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A luz entra por onde estamos rachados

Por Cristiane Lang (*) | 07/04/2025 08:33

Há algo profundamente transformador na dor. Embora ninguém deseje passar por sofrimentos, é inegável que eles têm o poder de nos partir ao meio, expondo as nossas rachaduras mais profundas. E é justamente por essas rachaduras que a luz entra. A sabedoria popular diz que a dor ensina, e, embora seja uma verdade difícil de aceitar, ela se comprova na prática. A experiência de ser quebrado nos permite enxergar além da superfície, revelando partes de nós mesmos que jamais conheceríamos se não tivéssemos sido confrontados com nossas próprias vulnerabilidades.

A fragilidade que fortalece 

É natural querer evitar a dor. Desde pequenos, aprendemos a nos proteger, a fugir de situações que nos machucam. No entanto, evitar o sofrimento não nos torna imunes a ele. Pelo contrário: ao negar nossas dores, acabamos permitindo que elas se acumulem, formando uma muralha espessa ao redor da alma. Quando essa muralha racha — e um dia ela inevitavelmente racha —, nos vemos diante de uma verdade crua e incontornável: somos humanos, falhos e vulneráveis.

Mas é nesse ponto que reside a magia da transformação. O impacto das adversidades não apenas nos quebra, mas também abre espaço para a luz da compreensão e da renovação. Cada rachadura é uma brecha por onde a clareza pode entrar, iluminando partes de nós que estavam sombreadas por preconceitos, inseguranças e medos.

A sabedoria que nasce do caos 

O caos interno gerado pela dor provoca um rearranjo emocional. A rotina que tínhamos antes do sofrimento não se sustenta mais. Precisamos encontrar um novo equilíbrio, e, nesse processo, acabamos descobrindo forças que nem sabíamos que possuíamos.

A sabedoria não é um prêmio entregue a quem passa ileso pelas dificuldades. Pelo contrário: ela nasce do enfrentamento, da aceitação das nossas falhas e da coragem de seguir em frente mesmo quando tudo parece ruir. É preciso uma certa humildade para reconhecer que não temos controle sobre tudo, e que, às vezes, a vida nos dobra para nos ensinar a sermos flexíveis.

O aprendizado oculto na dor 

Por mais difícil que seja admitir, o sofrimento nos ensina coisas que a alegria não consegue. Ele nos força a refletir sobre nossas escolhas, nos faz questionar a forma como enxergamos o mundo e nos desafia a abandonar o que é superficial.

Ao enfrentar uma perda, por exemplo, entendemos o valor da presença e da reciprocidade. Ao sermos traídos, aprendemos sobre confiança e limites. Ao fracassarmos, percebemos que o valor não está apenas na conquista, mas no esforço e na intenção. Cada situação dolorosa carrega consigo um ensinamento único, que só se revela para quem está disposto a aprender.

Transformando dor em iluminação 

O processo de transformar a dor em sabedoria começa com a aceitação. Em vez de resistir ao sofrimento ou negá-lo, precisamos acolhê-lo como parte do ciclo natural da vida. Isso não significa se resignar ou aceitar injustiças, mas sim reconhecer que a dor tem algo a nos ensinar.

Um passo importante é abandonar a postura de vítima. Embora seja legítimo sentir tristeza, raiva ou frustração, permanecer preso a esses sentimentos nos impede de crescer. A transformação começa quando olhamos para nossas rachaduras com compaixão, entendendo que elas são marcas de luta e resistência.

Aos poucos, a dor se torna menos intensa e dá lugar a um novo entendimento. Descobrimos que somos mais fortes do que imaginávamos, que conseguimos suportar o que antes parecia insuportável. E, principalmente, percebemos que a vulnerabilidade não nos faz fracos — ela nos humaniza.

A beleza das rachaduras 

Na cultura japonesa, há uma arte chamada kintsugi, que consiste em reparar objetos quebrados com ouro, transformando rachaduras em parte da história da peça. Em vez de esconder as falhas, o kintsugi as valoriza, tornando-as belas e significativas.

Da mesma forma, nossas rachaduras emocionais podem se tornar traços de sabedoria e maturidade. Quando aceitamos nossas dores e as usamos como aprendizado, nossas feridas cicatrizam, mas não desaparecem — elas permanecem como cicatrizes de superação, como marcas douradas que enriquecem nossa trajetória.

A iluminação que se conquista

Iluminação não é um estado permanente de paz e serenidade. Pelo contrário, ela é fruto de enfrentamentos, de crises pessoais e de momentos em que nos sentimos despedaçados. A luz que entra pelas rachaduras não apaga o passado, mas ressignifica cada ferida, fazendo com que nossa jornada seja mais autêntica e consciente.

É preciso ter coragem para permitir que a luz nos atravesse. É preciso acolher o desconforto, a tristeza e a incerteza, reconhecendo que todo aprendizado tem um custo. Mas, uma vez que nos permitimos abrir as portas da alma para a transformação, o que surge é uma versão mais forte e sábia de nós mesmos — alguém que, embora quebrado, se reconstruiu de maneira única e irretocável.

Portanto, não tema suas rachaduras. Elas são provas de que você viveu, lutou e sobreviveu. São portas por onde a luz entra, iluminando cada pedaço da sua essência e mostrando que até as cicatrizes mais dolorosas podem se tornar parte da sua beleza e da sua história

(*) Cristiane Lang é psicológa clínica.

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

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