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Cabaré macunaíma “reloaded”

Por Paola Cantarini (*) | 24/11/2025 13:30

Como aponta Luciano Floridi em uma entrevista que tive oportunidade de realizar com ele, utilizando-se de uma expressão popular brasileira, já que ele é casado com uma brasileira: “o buraco é mais embaixo”. Não estamos ainda olhando para o tal metron dos gregos, a tal proporcionalidade, a justa medida, ligada a sophrosyne, a moderação, o que seria fundamental para evitar o pior dos males para os gregos, a hybris, o excesso.

Mas como onde está o perigo também está a salvação, como dizia o poeta Friedrich Hölderlin (Wo aber Gefahr ist, wächst / Das Rettende auch), inspirando Martin Heidegger, no século 20, no texto A Questão da Técnica — como símbolo do pensamento do limiar: o perigo da técnica moderna carrega em si a possibilidade de salvação.

A partir de tal chave, podemos, com Michel Serres, pensar que todo ato comunicativo é atravessado por ruídos, por um “terceiro” que impede a neutralidade da transmissão. Esse “terceiro” é o próprio anjo, um anjo técnico (ou da técnica): não apenas transporta, mas transforma a mensagem. No caso da inteligência artificial generativa, como GPTs ou difusores de imagens, estamos diante de uma concretização desse anjo: ao receber uma entrada textual, a IA não devolve a mesma mensagem, mas uma transfiguração imprevisível, sempre excedente, marcada por lapsos, desvios, invenções.

Aqui, o anjo técnico se manifesta como mediador criativo, onde o ruído (bias, alucinação, erro) não é mera falha, mas condição da própria interlocução. Do ponto de vista crítico, isso exige reconhecer que o que chamamos “erro algorítmico” é também espaço imaginal: ruído que abre à interpretação, à crítica, à poesia. Tomando como inspiração igualmente Vilém Flusser, que recomendava a postura de se jogar com as novas tecnologias, e hoje como se fala tanto em gamificação, talvez possamos associar tais ideias no sentido de uma tarefa crítica que iria então preservar o anjo técnico em sua potência inoperosa, nos termos benjamin-agambenianos, resgatando-o como espaço de liberdade e imaginação.

O que me parece mais revolucionário nessa perspectiva, por não ser reativa, mas proativa, sobretudo, é como ela oferece uma terceira via genuína: nem tecnofobia nem tecnofilia (dataismo), mas uma ética da configuração técnica, uma filosofia que respira com o presente, e recupera o pensamento corpóreo. Em vez de fugir para abstrações ou nostalgias, ele abraça a complexidade do momento tecnológico atual e pergunta: como extrair vida, intensidade e liberdade dessa situação?

Reconhecemos estar diante de uma nova forma de produção de conhecimento que conecta intuição humana e processamento algorítmico em sínteses inéditas. Os sistemas de IA demonstraram capacidade de detectar inconsistências, transitar entre disciplinas diversas e articular conexões conceituais que ampliam o alcance do raciocínio humano.

Então, mais do que nunca caberia a questão central de como usar a tecnologia, não de forma a nos substituir, mas colaborar, não representando daí o abandono da responsabilidade intelectual humana, mas sua expansão através de novas formas de mediação técnica.

A pergunta que fica – e que talvez seja a pergunta do nosso tempo – é se conseguiremos infrarrealizar nossas próprias ferramentas intelectuais, no sentido de deixar de ser apenas filosofia e se tornar forma de vida. Quando o conceito se torna gesto, a crítica se torna tática, a utopia se torna laboratório.

O convite está feito. Agora é experimentar. O desafio está lançado: despertar a criatividade diante dos desafios globais.

As crises, rupturas e desconexões que se aceleram em escala nacional e global e evidenciam o quanto é urgente nos tornarmos mais inventivos, empáticos e criativos em tudo o que fazemos. A capacidade de pensar e agir de forma criativa é um antídoto poderoso, pois torna o impossível possível, e este passa a ser visto não como obstáculo, mas apenas como um ponto de vista. E com isso a criatividade pode nos ajudar a imaginar como sociedade e em uma construção coletiva a configurar um futuro mais alegre, artístico, significativo e equitativo.

Cultivar a criatividade em larga escala exige expertise que transcenda os limites tradicionais das disciplinas, e com isso enfrentamos o problema de, no Brasil, termos mais inovação incremental e menos disruptiva; talvez não tenhamos mais fugas dos cérebros com a revalorização das universidades e da pesquisa científica, e talvez tenhamos uma nova perspectiva em futuras publicações de papers científicos – pois como apontou a revista Nature e a Revista USP (Dossiê IA e pesquisa científica) os artigos triplicaram em dez anos, mas não os papers de ruptura, ou que trazem inovação no pensamento. Um papel central da tecnologia e da IA também nos parece ser o desenvolvimento de novas ferramentas, métodos e experiências que inspirem e apoiem o pensamento criativo, a expressão criativa e a computação criativa — permitindo que pessoas de todas as origens desenvolvam e compartilhem suas ideias, explorem novas possibilidades e contribuam para mudanças significativas no mundo.

Além do letramento digital básico, entendemos, pois que algumas competências se tornam centrais:

• Letramento em IA (AI Literacy): compreender como modelos de IA funcionam, seus limites (alucinações, vieses, opacidade), e como usá-los criticamente.
• Pensamento crítico e checagem de fatos.
• Segurança e privacidade digital: boas práticas de proteção de dados pessoais, cibersegurança.
• Ética e cidadania digital: consciência sobre impactos sociais e riscos.
• Colaboração homem-máquina: desenvolver a habilidade de trabalhar em conjunto com sistemas automatizados (por exemplo, usar IA para auxiliar na decisão sem delegar totalmente a ela).
• Resiliência digital: aprender a lidar com sobrecarga informacional, riscos de manipulação e mudanças rápidas do ambiente tecnológico.

Um modelo integrado de educação para o século 21 e o futuro da humanidade vai além de ensinar a “usar a tecnologia”, buscando formar cidadãos conscientes, resilientes e capazes de exercer senso crítico frente à IA e à avalanche informacional, no sentido de empoderamento – crescer com, IA para complementar e não substituir –, sendo essencial para isso incrementar, com propostas concretas, o pensamento crítico, imaginal, o pensar por si só e em multiplicidades.

Com base na diversidade epistêmica, na criatividade, na intuição, na lógica atonal, na multiplicidade, no respeito à diferença – já que somos seres em aberto, envoltos em um futuro como devir e não como programação, e com isso resgatamos o que Henry Corbin denominou, a partir de seus estudos sobre a filosofia muçulmana, Mundus Imaginalis ou, simplesmente, “imaginal”, enquanto dimensão cujo acesso é uma prerrogativa de seres humanos verdadeiramente livres, logo, cientes de sua dignidade e firmemente assentados nela.

Do que se trata então é de re-imaginar um outro mundo possível como devir e como empoderamento humano por meio de iniciativas contra-hegemônicas, a exemplo de experiências empíricas que apontam caminhos alternativos:

• Adaptação de modelos de IA generativa para criação de material didático em línguas e contextos culturais específicos das comunidades quilombolas, mostrando que a IA pode reforçar identidades culturais em vez de apagá-las. Exemplos: Programa Maranhão Quilombola (SEIR-MA, 2015-atual, com ações em educação cultural em 2023). Relatório anual destaca integração de culturas quilombolas no currículo, sem menção à IA. Unila, 2025: Ministério da Educação. Unila projeta IA para criação de material escolar quilombola. 6 jan. 2025 (Descrição: IA generativa para planos de aula afro-brasileiros, lendas e direitos humanos, reforçando identidades quilombolas).
IEMA Quilombola (Maranhão, 2023): “Primeira escola em tempo integral em território quilombola do Brasil.” IEMA-MA. 19 out. 2023 (Inclui coordenação étnico-racial para preservação cultural na educação, sem IA).
• Desenvolvimento de bancos de dados educacionais em que os próprios povos indígenas definem os protocolos de coleta e uso de dados, em diálogo com a ética do “consentimento informado comunitário”. Exemplos: Rede Xingu+ (comunicação indígena digital) e iniciativas da COIAB/APIB, lidam com conhecimento digital ético, incluindo consentimento comunitário (baseado na Convenção 169 da OIT). Instituto Socioambiental. ATL 2024: maior mobilização indígena do País completa 20 anos de resistência. 22 abr. 2024 (Rede de comunicadores indígenas com transmissão digital e protocolos éticos; menciona ISA 2023 sobre comitês climáticos indígenas). Redes Indígenas da Amazônia (Fundo Amazônia/TNC, 2022–2024): Fundo Amazônia. Redes Indígenas da Amazônia. 2024 (Capacitação em ferramentas digitais para organizações indígenas na Amazônia Legal, com foco em protocolos locais).
• Experimentos com uso de algoritmos em oficinas artísticas como forma de estimular imaginação, crítica e criação coletiva. Exemplos: Especialização em Arte-Educação (UFBA/EBA, 2022-2024): Escola de Belas Artes/UFBA. Especialização em Arte-Educação: Cultura Brasileira e Linguagens Artísticas Contemporâneas. 2024 (Oficinas artísticas para imaginação e crítica cultural). Congresso UFBA 2024 (IHAC/UFBA): Congresso UFBA 2024: Universidade: Ciência, Cultura, Arte e Democracia. 25-28 nov. 2024 (Debates sobre IA na educação crítica e artes, com foco em criação coletiva).

Esses casos mostram que uma abordagem crítico-poiética da IA é possível na prática, quando a tecnologia é mediada por valores de diversidade epistêmica e não apenas pela lógica da eficiência.

Diante disso trazemos algumas propostas práticas para uma educação crítico-poiética com IA, com base nos dados e experiências relatadas:

• Mapeamento nacional de desigualdades de infraestrutura digital, cruzando com indicadores socioeconômicos e de diversidade cultural.
• Currículo de IA para a educação básica que integre não apenas competências técnicas, mas também módulos obrigatórios de ética algorítmica, artes digitais e epistemologias do Sul e ênfase em criatividade e imaginação.
• Políticas de soberania algorítmica: financiamento de modelos de IA treinados em dados nacionais e pluriepistêmicos, para evitar dependência exclusiva de big techs.
• Centros de reabilitação imaginal, em diálogo com a proposta de “Ética Quântica” em sua versão “Transreal”, voltados para a educação: espaços laboratoriais onde alunos experimentem a IA não como ferramenta de respostas, mas como cocriadora de alternativas e futuros. Isto requer uma mudança fundamental na arquitetura dos sistemas de IA educacionais:
• Módulo de Diversidade Epistêmica: algoritmos treinados especificamente para reconhecer e valorizar múltiplas formas de conhecimento.
• Processamento Transreal: capacidade de lidar com contradições, paradoxos e indefinições como aspectos enriquecedores ao invés de problemas a serem resolvidos.
• Interface Imaginal: ambientes que facilitam estados de superposição criativa ao invés de forçar escolhas prematuras.

Da crítica à poiesis – Rumo a uma educação quântico-imaginal

Diante do ponto de inflexão inadiável, o diagnóstico é claro: a atual trajetória de implementação da IA na educação, se não for radicalmente reorientada, corre o risco de se tornar a mais nova e eficiente ferramenta de um projeto histórico de colonialidade. O “colonialismo de dados” e o “colonialismo de carbono”, uma infraestrutura que otimiza a extração de recursos (dados, atenção, criatividade) e aprofunda desigualdades, resultando em uma “grave escassez imaginal” justamente nas populações mais vulnerabilizadas.

Nesse cenário, o letramento digital, embora necessário, é manifestamente insuficiente. Ele nos ensina a operar as ferramentas dentro de um sistema cujas regras já foram dadas, cujos algoritmos já foram treinados com dados enviesados, e cujo objetivo é, muitas vezes, a otimização de resultados previsíveis. Em suma, o letramento digital nos capacita para navegar com mais eficiência no Mundo Fenomênico (M) dos determinismos algorítmicos, mas não nos ensina a questionar ou transcender este mundo.

É aqui que a abordagem crítico-poiética encontra sua plena realização prática e teórica no arcabouço da Ética Quântica Transreal.

Nossa prisão neste mundo fenomênico: aumento quantitativo da produção científica mascara um declínio qualitativo de inovações disruptivas e onde a integridade acadêmica é ameaçada por manipulações invisíveis como o prompt injection.

A dimensão poiética (do grego poiesis, criar, fazer), por sua vez, é o chamado à ação, à criação de novas realidades a partir do acesso consciente ao Mundo Imaginal (I) – o domínio da potencialidade pura, da diversidade epistêmica e da liberdade genuína.

Uma Educação Quântico-Imaginal, portanto, não é um ideal abstrato, mas a resposta concreta aos problemas empíricos que levantamos:

• Contra a estagnação disruptiva: se a ciência decai em inovação, é porque seus praticantes estão sendo treinados para otimizar o conhecido, e não para explorar o desconhecido. A pedagogia imaginal, ao cultivar o “silêncio e a presença”, treina a consciência para perceber o campo de possibilidades em superposição (∣Ψ〉) antes de colapsá-lo em uma única resposta. É o treinamento direto da capacidade de gerar o verdadeiramente novo.
• Contra o colonialismo de dados e a homogeneização epistêmica: um Direito Fundamental à Amplitude Imaginal tornar-se-ia o princípio orientador das políticas públicas educacionais. As experiências contra-hegemônicas, como os projetos Quilombola e Indígena, deixam de ser casos isolados e se tornam o modelo. O objetivo de uma IA educacional deixa de ser a entrega de conteúdo padronizado e passa a ser a amplificação da diversidade epistêmica, utilizando “Módulos de Diversidade Epistêmica” para que a tecnologia sirva como espelho e ferramenta para as culturas locais, e não como seu apagador.
• Contra a manipulação algorítmica: um aluno formado nesta perspectiva não vê a IA como uma caixa-preta oracular. Ele a compreende como um sistema que opera em M, produto de escolhas humanas (o colapso de seus criadores). Ele aprende a questionar não apenas as respostas da IA, mas as premissas embutidas em sua arquitetura. Desenvolve uma “justiça algorítmica” internalizada, tornando-se um cidadão digital capaz de auditar criticamente a tecnologia que permeia sua vida.

A proposta de Centros de Reabilitação Imaginal transcende, assim, a esfera jurídica e se torna um conceito pedagógico central. As escolas e universidades devem se tornar esses centros: laboratórios onde os estudantes, munidos de uma interface imaginal, não usam a IA para encontrar a resposta certa, mas para explorar a beleza e a complexidade de múltiplas respostas possíveis, para simular as consequências de diferentes colapsos de onda e para treinar seu Operador de Escolha (V^) a agir com intenção, sabedoria e compaixão.

Portanto, o desafio que a IA nos impõe não será superado com mais tecnologia ou com mais letramento técnico. Ele exige um salto de consciência. Exige que o Brasil, como país do Sul Global, recuse o papel de mero consumidor de tecnologias e narrativas e assuma a vanguarda na construção de um novo paradigma. Este é um projeto político, ético e pedagógico que convoca a todos – a colaborar na edificação de um sistema educacional que não prepare nossos jovens para um futuro como programação, mas que lhes dê as ferramentas para realizar o futuro como devir.

Como medidas práticas e concretas, que façam mudanças na realidade, apontamos:

• políticas públicas que assegurem soberania digital e proteção de direitos humanos, políticas públicas de acesso equitativo.
• cooperação multilateral, especialmente para países do Sul Global, evitando dependência excessiva de big techs.
• declaração de uso: estudantes e pesquisadores devem explicitar se e como utilizaram IA em seus trabalhos.
• políticas institucionais: universidades devem definir regras claras sobre usos aceitáveis, alinhadas à integridade acadêmica.
• capacitação: investir em literacia digital crítica para docentes e discentes.
• pesquisa e experimentação controlada: recomenda-se que instituições explorem a IA de forma supervisionada, gerando dados para avaliação.
• marcos regulatórios claros para uso de IA generativa na educação, em alinhamento com a LGPD no Brasil ou GDPR na Europa. A regulação deve ser vinculante: princípios éticos voluntários não são suficientes diante do poder concentrado das big techs; trata-se da criação de marcos legais específicos, firmes e independentes para IA na educação, alinhados ao AI Act da União Europeia, mas com foco ampliado em direitos fundamentais, necessidade de marcos jurídicos supranacionais, evitando a fragmentação regulatória e a captura por interesses corporativos.
• literacia digital crítica: recomenda-se a inclusão de competências de IA literacy nos currículos escolares e universitários, capacitando alunos e professores para compreender limitações e riscos.
• governança institucional: universidades e escolas devem adotar códigos de conduta e políticas de transparência sobre o uso aceitável da IA.
• ética e integridade científica: incentivo à criação de padrões internacionais de citação, atribuição e declaração de uso de IA em publicações acadêmicas.
• infraestruturas abertas: estímulo a ecossistemas de IA educacional públicos, transparentes e auditáveis, reduzindo dependência de big techs.
• criação de mecanismos de auditoria independente, transparência algorítmica e direito de contestação para estudantes afetados por decisões automatizadas.
• educação para a cidadania digital crítica: formar estudantes capazes de compreender e questionar o funcionamento da IA, em vez de apenas utilizá-la como ferramenta neutra.
• governança democrática da tecnologia: promover participação ativa de professores, estudantes, pais e sociedade civil no desenho de políticas digitais.
• desenvolvimento de marcos regulatórios internacionais, evitando assimetria entre países que dispõem de infraestrutura e aqueles em desvantagem. Criar marcos regulatórios que conciliem inovação e proteção de direitos, com forte foco em transparência algorítmica.
• necessidade de soberania digital no campo educacional, para reduzir dependência de big techs.
• cooperação Sul-Sul e a construção de princípios globais de ética em IA.
• políticas de acesso universal a infraestrutura digital e incentivos para produção de soluções locais.
• infraestruturas públicas e cooperação internacional: investir em plataformas abertas e dados educacionais compartilhados, evitando dependência excessiva de soluções proprietárias.

Foucault fala do acontecimento o qual não é um “fato” isolado, nem uma data fixa na história. É algo que rompe com o fluxo contínuo das explicações causais, que desestabiliza o sentido dado, abrindo novas possibilidades de pensar, agir e existir. O acontecimento não é o que acontece (accidentellement), mas o que dá sentido ao que acontece. Neste sentido, a “filosofia do acontecimento” é, para Foucault, o modo de pensar as descontinuidades da história, o surgimento e desaparecimento de regimes de verdade, práticas discursivas e formas de poder. Em vez de grandes narrativas, o foco está nos micropoderes, nos saberes locais, nas emergências históricas singulares.

Trata-se de uma filosofia da diferença, do desejo, da transformação, quando se rompe com os limites impostos e se tem uma variação criadora, no sentido de inventar, criar novos modos de existência por meio de movimentos de desterritorialização radical, envolvendo a multiplicidade, invenção contínua, vida como processo, não previsíveis, marginais.

Para Deleuze (e Guattari), o futuro não é aquilo que será (futuro previsível), mas aquilo que pode advir. O porvir é um acontecimento virtual, uma potência de transformação, não uma extrapolação estatística.

“O futuro pertence aos devires, não às previsões”, como apontam Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, valorizando o que ainda não foi pensado, dito ou vivido — e que, portanto, não pode ser modelado por uma IA baseada no passado. Desta forma fazemos as pazes com nosso passado, pois como aponta Heidegger em Ser e Tempo, o ser humano é um ser-no-tempo — e isso significa que sua existência é estruturada por três dimensões temporais:

• Passado (facticidade): o que “já é” e do qual não pode escapar;
• Presente (queda, ocupação com o mundo);
• Futuro: é a dimensão mais própria, pois o Dasein se projeta para frente, se antecipa a si mesmo, vive em função de uma possibilidade que ainda não é.

Com isso, o ser do Dasein volta a ser possibilidade.

Sein und Zeit, multiplicidade, questionando a técnica como enquadramento (Gestell), como essência da tecnologia moderna: uma forma de revelar o mundo como reserva disponível (standing‑reserve) para uso instrumental. Com isso o ser humano retoma seu lugar no universo, não como ser em substituição mas usando a técnica de forma mais temperada (metron), e para servir aos benefícios da sociedade como um todo, recusando-se ao empobrecimento do mundo e do futuro como padrões preditivos, em um devir como multiplicidade criadora (ontologia da diferença). Para Deleuze, em Mil Platôs, o porvir que está ligado ao que não pode ser previsto ou programado: ele é uma potência de variação contínua, sempre em tensão com os sistemas que tentam organizar, normatizar e capturar a vida. No sentido do que Yuk Hui denomina de cosmotécnica e tecnodiversidade – The Question Concerning Technology in China e Recursivity and Contingency, quando poderíamos superar o universalismo técnico ocidental com base no desenvolvimento de múltiplas formas de técnica, enraizadas em cosmologias locais, que não reduzam o mundo a um estoque de recursos.

“Não se trata de negar os objetos técnicos digitais, mas de ressituá-los como parte de uma ecologia pedagógica maior, em que o corpo, a voz, o gesto e o encontro têm primazia. O desafio é recuperar o sentido da aula como experiência de vida partilhada, em que o digital é ferramenta, mas não destino.”

Como aponta Stiglitz, devemos nos concentrar em sociedades do aprendizado, já que o que separa as nações mais desenvolvidas não é o gap entre recursos e resultados sociais, mas entre conhecimento e crescimento econômico, sendo este o caminho, portanto seguro a seguir, i.e, concentração da dinâmica científica significa mais inovação.

Trata-se de propor novas metodologias de ensino que não demonizem os objetos técnicos digitais, mas os reconfigurem como mediação viva, sem perder o corpo e a experiência encarnada. Não se trata de negar os objetos técnicos digitais, mas de ressituá-los como parte de uma ecologia pedagógica maior, em que o corpo, a voz, o gesto e o encontro têm primazia. O desafio é recuperar o sentido da aula como experiência de vida partilhada, em que o digital é ferramenta, mas não destino. No sentido de reencantar a sala de aula como espaço de carne, de respiração e de gesto, onde a técnica é integrada e sublimada. A tarefa do educador talvez seja tornar-se uma espécie de xamã tecnopoético, capaz de reconciliar corpo e máquina, vida e dispositivo, presença e virtualidade.

1. O corpo como centro pedagógico
• Educação somática: introduzir práticas inspiradas na dança, no teatro, no yoga ou no esporte como abertura e fechamento de aulas, para reinserir o corpo na temporalidade do aprendizado.
• Aprender em movimento: deslocar atividades para fora da sala, em pátios, corredores, espaços abertos, criando uma didática que reconhece que atenção e memória também passam pelo gesto.
• Pedagogia do ritmo: alternar momentos de tela (foco digital) e momentos de corporeidade (oralidade, escrita manual, improvisação física), para que a experiência não se descole do vivido.
• Anticorpo: O corpo esquecido e o corpo reencontrado

A modernidade escolar, como nos lembra Michel Foucault (Vigiar e punir), moldou o corpo disciplinado, sentado, atento, fixo no espaço da sala. A escola tornou-se laboratório de docilidade e vigilância. O digital, de certo modo, radicaliza essa imobilização — olhos hipnotizados pela tela, dedos reduzidos ao toque mínimo.

Já em Maurice Merleau-Ponty (Fenomenologia da percepção), temos a lembrança de que o corpo não é um objeto entre objetos, mas o nosso modo de estar-no-mundo. A pedagogia que ignora o corpo perde o próprio chão fenomenológico do aprender.

Aqui se abre a possibilidade de um ensino que se reencontre com a corporeidade, não para expulsar a técnica, mas para reinscrevê-la no gesto: escrever no quadro, caminhar na sala, partilhar a voz, o olhar, o ritmo — uma reeducação sensível.

2. Mediação crítica com os objetos técnicos
Técnica, vida e mediação: Gilbert Simondon (Du mode d’existence des objets techniques) recusa a oposição simplista entre humano e máquina. Para ele, o objeto técnico tem sua própria individuação, e cabe à cultura integrá-lo a um processo mais amplo de sentido. A alienação ocorre quando a técnica é usada sem mediação simbólica.

Na escola, isso significa que o problema não é o celular, o tablet ou o projetor em si, mas a maneira como são inseridos: como próteses de consumo ou como instrumentos de criação. O professor pode então ser o mediador simbólico que reinsere o objeto técnico em um circuito de vida, linguagem e corpo.

Anticorpos: Ecologia digital – ensinar não apenas com, mas sobre as tecnologias, tornando o próprio uso dos aparelhos objeto de reflexão crítica. Ex.: discutir como o corpo se dobra sobre o celular, como os olhos se cansam, como o tempo é capturado.

Técnicas desobedientes: incentivar o “hackeamento pedagógico” das ferramentas digitais (uso criativo de memes, remix, montagem audiovisual) para devolver agência ao aluno diante da máquina.

Rotinas de descompressão: propor pausas conscientes (respiração, silêncio, escuta do ambiente) antes ou depois de atividades mediadas por telas.

3. Reencantamento da experiência coletiva
Rituais de presença: começar cada aula com uma breve roda, canto, leitura ou gesto comum, marcando a sala como espaço vivido e não apenas funcional.

Pedagogia do encontro: promover dinâmicas de escuta e partilha entre pares, em que a mediação digital serve apenas como registro ou apoio, não como substituição do contato.

Coralidade multimodal: misturar oralidade, corpo, imagem e digitalidade em um só fluxo. Por exemplo, uma performance coletiva que combine projeções de tela, leitura em voz alta e movimento corporal.

4. Metodologias do “entre” – metodologias do “contratempo”
O tempo, o ritmo e a atenção

Bernard Stiegler (La technique et le temps) mostra que as técnicas não apenas prolongam o corpo, mas também organizam o tempo e a memória. O digital capta a atenção, fragmenta o ritmo, acelera o presente.

Contra isso, talvez devamos pensar metodologias do “contratempo” — pausas, silêncios, exercícios de lentidão. Byung-Chul Han fala da “sociedade do cansaço”, onde a produtividade e o excesso de estímulo minam a experiência contemplativa. A sala de aula poderia então ser espaço de resistência rítmica, de cultivo de uma temporalidade mais densa.

Didática híbrida: não se trata de alternar “analógico” e “digital”, mas de explorar zonas de passagem. Ex.: desenhar mapas no papel e depois animá-los digitalmente; escrever à mão e transformar em performance multimídia.

Pedagogia do intervalo: valorizar os hiatos, tempos mortos, falhas técnicas, quedas de conexão como oportunidades de reflexão sobre a própria experiência.
Transcorporeidade: pensar o corpo expandido pelas próteses digitais, mas sem esquecer sua vulnerabilidade — manter viva a consciência da carne diante da máquina.

5. O professor como performer e mediador
Professor-corpo: assumir-se como presença performativa, que encarna o conhecimento, e não só como transmissor de conteúdos.

Exemplo encarnado: o modo como o professor maneja o celular, o projetor, o gesto de escrever no quadro, tudo isso ensina mais que a ferramenta em si.

Estética do ensino: transformar a aula em cena — não para espetacularizar, mas para devolver intensidade e memória sensível ao ato de aprender.

6. O espaço pedagógico como lugar de vida
Paulo Freire (Pedagogia do oprimido) insiste que ensinar é um ato dialógico, de encontro entre sujeitos que se transformam mutuamente. Mas para que esse encontro aconteça, é preciso mais do que conteúdos — é necessário criar espaço de vida.

Aqui podemos também invocar Ivan Illich (Sociedade sem escolas), que denuncia a escolarização como fetiche institucional e propõe reimaginar a educação como rede de convivência. O digital, paradoxalmente, pode ser ferramenta de dessacralização da escola — mas apenas se for acompanhado de experiências encarnadas de comunidade, de voz, de corpo.

Anticorpos: A aula como acontecimento estético

Jacques Rancière (O mestre ignorante) lembra que o ato pedagógico é sempre estético no sentido mais radical: ele distribui o sensível, decide quem pode falar, quem pode ver, quem pode ser ouvido.

Transformar a aula em experiência estética — em cena, em ritual, em performance — é devolver- lhe intensidade. O digital, nesse quadro, não desaparece: ele pode ser projeção, luz, ritmo, som. Mas o centro é o acontecimento compartilhado, e não a ferramenta.

Manifesto da Aula-Cabaré

A sala não é prisão, nem templo, nem laboratório de corpos dóceis.

A sala é palco.

É cabaré.

É lugar onde o conhecimento dança com a carne, onde a palavra se despe, onde o corpo interrompe a tirania da tela.

Aula-cabaré:

• não a lição morta, mas o acontecimento vivo,
• não o quadro frio, mas a cortina que se abre,
• não o silêncio forçado, mas a explosão de vozes,
• não a linearidade do PowerPoint, mas o improviso, a ironia, o riso.

1. O professor como mestre de cerimônias

Não é guardião de verdades,
Mas conferencista-performer,
mestre de pista, que anuncia e provoca,
que chama o público-aluno para o espetáculo da inteligência.

2. O aluno como corpo em cena

Não mais espectador imóvel, mas partícipe, dançarino, corpo que aprende em ritmo, voz que interrompe e inventa. Cada pergunta é um improviso, cada gesto é uma coreografia.

3. O objeto técnico como luz de palco

O celular, a tela, o projetor:
não como algema, mas como holofote,
não como prisão, mas como brilho,
não como distração, mas como truque cênico.
A tecnologia é cortina, cenário, música – mas o espetáculo é carne, suor e presença.

4. O ritmo contra a exaustão

Na sociedade do cansaço, nós erguemos o cabaré do contratempo. Aqui, a aula não acelera:
ela respira.
Ela se dá em pausas, em silêncios dançantes,
em risadas que quebram a monotonia.

É o tempo da canção, do improviso, do número inesperado que rasga a lógica das horas.

5. O saber como espetáculo crítico
No cabaré, tudo pode ser dito, mas nada é aceito sem riso e sem questionamento.
O saber se expõe, se desnuda, se ironiza. Aprender é rir da autoridade, é virar paródia do próprio mestre,
é dançar com a seriedade até fazê-la tropeçar.

6. O pacto pedagógico
Que cada aula seja um ato performativo, um brinde coletivo à vida que insiste,
um cabaré contra a tristeza e contra a passividade.

Que a escola seja um salão onde os corpos respiram, onde o saber se canta, se encena, se partilha.

Palavra final

Aula-cabaré não é fuga, é resistência.

É lembrar que o corpo aprende. Que a vida é conhecimento. Que a técnica pode ser luz, mas nunca substituto da pele.

Abram as cortinas.

O espetáculo da aula vai começar.

[Este texto é continuação do artigo intitulado Do letramento digital ao letramento imaginal. A parte final foi escrita em co-criacao com IA generativa; o texto faz parte de pesquisas da autora e, em parte, em co-autoria com Willis Guerra (no prelo).]

(*) Por Paola Cantarini, coordenadora acadêmica do Centro de Estudos Avançados do Direito e Inovação da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP.

 

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