Devíamos nos preparar para a dor de ver nossos pais envelhecerem
Há dores silenciosas que a vida vai semeando com o tempo. Uma delas — talvez das mais cruéis — é assistir nossos pais envelhecerem. Aqueles que foram nossos heróis, nossos pilares, nossa segurança… começam, aos poucos, a revelar a fragilidade que a passagem do tempo impõe a todos. Por mais natural que seja, ver essa transformação dói. E talvez por isso evitemos pensar sobre o assunto, adiando a consciência de que o tempo também age sobre aqueles que amamos.
Mas deveríamos nos preparar. Não como quem se arma contra uma tragédia iminente, mas como quem busca acolher, com maturidade e presença, um processo inevitável. Porque negar o envelhecimento dos pais não impede que ele aconteça. Só nos afasta da chance de viver com eles, enquanto ainda estão aqui, de um jeito mais inteiro, mais sensível, mais verdadeiro.
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A inversão dos papéis
Com o passar dos anos, a vida inverte a lógica inicial da relação. Um dia, nossos pais nos deram o colo, nos guiaram pela mão, cuidaram das nossas febres e dos nossos medos. Mais tarde, somos nós que passamos a conduzi-los, a responder por suas idas e vindas, a lembrá-los de tomar os remédios, a ajudá-los a atravessar a rua — ou a vida.
Essa inversão é natural, mas emocionalmente confusa. Porque ao cuidar de quem antes cuidava de nós, sentimos um abalo profundo na nossa estrutura interna. Enxergar nossos pais com limitações físicas, mentais ou emocionais é encarar, de frente, a finitude. Não só a deles, mas a nossa. É como se a infância fosse oficialmente encerrada ali, mesmo que há muito tempo tenhamos deixado de ser crianças.
A dimensão psicológica: um luto em vida
Ver nossos pais envelhecerem é, em muitos sentidos, viver um luto antecipado. Cada esquecimento, cada passo mais lento, cada visita ao médico carrega, ainda que discretamente, uma dor surda. Como se o tempo estivesse constantemente nos lembrando de que não temos controle, de que a despedida é questão de quando, e não de se.
Psicologicamente, isso pode gerar uma série de sentimentos conflitantes. É comum que adultos filhos de pais idosos experimentem tristeza, ansiedade, culpa e até raiva. Tristeza por perceber que a vitalidade de antes está indo embora. Ansiedade ao imaginar como será o futuro. Culpa por não conseguir estar tão presente quanto gostaria — ou por, às vezes, se irritar com eles. E raiva por se sentir impotente diante de tudo isso.
Essa montanha-russa emocional é legítima. Muitos vivem esse processo em silêncio, acreditando que não têm o direito de sofrer enquanto os pais ainda estão vivos. Mas é importante entender que a dor do envelhecimento de quem amamos merece espaço e acolhimento. Porque se não for elaborada, pode se transformar em bloqueio emocional, em distanciamento afetivo ou até em adoecimento psíquico.
A terapia pode ser uma aliada importante nessa travessia. Falar sobre os medos, sobre a relação construída ao longo da vida, sobre os conflitos não resolvidos e sobre a angústia de ver os pais envelhecerem pode ajudar a dar lugar a sentimentos difíceis. Além disso, permite que essa fase seja vivida com mais presença, mais consciência e mais amor — e não apenas como uma espera dolorosa pela perda.
Preparar-se é aprender a estar
Preparar-se para ver os pais envelhecerem não é se endurecer. Pelo contrário, é se abrir. É aprender a ver beleza mesmo nas rugas, nos silêncios, nas memórias repetidas. É entender que o tempo que temos com eles não pode ser adiado. É acolher com humildade que nossos pais, um dia, precisarão de nós — emocional, física e até financeiramente — e que isso faz parte da dignidade do ciclo da vida.
Preparar-se é também trabalhar em si a paciência e a compaixão. A velhice pode trazer impaciência, confusão, dores, e, por vezes, uma regressão comportamental difícil de lidar. Mas, para quem ama, é o momento de retribuir o cuidado recebido, não como dívida, mas como expressão de amor.
O que fica
Quando nossos pais partirem, não ficará apenas a saudade. Ficará também a forma como estivemos presentes. A qualidade da relação que cultivamos. As conversas que escolhemos ter. O tempo que fizemos questão de dividir. E isso pode ser, no meio da dor, uma fonte de paz.
Portanto, sim, devíamos nos preparar para ver nossos pais envelhecerem. Não para evitar a dor, mas para que ela não venha acompanhada de arrependimentos. Porque o envelhecimento deles é também a nossa chance de crescer. É uma aula de humanidade, de humildade e de amor. É a vida, com toda sua força e sua delicadeza, nos lembrando de que cuidar de quem um dia nos deu a vida é um dos atos mais nobres — e curativos — que podemos viver.
(*) Cristiane Lang, psicóloga clínica especializada em oncologia
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