentário. Mayara Amaral transformou a vida de muitas pessoas, incluindo a da irmã, e hoje inspira lutas feministas Brasil agora.

Homenagem à Mayara na UFG (Divulgação)
Homenagem à Mayara na UFG (Divulgação)

Um grito que ganhou o Brasil

Mayara teve uma carreira promissora interrompida. Meste em música pela UFG (Universidade Federal de Goiás), ela já se preparava para o Doutorado. Compartilhava, entre a música erudita e popular, diversos projetos. A brutalidade do crime foi dupla, já que a musicista foi julgada no tribunal da internet pelo envolvimento com Luiz Alberto.

“Será que ela era santa?”. “Ela pediu”. São alguns dos comentários em reportagens à época do assassinato. Foi o grito indignado da irmã, a jornalista Pauliane Amaral, que levou como vento o nome da musicista pelo Brasil. Seguir o caminho que começa com a publicação de uma carta aberta pela jornalista é uma forma de entender quem era Mayara Amaral.

Pauliane estampou a capa da revista Cláudia no mês de março, o mês da mulher (Reprodução)
Pauliane estampou a capa da revista Cláudia no mês de março, o mês da mulher (Reprodução)

“Então eu falei: gente, as pessoas precisam saber quem era a minha irmã, essa Mayara Amaral musicista. Nem colocavam que ela era professora, educadora, então eu falei: gente, as pessoas precisam saber quem é a minha irmã para parar de julgar ela assim. Porque quando a mulher morre, a culpa é sempre da mulher. Eu pensei: o que eu posso fazer aqui à distância? Eu posso contar quem é a minha irmã. Saberem que ela era uma professora, uma educadora, que além de musicista, que ela tinha um mestrado, ela foi fazer um doutorado, ela era uma pessoa acima da média, a minha irmã, uma pessoa especial e sensível”, conta Pauliane.

Foi então que a revolta eclodiu. Em Campo Grande, em São Paulo e em Natal, protestos foram registrados em nome de Mayara, pedindo o fim dos feminicídios no Brasil. Além dos protestos, matérias em jornais internacionais e revistas de projeção nacional ajudaram a transformar Mayara em um símbolo. Em Goiás, um violão de flores foi construído por colegas do mestrado.

“E o que me deu mais força foi ver que são poucas as pessoas que perdem alguém de uma forma brutal, vítima de feminicídio, vítima de violência contra a mulher e que vão atrás de contar essa história dessa mulher. São poucas as famílias, os amigos, que fazem isso, então eu fazer isso mostrou que isso não é uma coisa comum”, explica a irmã.

Mayara vive por meio de arte

Além das passeatas e homenagens, Mayara também virou música. Poemas e canções, eruditas e populares foram compostas em seu nome. O nome Mayara Amaral também foi lembrado em bancas de mestrado e doutorado e citada por musicistas no Brasil e fora do país.

Em 2017, Mayara ganhou homenagem da orquestra sinfônica de Campo Grande, comandada pelo maestro Eduardo Martinelli, o primeiro professor de violão da musicista.

“Eu conheci a Mayara em 2006. Ela chegou a fazer aula de violão comigo e depois foi minha aluna no curso da UFMS, no curso de música. A gente voltou a ter um contato mais próximo quando ela fez concertos com a orquestra sinfônica. Ela era muito talentosa, tocava muito bem. Foi a fase que ela decidiu que ia fazer isso como profissão, foi uma fase onde eram estudos musicais bem sérios, ela devia ter uns 17 anos, e a gente percebia que era bem aquela fase que ela decidiu: eu vou ser musicista profissional, eu vou seguir o caminho que eu tenho que trilhar pra isso”, conta o maestro.

Este ano Mayara também será homenageada no FIB (Festival de Inverno de Bonito). A musicista será homenageada junto com os a dupla Amambai e Amambaí e o grupo teatral Senta que o Leão é Manso. As homenagens acontecem na noite de abertura do evento, dia 26, às 19 horas, na Praça da Liberdade.

“Voa passarinha, asas são demais.

Enraiza ainda mais coragem todas nós.

Pra que se levante quem desfaleceu.

"Nenhuma a menos, nossa força só cresceu”.

É parte da música “Vida”, composta pela artista Marina Peralta. Foi em uma noite de silêncio, de luto, quando todos já estavam dormindo, que a música, inspirada em Mayara, veio inteira para a cantora.

“Poderia ter sido qualquer uma de nós. Então eu fiquei muito mal. A gente ficou chocado, várias amigas minhas, todo mundo com um silêncio, um luto, dá muito uma sensação de que a gente nunca vai conseguir resolver esse problema, uma sensação de impotência. No mesmo dia, minha família foi dormir e eu fiquei na sala de casa e peguei o violão, e simplesmente saiu a música inteira, num tempo de meia hora. E foi muito forte pra mim, eu estava muito emocionada quando eu fazia, ela carrega uma força”, conta Marina.

A cantora explica que a identificação veio da música, paixão que Mayara compartilhava com Marina. Mayara, relata a cantora, fica para sempre na memória. Os feminicídios estão nas periferias, nas aldeias, comenta Marina, mas o caso de Mayara ajudou a simbolizar a violência com que são tratadas as mulheres, mesmo aquelas que pensamos que nunca serão atingidas.

“Ela sempre vai ser lembrada. Eu acho importante frisar que a gente não pode deixar de pensar que feminicídios acontecem o tempo todo, onde não tem repercussão parecida com a Mayara, mas com certeza ela marca muito pela forma como foi, pelo que ela era, era feminista, estudava mulheres, então para mim, o símbolo é muito pela proximidade. Eu tenho essa indentificação da arte”, relata.

A jovem compartilhava o gosto pela música erudita com o amigo Ubiratan Carvalho Costa, que compôs uma música para ela. O músico que hoje mora na Itália conheceu a amiga em Goiânia, onde a musicista foi estudar violão clássico. Ele afirma que a dedicação de Mayara ao instrumento era acima da média.

“Eu via na Mayara uma combinação muito boa de talento com determinação e disciplina. Pra falar a verdade, até hoje nunca vi ninguém curtir tanto violão do jeito que ela curtia, a naturalidade com que pegava o violão pra tocar qualquer coisa, a confidência que ela tinha com o instrumento. Não gosto de colocar o talento da Mayara lá em cima e exagerar porque, devido à proximidade que eu tinha com a vida dela, com a sua rotina e as preocupações, percebia que ela calava muito a sensibilidade musical dela justamente por relaxar muito pouco e encarar a coisa de um ponto de vista sério demais”, conta.

Ubiratan relata que o processo foi demorado e doloroso. “É uma música onde, a partir de um certo ponto, os dois instrumentos buscam se agredir, falar um por cima do outro, calar um ao outro. É uma música de muita lamentação e luto, de uma dor que não se conforma e quer agredir, ao menos assim quis que fosse, não posso decidir ou controlar o que vai ouvir o ouvinte. Pro dia do concerto em que a música foi estreada, escrevi também um texto de protesto que foi lido por uma atriz no palco. Achei que escrever uma música instrumental era coisa muito abstrata, queria passar um recado pra além do som e acho que o público captou a mensagem”, explicou.

Protesto pela vida de Mayara em São Paulo (Divulgação)
Protesto pela vida de Mayara em São Paulo (Divulgação)

O amigo conta que a musicista deixou um legado para a música. “Nos últimos meses de vida dela, me sentia feliz de vê-la num processo muito bonito de largar essas preocupações de lado, de curtir a poesia da vida, de se conectar com a sensibilidade e as vontades dela... Infelizmente o mundo é isso aí também, cruel, terrível, e ceifou a Mayara de um jeito muito bruto. A Mayara ia arrebentar no violão, mas não deu, e em honra a ela quem tem que arrebentar somos nós. Deixou pra gente uma dissertação de mestrado sobre as mulheres compositoras no Brasil da década de 1970, dissertação que sinceramente ainda nem li, mas posso dizer que o que a Mayara tinha pra oferecer pra gente era muito mais do que uma pesquisa acadêmica, muito mais”, contou.

O caso de Mayara também ajudou a refletir sobre a forma sensacionalista como a violência contra a mulher é, muitas vezes, veiculada. Mayara integra o documentário “NÃO FOI CRIME PASSIONAL - A cobertura da mídia em casos de feminicídio”, produzido pelas jornalistas Victória Bernardes, 22 e Renata de Oliveira Lins, 25, como TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) de jornalismo na FIAM-FAAM em São Paulo.

Victória explica que o desabafo de Pauliane motivou a dupla e provocou mudanças na forma como caso foi noticiado.

“A conduta do assassino nunca era questionada, mas a conduta da Mayara era muito mais questionada do que a conduta do cara que matou ela. Mas depois da carta aberta a imprensa começou a pensar. Foi um movimento que começou a pegar todo mundo, coletivos começaram a cobrar um tratamento correto. Ela é um símbolo, tanto é que hoje todo mundo sabe quem é Mayara Amaral: uma musicista, professora, doutoranda de Música que foi morta a marteladas em um motel”, relata Victória.

Renata fazia estágio em uma emissora, à época do caso, que noticiava casos como esse com sensacionalismo. Ela chegou a abordar o caso no trabalho, quando ainda era tratado como latrocínio e os detalhes chamaram a atenção da estudante de jornalismo, que desconfiou de feminicídio. “Foi mais um caso de feminicídio que muitas vezes pode ser confundido com outro tipo de crime, mas é nitidamente um crime de ódio, fica um símbolo para outros casos, de outras mulheres, de representar outros casos que são descritos de uma forma que não é 100% realidade”.

“Acaba de certa forma dando visibilidade ao tema, infelizmente um caso trágico, horrível, quando você usa como uma bandeira para falar sobre o tema, para falar sobre aquilo, acaba ajudando casos de outras famílias que estão passando por isso. A morte dela acabou levantando uma bandeira pra debater o feminicídio”, comentou Renata.

Mayara inspirou feministas em todo o Brasil (Divulgação)
Mayara inspirou feministas em todo o Brasil (Divulgação)

Mais uma voz

Foi pela dor de perder a irmã que Pauliane também foi transformada por Mayara, tornando-se mais uma voz na luta contra a violência praticada contra as mulheres no Brasil.

“Eu acabei, involuntariamente, fazendo parte de uma luta maior, que é a luta contra esse tipo de violência contra a mulher. Acho que a simbologia vai continuar, acho que as pessoas vão continuar lembrando da minha irmã pela pessoa que ela era, isso é o mais importante de tudo”.

- Quem era Mayara?

- Era essa pessoa estudiosa, sensível, uma grande amiga e uma grande colega. Essa era Mayara. Uma pessoa que batalhava, que estudava, que era professora.

Nos siga no Google Notícias