Aos 83 anos, Jovenil nunca soube ler, mas decorou ícones para usar celular
Ser analfabeta é uma ferida que virou cicatriz, e a tecnologia veio para ajudar a manter o humor em dia
Com 15 anos, Jovenil Flores Magalhães escolhia o nome que ficaria gravado na antiga folha amarela que comprova a existência de alguém. Com papel e caneta na mão e sem nunca ter aprendido a ler, ela precisou copiar o que o oficial de registro escreveu para se tornar “gente”. Hoje, aos 83 anos e sem abrir mão da tecnologia, ela anda com o celular pendurado no pescoço para cima e para baixo e dá gargalhadas com vídeos no YouTube.
A comunicação ali é feita na memória, decorando os ícones e mandando mensagens de voz. Na tela, a maior diversão são os enredos dramáticos e fictícios. Jove, como é conhecida, compartilha com desconfiança a história, que para ela é só mais uma entre tantas. Com desconfiança, ela conta a origem do nome. Com passar do tempo. o sentimento logo vira risada.
Sentada na cadeira na frente da casa onde mora há 53 anos, na Rua Alegrete, ela explica que seria batizada com o nome de Jovelina, mas que odiava e resolveu dar o próprio nome. A ideia veio do nada e ela achou bonito.
“Minha mãe queria Jovelina, mas fui registrar depois de grande. Achava muito feio esse nome aí, não queria. Na hora de registrar, pedi esse. Registrei quando vim pra cá, eu era da fazenda, perto de Terenos. Na minha casa, todo mundo tinha o nome Flores. Tirei esse nome de Jovenil do nada. Ainda falaram que usei nome um nome masculino. Aí fiquei pensando nisso até esses tempos.”

Jove sabe da idade porque, segundo ela, a mãe anotou a data do nascimento em um caderninho. Ser analfabeta é uma ferida antiga que virou cicatriz para ela. No começo, não saber assinar o próprio nome era uma tristeza. Depois, com o tempo, ela passou a não ligar. Achava que já não tinha mais como aprender.
Comecei a trabalhar com 7 anos. Minha mãe tinha muito filho, éramos em 13. A pessoa oferecia, a gente ia trabalhar na casa dela. A mulher que ficou comigo prometeu para minha mãe que iria me colocar na escola e nunca me colocou. Aí meu pai me buscou porque não estava estudando. Mal sei assinar meu nome. No começo achava muito ruim, mas já acostumei, não tem mais o que fazer. Já tentei aprender, mas parece que não entra na cabeça. Não me animo mais.”
A aposentada conta que sempre trabalhou com serviços gerais na casa das pessoas e na limpeza de hospitais. Mas antes disso, na roça, colheu arroz e cortou cana.
Para se comunicar virtualmente, Jove usa o celular com destreza e se orgulha de ter aprendido. “Esse eu sei. Isso aí eu sei mexer. Minhas netas são muito carinhosas, elas que me deram o celular. Me ensinaram e eu decorei. Elas desenharam em um papel como eu fazia, e falo com as pessoas por áudio e telefone.”
Mesmo com a vida dura e tantas lutas, Jove não reclama. Ao contrário, agradece todos os dias. Saudável, apenas com um problema no joelho, ela não para um minuto e é o terror dos médicos. Ela arranca mato do quintal, apara a grama e ajuda a filha na venda de salgados, mas alerta que detesta cozinhar.
Apesar dessa vida, eu acho que ela foi boa. Eu gosto da minha vida e agradeço todos os dias. Sou devota de Nossa Senhora de Fátima. Aposentei e continuei fazendo as coisas. Vai nascendo os matinhos e eu vou arrancando. Os filhos brigam por causa disso. Mas o que me mantém ativa é nunca parar, não se entregar para as doenças. Se deitar, fica doente de vez. Eu nunca parei de trabalhar. Por isso sou assim, não entrego.”
Quando não está de pé, Jove tentava se ocupar com crochê, mas as câimbras pegaram as mãos dela de jeito. Hoje é só o celular.
“Fui no médico porque quebrei o pé e ele perguntou o que eu fazia. Disse que limpava quintal, passava máquina, fazia as coisas de casa. Ele deu risada e falou que não iria passar remédio para dor, porque eu não paro mesmo e ela iria voltar. Era brincadeira".
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