Texto sobre maioridade penal seria inconstitucional e inconvencional
Por razões de proporcionalidade, os menores que praticam crimes violentos deveriam ser punidos com internação superior a três anos (esse é o limite máximo do ECA). Há proposta tramitando no Senado nesse sentido. O risco de inconstitucionalidade é quase zero, se for encontrado um novo limite máximo razoável (6 anos, por exemplo). Na Câmara dos Deputados faltaram cinco votos para a aprovação da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) que pretendia reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos em alguns casos de crimes graves. A PEC exige 308 votos favoráveis (3/5 do total de deputados); alcançou 303 votos, contra 184 em sentido contrário e 3 abstenções. O texto colocado em votação era muito ruim, foi pessimamente redigido e era inequivocamente inconstitucional e inconvencional. Se a nossa bíblia é a Constituição e o Direito Internacional vigentes e válidos, eis as razões das inconstitucionalidades e inconvencionalidades da PEC refutada:
1ª) viola o princípio da igualdade: os iguais devem ser tratados igualmente e os desiguais desigualmente. O texto novo mantinha a imputabilidade penal aos 18 anos e abria exceção frente aos menores de 16 a 18 em alguns crimes. Ocorre que em nenhum crime os menores de 18 anos podem ser tratados em pé de igualdade com os maiores de 18 anos. Podem ser punidos penalmente (na Argentina já é assim), porém, nunca igualmente. O tratamento igualitário nivela o menor com o maior e isso viola uma série de normas constitucionais e internacionais. Desde logo, o disposto no art. 227, § 3º, V, da CF brasileira que exige “respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade”. A igualação pretendida na PEC não observa esse dispositivo constitucional, nem tampouco as incontáveis normas internacionais que exigem tratamento diferenciado;
2ª) viola o princípio da tutela específica: nenhum menor no Brasil pode ser processado e punido fora da “legislação tutelar específica”, imposta no art. 227, § 3º, inc. IV, da CF. A PEC pretendia punir alguns menores consoante o Código Penal, com as penas integrais do Código Penal. Esse tratamento repressivo conflita com o princípio referido da tutela específica. Na Argentina o menor de 16 anos é punido penalmente, porém, dentro de um sistema de responsabilidade juvenil que prevê a diminuição ou mesmo a dispensa da pena, conforme o caso;
3ª) viola o princípio da brevidade: a Constituição brasileira exige que as penas para os menores devem ser breves; isso significa suas penas devem ter menor duração que as penas do adulto. Nisso consiste o princípio da brevidade. A PEC rejeitada pretendia que o menor fosse punido com penas iguais às dos adultos (nivelava o menor com o maior). Conflitava com o sistema constitucional vigente, que manda conferir atenção especial aos menores;
4ª) viola o princípio da excepcionalidade: o texto da PEC não previa nenhum sistema punitivo alternativo, nos crimes que indicava, ou seja, adotava a pena de prisão como regra geral para tais crimes, como se a pena de prisão para o menor fosse a “primeira ratio”. Na verdade, essa pena para os menores é excepcional, nos termos do art. 227, § 3º, V. A prisão é a “ultima ratio” quando se pretende punir os menores. Não somos nós que estamos dizendo isso. Quem disse isso foi a CF (obra do Constituinte);
5ª) viola o princípio do juiz natural: o juiz natural para julgar os menores pelos ilícitos cometidos por eles exige a criação de órgãos judiciais especializados, específicos, diferentes daqueles destinados aos maiores. Isso deriva da Convenção sobre os Direitos da Criança (art. 40.3), que contempla “o estabelecimento de leis, procedimentos, autoridades e instituições específicas para as crianças [e adolescentes] de quem se alegue ter infringido as leis penais ou que sejam acusadas ou declaradas culpadas de tê-las infringido” (veja Opinião Consultiva OC 17/2002, da Corte IDH);
6ª) viola o princípio da separação frente aos adultos: a PEC, no art. 3º, fixava a obrigatoriedade de separação dos menores frente aos adultos, porém, não condicionava sua aplicação à efetiva criação dos estabelecimentos penais juvenis adequados. Não basta dizer que os entes públicos criarão os estabelecimentos. A PEC seria constitucional, nesse ponto, se condicionasse a aplicação da lei à existência prévia de tais estabelecimentos (é que toda criança privada da liberdade estará separada dos adultos, nos termos do art. 37 da Convenção sobre os Direitos da Criança);
7ª) viola o princípio do interesse superior da criança: na Opinião Consultiva OC 17/2002, a Corte Interamericana de Direitos Humanos interpretou a expressão “interesse superior da criança” (que está no art. 3º da Convenção citada) e sublinhou que isso implica que o desenvolvimento desta e o exercício pleno de seus direitos deverão servir de critérios norteadores para a elaboração de normas e aplicação das mesmas em todos os aspectos concernentes à vida da criança; o princípio da igualdade contemplado no art. 24 da CADH não impede a adoção de um tratamento diferenciado em razão de suas condições especiais;
8ª) viola o “corpus iuris” dos direitos da criança (e do adolescente): ao longo do século XX foi articulado um “corpus iuris” dos direitos das crianças e adolescentes no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos (veja OC 17/2002, da Corte IDH), concebendo-os como verdadeiros sujeitos de direitos. Tudo isso está previsto na Declaração da ONU de 1959, que foi precedida da Declaração de 1924 da Sociedade das Nações, na Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), nas Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Pequim, 1985), e sobre as Medidas não privativas da liberdade (Tóquio, 1990), e as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Riad, 1990), art. 19 da CADH e tantos outros textos internacionais;
9ª) viola o princípio da culpabilidade: o tratamento diferenciado das crianças e adolescentes implica reconhecer que a capacidade culpabilidade dos menores é menor que a dos adultos; se cada deve ser punido na medida da sua culpabilidade, não há dúvida que o texto da PEC deveria ter contemplado esse desnivelamento; ao tentar igualar os que são desiguais, a PEC refutou a aplicabilidade do princípio basilar da culpabilidade, que exige a aplicação de penas distintas conforme a capacidade de entender e de querer de cada pessoa;
10ª) viola o princípio da eficácia legislativa: o presidente da Câmara dos Deputados (Eduardo Cunha) afirmou que a aprovação da PEC não serviria para reduzir a violência. Reconheceu a ineficácia da PEC para os efeitos preventivos. Se se sabe de antemão que uma medida não é adequada para atingir os fins traçados, não há dúvida que seria uma enorme irresponsabilidade a aprovação da PEC. O aumento do limite máximo de internação previsto no ECA se apresenta como mais proporcional e adequado, sem necessidade de se alterar a idade penal.
(*) Luiz Flávio Gomes, advogado