STF forma maioria contra marco temporal e coloca MS no centro da crise fundiária
Enterro da lei levará Congresso a novo conflito jurídico com PEC aprovada no Senado e encaminhada à Câmara

O Supremo Tribunal Federal formou maioria para derrubar a tese do marco temporal na demarcação de terras indígenas, com votos dos ministros Gilmar Mendes (relator), Flávio Dino, Cristiano Zanin, Luiz Fux, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. Fatla computar ainda os votos dos ministros Edson Fachin, presidente da Corte, Nunes Marques, André Mendonça e Cármen Lúcia.
RESUMO
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O Supremo Tribunal Federal formou maioria contra a tese do marco temporal na demarcação de terras indígenas, com seis votos favoráveis. A decisão afasta a exigência de ocupação indígena em 5 de outubro de 1988 e declara inconstitucional o critério incorporado pela Lei 14.701/2023. O relator Gilmar Mendes, em voto de 228 páginas, destacou Mato Grosso do Sul como epicentro do conflito fundiário brasileiro, citando décadas de violência entre fazendeiros e comunidades Guarani-Kaiowá. O ministro propôs uma solução que combina demarcações constitucionais com indenização aos proprietários de boa-fé, responsabilizando a União pelo custo do atraso histórico nas demarcações.
O entendimento afasta, para efeito de demarcações, a exigência de ocupação indígena em 5 de outubro de 1988 considerada incompatível com os direitos originários previstos na Constituição, e declara a inconstitucionalidade do critério incorporado pela Lei 14.701/2023.
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A decisão, tomada no plenário virtual, terá repercussão geral, orientando todos os casos semelhantes no país e reposicionando o STF como árbitro central de um dos conflitos fundiários mais antigos do Brasil.
Relator das ações que contestam a lei aprovada pelo Congresso em 2023, Gilmar Mendes atribuiu à União e ao próprio Legislativo a responsabilidade por 32 anos de “omissão constitucional continuada” na política indigenista.
Segundo o ministro, o descumprimento do artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias — que determinava a conclusão das demarcações até 1993 — criou um ambiente permanente de insegurança jurídica e alimentou conflitos que poderiam ter sido evitados.
Na segunda-feira, Mendes apresentou um voto extenso, duro e estruturado, que surpreendeu produtores rurais, indígenas e indigenistas ao desmontar a tese historicamente defendida pela bancada ruralista.
Para o relator, o direito indígena à terra não se vincula a uma fotografia estática da ocupação em 1988, mas a uma relação histórica, cultural e existencial com o território — entendimento já consolidado pelo próprio STF e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Mato Grosso do Sul no epicentro
No voto de 228 páginas, que conduz à derrubada definitiva do marco temporal, Mato Grosso do Sul ocupa lugar central. Gilmar Mendes trata o Estado como epicentro histórico do conflito fundiário brasileiro, marcado por décadas de violência envolvendo fazendeiros e comunidades Guarani-Kaiowá, e como símbolo máximo da falência do Estado na condução da política de demarcação.
Para o relator, se o poder público tivesse cumprido o prazo constitucional imposto pelo artigo 67 do ADCT, “grande parte dos conflitos simplesmente não teria existido”. Em vez disso, a inércia estatal empurrou indígenas e produtores para disputas intermináveis, com mortes, expulsões e uma das mais longas crises humanitárias indígenas do país concentradas no sul de MS.
É nesse contexto que Mendes destaca o acordo firmado em Antônio João (MS) como exemplo concreto de solução possível, embora contestada pelo Ministério dos Povos Indígenas e entidades indigenistas. Construída sem marco temporal, a experiência envolveu indenização, reassentamento e compensações proporcionais a produtores rurais instalados em terra indígena, sendo citada no voto como prova de que há alternativas reais à escalada de violência.
“A solução já existe, foi testada em Mato Grosso do Sul, e o Estado escolheu não replicar”, sintetiza o raciocínio central do relator.
Ao citar Antônio João, Gilmar Mendes desmonta o argumento de que o marco temporal seria condição para a paz no campo. Para ele, a estabilidade nasce da combinação entre demarcação constitucional, ampla defesa aos proprietários, indenização quando cabível e mediação institucional permanente — exatamente o oposto do que ocorreu em regiões como o sul de MS.
Uma no ferro, outra na ferradura
Ao mesmo tempo em que reafirma os direitos indígenas, o voto não ignora a situação dos produtores rurais atingidos pela indefinição estatal. Em um dos trechos politicamente mais sensíveis do julgamento, Mendes reconhece que a demora da União produziu cadeias possessórias e registrais legitimadas pelo próprio Estado, criando expectativas jurídicas que não podem ser simplesmente descartadas.
Por isso, defende uma solução combinada: demarcações constitucionais com contraditório, indenização aos proprietários de boa-fé — incluindo terra nua e benfeitorias, conforme o caso — e responsabilização direta da União pelo custo financeiro, administrativo e político do atraso histórico.
Na prática, o voto desloca o foco da controvérsia. Ao afastar a narrativa de “confisco de terras”, Gilmar Mendes aponta a inércia do Estado brasileiro como causa estrutural do conflito. O problema, sustenta, nunca foi o direito indígena, mas a ausência de decisão estatal.
Conflito alimentado pela omissão
O relator descreve um cenário de espiral de violência no campo, agravado por falhas estruturais da Funai, falta de servidores, paralisação de processos e decisões administrativas fragmentadas. Centenas de processos de demarcação permanecem inconclusos ou sequer passaram da fase inicial, perpetuando um ambiente de incerteza jurídica, tensão social e radicalização.
Para Gilmar Mendes, enquanto o Estado não oferece uma resposta definitiva, indígenas e produtores ficam aprisionados em disputas intermináveis, com impactos econômicos, sociais e humanos profundos. “Vidas paralisadas” e “sonhos perdidos” são expressões usadas no voto para retratar o custo dessa omissão prolongada.
Dados de referência confirmam o diagnóstico. Ao longo de 32 anos de omissão constitucional, o Brasil acumulou um saldo expressivo de violência contra povos indígenas, diretamente associado à insegurança jurídica no campo.
Relatórios do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) indicam que, nesse período, milhares de indígenas podem ter sido assassinados em conflitos fundiários, ataques armados e emboscadas, sobretudo em estados como Mato Grosso do Sul, Amazonas, Roraima e Pará.
Apenas na última década, os registros apontam uma escalada da violência letal, com médias anuais superiores a cem homicídios, atingindo 211 mortes em 2024. Além dos assassinatos, há milhares de casos de invasões de terras, destruição de lavouras e moradias, exploração ilegal de recursos naturais, ameaças e tentativas de homicídio.
STF como fiador da solução
Diante desse quadro, Gilmar Mendes sustenta que o Supremo não pode mais se limitar a reconhecer a omissão, mas deve impor obrigações concretas ao Executivo, inclusive com prazos razoáveis e peremptórios para a conclusão das demarcações. O objetivo declarado é restabelecer a segurança jurídica e encerrar um ciclo de conflitos que poderia ter sido evitado há décadas.
Segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), o Brasil possui hoje 823 Terras Indígenas, que somam cerca de 14% do território nacional. Desse total, 535 áreas estão com a demarcação concluída, enquanto 289 ainda tramitam na Funai, sendo 162 na fase inicial de identificação, sem sequer proposta de limites.
Críticas do Ministério dos Povos Indígenas
Apesar de votar pela inconstitucionalidade do marco temporal, o voto do relator provocou forte reação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Para a pasta, o texto afasta formalmente o marco temporal, mas introduz condicionantes e interpretações que representariam retrocessos aos direitos constitucionais indígenas.
O ministério critica, entre outros pontos, a relativização do direito territorial indígena em hipóteses de “utilidade pública”, a negação do caráter vinculante da consulta prévia e o conceito amplo de “justo título” para fins de indenização. Também rejeita a proposta de um novo rito demarcatório e o critério de proporcionalidade entre território e população, considerados estranhos ao artigo 231 da Constituição.
O embate ocorre em meio a uma disputa institucional mais ampla. Enquanto o STF julga a validade da lei, o Senado aprovou a PEC 48, que tenta constitucionalizar o marco temporal — iniciativa rejeitada integralmente pelo MPI. A senadora Tereza Cristina (PP-MS), vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) disse ao Campo Grande News
através de sua assessoria que a busca de um marco vai continuar, com a pressão parlamentar se deslocando para a votação da PEC na Câmara. O entendimento é o de que se uma lei federal não é suficiente, uma emenda à Constituição sanaria o questionamento, não cabendo veto, segundo seu entendimento.
O deputado Dagoberto Nogueira (PSDB) afirmou que ainda é necessário aguardar o impacto da decisão. “Eu não sei ainda como isso vai se consolidar. É difícil medir”. O deputado observou que a decisão sugere soluções específicas para casos como o de Antônio João, citando precedentes envolvendo acordos e indenizações.
Para Dagoberto, esse modelo pode ser uma saída para reduzir conflitos fundiários. “A saída é buscar entendimento, como foi feito lá. Mas naquele caso teve uma participação efetiva do governador. Tem que envolver mais gente”, defendeu.
Segundo ele, a solução passa pela articulação entre diferentes níveis de governo. “É preciso envolver os três entes: município, Estado e União. Não dá para resolver isso de forma isolada”, afirmou, ressaltando que também há dúvidas sobre a capacidade financeira do governo federal para bancar acordos mais amplos. “Eu não era a favor do marco temporal. Queria uma solução justa. Agora, da forma como ficou, a discussão mudou completamente”, concluiu.
Ópera institucional sem fim
O marco temporal transformou-se numa espécie de ópera institucional de desfecho indefinido, marcada por confrontos sucessivos entre os Poderes. Em 2023, o STF declarou a tese inconstitucional; o Congresso reagiu aprovando uma lei em sentido oposto; o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou o texto; o veto foi derrubado, passando a vigorar a lei derrubada nesta quarta-feira (17 de dezembro); prevendo a derrota, a bancada ruralista aprovou a nova PEC no Senado, tentando constitucionalizar o marco.
Nesse vaivém, a controvérsia extrapola a disputa entre Congresso e STF e alcança o próprio voto do relator, que, embora afaste o marco temporal, é criticado por redesenhar o procedimento demarcatório. Ainda assim, a inconstitucionalidade da PEC, já apontada de forma categórica por Flávio Dino em seu voto, tende a prevalecer.
Ao final, o voto de Gilmar Mendes constrói uma saída institucional que afasta o marco temporal, reafirma os direitos indígenas, reduz o risco jurídico para os produtores rurais e transfere à União a conta de uma crise criada por sua própria inação, mas que a obrigará a pagar por terras que são suas — uma tentativa de fechar, com atraso de mais de três décadas, uma das feridas fundiárias mais profundas do país.


