Amor que pesa: por que repetimos o papel de salvadora na relação?
Psicanalista explica o porquê do problema e afirma que ninguém tem responsabilidade de fazer isso
Quando tentar salvar alguém significa se sacrificar? Até onde vai esse ‘desejo’ de amparar o outro e mudar o rumo de uma história que não é sua? “O amor exige sacrifícios”, “o amor tudo suporta”. Apesar de parecerem bonitas, essas frases carregam questões importantes quando analisadas com um pouco mais de atenção — especialmente quando o papel de sacrificar, suportar e salvar recai sempre sobre as mulheres.
A consequência disso é, além da vulnerabilidade, a sobrecarga e os problemas emocionais. Salvar o outro, às vezes, pode significar esquecer de si mesma.
Aqui o assunto não é apenas o amor romântico, mas também o amor entre irmãos, pais ou amigos, por exemplo. A psicanalista Jamile Tannous explica que se colocar nessa função é um ato injusto, inconsciente e histórico, herdado por mulheres ao longo dos anos.
Para entender melhor o debate, é preciso lembrar que, socialmente, as mulheres ocuparam espaços direcionados aos cuidados da casa, da família ou da comunidade onde estavam. Eram elas as encarregadas de apaziguar conflitos e representar o lado “sensível” da narrativa. Pelo menos, era isso que as pessoas acreditaram por muito tempo.
Hoje, a realidade se mostra mais clara. Segundo a psicanalista, para romper com esse ciclo, é necessário um esforço consciente para desafiar e reconfigurar essas normas culturais e sociais.
“O papel de salvadora que muitas mulheres ocupam tem raízes profundas em fatores históricos e culturais de gerações. Essa construção as coloca em uma posição de vulnerabilidade em relacionamentos não saudáveis. Além disso, padrões familiares e crenças culturais ajudam a perpetuar esse ciclo e fazem com que muitas repitam, inconscientemente, os padrões de relacionamento que aprenderam na infância.”
Até onde vai a vontade de salvar o outro?
De acordo com ela, o que tira as mulheres dessa posição é o autoconhecimento. Apesar do que muitos pensam, isso pode ser alcançado não só por meio da terapia, mas também por livros, filmes, músicas e até conversas "banais".
“Quando uma mulher se compreende profundamente, ela é capaz de identificar suas próprias necessidades, desejos e limites. Esse entendimento é um fator de proteção que a coloca em primeiro lugar, nutrindo a autoestima e o amor-próprio.”
Essa atitude evita que ela caia em armadilhas de relacionamentos tóxicos, onde a dependência emocional pode ser confundida com amor. Esse é um dos "destinos" das salvadoras.
“Ao se conhecer, a mulher aprende a valorizar sua própria felicidade e bem-estar, criando relações baseadas em respeito mútuo e reciprocidade, em vez de sacrifício e autoanulação.”
Isso se aplica, como dito, em outras esferas, como o relacionamento entre irmãos, pais ou amigos. Pode parecer duro ou distante, mas não ocupar esse lugar não significa que elas não possam ser empáticas, ajudar as pessoas ou se envolver com as histórias dos outros.
“O processo de autoconhecimento não para. Podemos nos aproveitar de qualquer momento para entrarmos em contato conosco mesmas e buscarmos a nossa própria compreensão. A jornada de autoconhecimento é essencial para que as mulheres se libertem do papel de salvadora.”
Relacionamentos saudáveis
“Isso requer uma desconstrução da crença de que o amor implica em sacrifício. O lema deveria ser: ninguém salva ninguém a menos que queira”, diz Jamile.
Segundo a profissional, a mudança precisa partir do sujeito que sofre. Por isso, para construir relacionamentos saudáveis, é crucial romper com o padrão que impõe à mulher o papel de cuidadora e salvadora.
Ninguém tem a tarefa de salvar ninguém. Para ela, relacionamentos saudáveis devem ser baseados em reciprocidade, respeito e liberdade, sem a necessidade de mudar ou salvar o outro.
“A mulher precisa reconhecer que sua responsabilidade é consigo mesma, cuidando de seu bem-estar e felicidade. Estabelecer limites saudáveis e entender que cada indivíduo é responsável por sua própria vida é fundamental.”
Síndrome da salvadora
Quando o padrão se repete com frequência, o nome dado é ‘síndrome da salvadora’. A psicanalista comenta que a atitude de ocupar esse lugar está, muitas vezes, relacionada a fatores psicológicos complexos.
Eles podem ir desde uma forma de compensar inseguranças e alimentar a autoestima até a tentativa de obter controle sobre a própria vida. A consequência disso, além da dependência emocional de ambos os lados, é a sobrecarga.
“Essa dinâmica pode estar enraizada em experiências passadas, como a falta de reconhecimento na infância ou em relacionamentos anteriores. A sensação de onipotência e a falsa segurança de ser indispensável podem levar ao esgotamento emocional, pois a mulher se sobrecarrega com a responsabilidade de ‘consertar’ o outro.”
Jamile completa que sair desse ciclo é difícil, mas não impossível. O primeiro passo é se questionar e sair do automático da rotina. “Não paramos para pensar no que estamos fazendo, sentindo, pensando. Esse deve ser o cerne, o início do autodescobrimento.”
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