Vontade é coisa que dá e passa?
O que acontece com nossos desejos quando somos engolidos pela rotina
“Vontade é coisa que dá e passa”, diz o ditado popular, com um tom quase debochado, como se os impulsos do coração fossem passageiros demais para serem levados a sério. Mas será que é isso mesmo? Será que nossos desejos mais profundos são apenas caprichos passageiros, ou será que somos nós que os abandonamos, um a um, por falta de tempo, energia ou coragem?
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A vida adulta nos atropela. São boletos, prazos, compromissos, reuniões, filhos, trânsito, compras de mercado e mensagens não respondidas. No meio dessa avalanche de obrigações, deixamos de lado muito do que queríamos fazer: aquele livro que compramos e nunca lemos, o curso que ficou para depois, o sonho antigo de mudar de carreira, a viagem que vive no plano das ideias. A vontade, sufocada, vai murchando. E com ela, a nossa vitalidade.
A correria como anestesia do desejo
A rotina é eficiente em nos manter ocupados — mas será que estamos realmente vivendo, ou apenas sobrevivendo? Quando nos colocamos no modo automático, deixamos de ouvir nossa própria voz. Nossos desejos passam a parecer distantes, irreais, infantis. “Agora não dá”, pensamos. “Quem sabe mais pra frente.” E o tempo vai passando.
A correria diária anestesia o desejo porque exige foco no imediato: resolver problemas, cumprir tarefas, apagar incêndios. E o desejo, ao contrário, é semente. Ele exige tempo para germinar, espaço para crescer. Quando não paramos para cultivar nossos anseios, eles se perdem em meio ao barulho do cotidiano.
Quando o desejo vira luxo
Em uma sociedade que valoriza produtividade acima de tudo, desejar algo para si pode parecer egoísmo ou futilidade. Quantas vezes ouvimos (ou dissemos) frases como: “Agora não é hora de pensar nisso”, “Tenho coisas mais importantes pra fazer”, “Isso é só um sonho, a vida real é outra”.
Nossos desejos, então, viram luxos que não podemos “nos dar ao direito” de viver. Eles são empurrados para os bastidores da vida — como se não fossem legítimos, como se tivessem que esperar uma permissão que nunca vem.
Mas o problema é que o desejo não desaparece. Ele silencia. Ele se esconde. Ele se recalca. E muitas vezes, reaparece na forma de frustração, cansaço, desânimo, irritação. Sentimos que há algo faltando, mas não sabemos bem o quê.
A autotraição silenciosa
Deixar nossos desejos de lado por um tempo pode ser necessário. Mas quando isso se torna um padrão, entramos em um processo silencioso de autotraição. Abrimos mão de partes importantes de nós mesmos. Vamos nos apagando, nos tornando versões funcionais, porém desbotadas.
Desejar é uma forma de existir com potência. É o que nos movimenta, o que nos conecta com o que é vivo em nós. Quando ignoramos nossos desejos por tempo demais, nos desconectamos de quem somos — e isso cobra um preço.
Redescobrindo o desejo no meio da rotina
É possível resgatar a conexão com nossos desejos, mesmo em meio ao caos. Não se trata de largar tudo e fugir para uma praia deserta (embora essa ideia às vezes seja tentadora). Trata-se de criar pequenos espaços de escuta interior, de lembrar o que nos move, de dar forma ao que sentimos.
Pode ser retomar um projeto antigo com calma, escrever sobre o que se gostaria de viver, conversar com alguém de confiança sobre um sonho guardado. O importante é não se esquecer de si.
Criar um hábito de pausa, ainda que pequeno, pode ser transformador. Dez minutos de silêncio, um passeio desacelerado, um caderno de anotações íntimas — são formas de abrir espaço para que o desejo volte a respirar.
O desejo não passa: ele espera
A verdade é que o desejo verdadeiro não passa. Ele pode se transformar, adormecer, mudar de roupa — mas ele continua ali. À espera de uma chance. Quando dizemos que “a vontade passou”, muitas vezes é porque fomos treinados a não escutar. Porque tivemos que sobreviver, e para isso, deixamos partes de nós pelo caminho.
Mas não é tarde. Nunca é. Sempre é tempo de perguntar: o que eu queria antes que a vida me atropelasse? O que eu posso fazer, ainda que aos poucos, para me aproximar disso?
Vontade não é coisa que dá e passa. Vontade é sinal. É bússola. É a expressão de um eu que insiste em existir, mesmo em meio à exaustão da rotina. Ignorá-la por tempo demais é correr o risco de perder o contato com o que nos faz únicos e vivos.
Não é preciso viver apenas para cumprir tarefas. É possível — e necessário — fazer espaço para os desejos. Nem que seja aos poucos. Porque, no fim das contas, o que dá sentido à vida não é o que fazemos por obrigação, mas o que fazemos com vontade.
(*) Cristiane Lang, psicóloga clínica especializada em oncologia
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