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Política

"Ética da destruição e omissão" marcam Lula 3 nas demarcações, diz procurador

Contradições e inércia do governo federal prolongam conflito por terras e deixam indígenas sem resposta em MS

Por Vasconcelo Quadros, de Brasília | 07/11/2025 11:41
"Ética da destruição e omissão" marcam Lula 3 nas demarcações, diz procurador
Procurador Marcos Delfino conversa entre o procuradore e indígenas de Dourados (Foto: Helio de Freitas/Arquivo)

“O Estado brasileiro se omitiu por décadas e, ao fazê-lo, produziu miséria.” A avaliação do procurador da República Marco Antônio Delfino de Almeida, referência nos conflitos indígenas em Dourados (MS), expõe o que ele define como a contradição central do governo Lula 3: o discurso de reparação não se traduziu em ação.

RESUMO

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O procurador da República Marco Antônio Delfino critica a postura do governo Lula em relação às demarcações de terras indígenas. Segundo ele, apesar do discurso de reparação, não houve avanços concretos nas políticas para povos originários, perpetuando décadas de omissão do Estado brasileiro. Para o procurador, o governo perdeu a oportunidade de resolver os conflitos quando as terras eram mais baratas e as negociações, mais viáveis. Delfino destaca que a inação atual é especialmente contraditória, considerando a criação do Ministério dos Povos Indígenas e as promessas de campanha, e aponta que a falta de vontade política, não de instrumentos jurídicos, é o principal obstáculo.

Segundo o integrante do Ministério Público Federal, o governo perdeu a oportunidade de resolver parte do passivo quando a terra era barata e as negociações eram possíveis.

Hoje, invoca dilemas éticos para justificar a inércia, embora tenha pago indenizações por áreas federais em Antônio João, onde fazendeiros são acusados de envolvimento em mortes de indígenas. “É uma ética de destruição”, afirma Delfino, em entrevista exclusiva ao Campo Grande News, apontando que a omissão atual perpetua a mesma lógica de governos anteriores.

O que explica a persistência dos conflitos fundiários envolvendo comunidades indígenas em Mato Grosso do Sul?

A origem está nas causas remotas e na omissão do governo federal. Desde a ditadura militar havia a determinação de que a demarcação das terras indígenas fosse concluída em cinco anos. Há um histórico de não cumprimento dessas obrigações legais. A Constituição de 1988 reafirmou esse dever, mas, até hoje, o Estado brasileiro não fez o que estava determinado. Essa inação é duplamente maléfica para os povos indígenas.

Em que sentido essa inação é “duplamente maléfica”?

Porque, se as demarcações tivessem sido feitas na década de 1990, o cenário seria outro. O valor das terras era muito inferior ao que é hoje, e o agronegócio vivia um momento de crise. O custo para o Estado seria menor e o conflito, mais fácil de resolver. Agora, com as terras valorizadas e politicamente disputadas, a solução se tornou mais complexa. O atraso do governo gerou obstáculos econômicos, políticos e também simbólicos — as lideranças mais antigas estão morrendo e a memória das comunidades se esvai.

"Ética da destruição e omissão" marcam Lula 3 nas demarcações, diz procurador
Marcos Rufino durante entrevista na Procuradoria da República (Foto: Mariana Soares/Instituto Socioambiental/Arquivo)

O governo Lula criou um grupo de trabalho e o Ministério dos Povos Indígenas tem a missão de apontar soluções para os conflitos. Qual a expectativa real de avanços?

Sinceramente, o que se vê é o contrário. Esse governo foi eleito com forte apoio das comunidades indígenas, criou um ministério específico e prometeu resolver o passivo fundiário. Mas, até o momento, não houve avanço. É uma contradição profunda. O PT nunca tratou a pauta indígena como prioridade. Historicamente, entende essas causas identitárias — indígenas e raciais — como algo que enfraquece a pauta central do partido, que é a da redistribuição econômica e do poder. Isso é visível desde o governo Dilma, nas obras que afetaram comunidades indígenas e na condução das demarcações.

O senhor acredita, então, que há falta de vontade política?

Sem dúvida. Não é falta de instrumentos jurídicos nem de previsão legal. É falta de decisão política. O governo tem meios de resolver, mas evita enfrentar o custo político de admitir sua omissão. Falta coragem para reconhecer que o Estado foi o principal responsável por essa situação. A ausência de demarcação, a demora, as omissões e as abordagens inadequadas levaram a tragédias. A maior responsabilidade pelas mortes indígenas não é da polícia — é do governo federal. O gatilho pode estar na mão do policial, mas a mira está na mão do governo.

O senhor mencionou que o governo evita enfrentar um “dilema ético”. Que dilema seria esse?

O governo tenta justificar sua inação com um suposto dilema ético sobre o pagamento de indenizações. Mas é uma ética de destruição, porque, enquanto o governo hesita, pessoas morrem. A verdade é que esse limite moral já foi rompido há muito tempo. No caso de Nhanderu Marangatu, em Antônio João, por exemplo, o governo indenizou pessoas comprovadamente envolvidas em mortes de indígenas e até de agentes de segurança. Ou seja, quando quis, o Estado pagou — ainda que fosse para quem tinha sangue nas mãos. Agora, quando se trata de reparar uma omissão histórica, surge um dilema ético que nunca existiu. O governo sempre tratou a questão indígena de forma utilitária, sempre atropelou os povos originários. E isso vale para todos os governos, sem exceção.

Qual deveria ser a prioridade do governo federal neste momento?

Assumir sua responsabilidade histórica e transformar a indenização pela terra nua em uma reparação pela mora governamental. O Estado demorou décadas para cumprir a Constituição. Não se trata apenas de pagar pela terra, mas de reparar um atraso que gerou violência e miséria. É preciso uma decisão política clara, um cronograma e recursos para resolver, começando pelas áreas menores, onde é possível avançar rapidamente.

Quantas áreas em conflito poderiam ser resolvidas de imediato em Mato Grosso do Sul?
Hoje temos algumas áreas de conflito onde seria possível avançar, como Passo do Pirajuí (Douradina) e Guyraroká (Caarapó). São áreas pequenas, cerca de 10 mil hectares, com comunidades de aproximadamente mil pessoas no total. Com vontade política, seria possível regularizar essas terras em em conflito num prazo de cinco a dez anos, garantindo dignidade e condições de vida a essas populações. Mas, sem políticas públicas associadas — crédito, apoio agrícola, infraestrutura —, a demarcação isolada não resolve.

O senhor mencionou que o Estado sempre agiu de forma reativa no caso dos Guarani Kaiowá. Isso ainda ocorre?

Sim. Historicamente, o poder público só age depois da tragédia. Foi assim nas décadas de 1990 e 2000, quando se falava em “epidemia de suicídios” entre indígenas. Mandavam psicólogos, faziam estudos, mas não enfrentavam a causa: a falta de terra. Depois veio a fome, e a solução foi distribuir cestas básicas — um paliativo que se arrasta há mais de vinte anos. Agora temos o encarceramento: há cerca de 400 indígenas presos em Mato Grosso do Sul, muitos em razão de traumas, fome e desestrutura social. A resposta do Estado continua sendo paliativa.

Como o Ministério Público Federal atua nesse contexto?

O MPF tem buscado pressionar o governo judicialmente para que cumpra as obrigações constitucionais. Mas há um limite. Quando o próprio governo federal descumpre reiteradamente a Constituição e normaliza esse descumprimento, o sistema de Justiça acaba de mãos atadas. É um contrassenso que o governo precise assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para cumprir aquilo que a Constituição já determina. Isso é incompreensível.

Essa omissão é histórica, mas o atual governo não deveria ter uma postura diferente?
Sim, e é isso que torna o momento atual tão frustrante. Quando o governo cria um Ministério dos Povos Indígenas, sobe a rampa com representantes indígenas e depois mantém a mesma inércia, o simbolismo se perde. O gesto simbólico não substitui a ação concreta. É preciso vontade de resolver, e essa vontade, infelizmente, não existe.

O Congresso aprovou uma lei restabelecendo o marco temporal. Como o senhor avalia essa questão?

O Supremo Tribunal Federal já decidiu que o marco temporal não se aplica. O que houve no Congresso foi uma tentativa de reação política — o que chamamos de backlash — semelhante ao que ocorreu com a vaquejada, declarada inconstitucional e depois transformada em patrimônio cultural por emenda constitucional. No caso do marco temporal, porém, trata-se apenas de uma lei ordinária, sem o peso jurídico de uma emenda. Portanto, o marco temporal não tem validade constitucional, apesar do discurso de parte do agronegócio e de alguns setores políticos.

O que o senhor destacaria como essencial para superar esse impasse?

É preciso coragem para enfrentar a verdade histórica. O Estado brasileiro se omitiu por décadas e, ao fazê-lo, produziu miséria, violência e morte. Enquanto não reconhecer isso e não agir com decisão, continuará a ser o principal responsável por esse quadro de vulnerabilidade extrema das comunidades indígenas.

Os Guarani Kaiowá são frequentemente citados como os povos mais atingidos pela expansão econômica no Centro-Oeste. Qual é a origem dessa vulnerabilidade?

Essas comunidades foram escravizadas em praticamente todos os ciclos econômicos de Mato Grosso do Sul. No ciclo da erva-mate, por exemplo, foram usadas como mão de obra forçada; o mesmo ocorreu na abertura das fazendas e até em períodos mais recentes, em trabalhos análogos à escravidão. Toda a economia sul-mato-grossense foi construída sobre o trabalho indígena, especialmente dos Guarani Kaiowá, que foram explorados e removidos sistematicamente de seus territórios. Os Guarani foram uma das maiores nações indígenas do continente sul-americano, desde as missões jesuítas (1626 a 1759). Esse mundo foi completamente desmontado pelas políticas coloniais e pelas incursões dos Bandeirantes. A partir daí, os Guarani se dispersaram e passaram a viver séculos de perseguição, escravização e perda territorial. É uma das histórias mais violentas de destruição cultural já registradas no país.