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Voz de aluguel e outros absurdos entre vida e arte

Por Miguel Gally de Andrade (*) | 25/12/2025 13:30

Sonhei com Ariano Suassuna, ele me pedia para eu fazer uma ligação telefônica e cancelar seu cartão de crédito. Me prevenia de não aceitar nada para manter o cartão ativo: desconto de anuidade, anuidade gratuita, prêmios, salas vip, nada! E eu pedia para alguém fazer isso por mim, ele continuava junto à máquina de escrever. Eu explicava a mesma coisa para essa pessoa, que faria a ligação, acrescentando a ela que nem se dessem 1.000, nem 5.000 reais em crédito para gastar no cartão, não deveria ser aceito, nenhum valor, em hipótese nenhuma. Ariano, então, me escutando, olhava e ria. Eu acordava e me perguntava, “mas que sonho é esse?” Faz tempo que nem leio, nem vejo nada sobre Ariano, nem escuto o nome dele...

Ahhh!! Me lembrei, foi por causa do filme de dois dias atrás, Le Répondeur (2025), de Fabienne Godet, uma adaptação do livro homônimo de autoria de Luc Blanvillain (2020). O título do filme foi traduzido como Voz de aluguel, e exibido em várias salas brasileiras ao longo do Festival de Cinema Francês de Brasil. E esse ano, talvez por causa da comemoração do Ano da França e do Brasil, comemoração dos 200 anos de relações diplomáticas, a lista de filmes contemplou vários lançamentos, dando a chance de exibir filmes que dificilmente entrariam no circuito comercial nacional. Mas, o que no filme fez a minha mente acionar a memória de Ariano? Acho que porque o filme e o livro são inspirados no realismo mágico, nessa vertente da literatura de contar histórias mágicas e fantásticas, difíceis de imaginar como se fossem apenas invenções da imaginação, quando são no fundo fruto de um olhar estético sobre o mundo que privilegia a dimensão absurda do nosso cotidiano, destacando tais momentos e transformando-os em uma narrativa. É um esforço da racionalidade estética de dar sentido ao absurdo e às grandes contradições da cultura, muitas vezes recorrendo à comédia, como no filme/no livro e na obra de Ariano.

No filme, Pierre Chozène, um escritor famoso, contrata um hábil artista imitador para ser seu “répondeur”, uma caixa postal ou secretária eletrônica, mas de um tipo especial. Pierre precisava mesmo mais do que um atendente de e para suas ligações. Ele precisava de alguém que o deixasse se concentrar para escrever um novo livro. O filme não explica bem como ele vai ao encontro de Baptiste. Não parece um encontro espontâneo, que acontece logo depois de sua apresentação de Stand-up comedy feita com incrível habilidade. Chozène já tinha um plano completo quando o aborda. A ideia era a de que Baptiste se passasse por Chozène não apenas atendendo, mas, sobretudo, respondendo às demandas de familiares, incluindo as do pai, da filha e da ex-esposa, de amigos, de agentes literários, jornalistas, editores, de qualquer pessoa. Ele tinha preparado um fichário com sua vida: “aqui está a minha vida”, dizia o personagem, arrancando mais uma rodada de risadas. A ordem era que improvisasse com o fichário na mão. O que ele queria era silêncio e isolamento para escrever e, em caso de dúvidas e emergência, Baptiste tinha um número de telefone exclusivo. E a coisa dá certo por umas semanas, eles vão conseguindo enganar a todos.

Até aqui a narrativa do fime vai reforçando e debochando de todos aqueles clichês do intelectual em busca de concentração, mas toca também naquela grande dificuldade quando se pensa a realidade ao invés de vive-la, ou quando se vive sem pensá-la, porque são, de fato, duas dimensões ontológicas da vida difíceis de se interpenetrar. E é com muita sagacidade que num dos diálogos, Baptiste já exausto de resolver os B.O’s e as resenhas do patrão, pergunta a Chozène como está o livro depois de semanas nessa nova experimentação. E o escritor diz que nem começou ainda. Baptiste não acredita e pergunta o que ele está fazendo com todo o tempo livre dele. “Eu estou vivendo”, desconversa o escritor. Porque justamente a luta travada entre a necessidade de se concentrar e se isolar para escrever, por um lado, e o acesso ao mundo fornecido simbolicamente pelo telefone celular, por outro, não permitia a Chozène viver. E, ironicamente, o que ele precisava era de isolamento da tarefa reflexiva também, não da vida vivida, como ele acreditara antes de contratar Baptiste. Ou talvez ele precisasse apenas de umas férias, de dispensar a parte chata da vida.

É aí, nesse absurdo criado por essa situação tão bem trabalhada no filme, que até mesmo a imaginação duvidaria, hoje mantida viva e brilhante no trabalho literário da brasileira Socorro Acioli, por exemplo. É aí que entra Ariano, mestre em reconhecer essas situações no cotidiano, muitas dessas encontradas por ele nos folhetos e cordéis, e na música popular, grande fonte de inspiração para seu trabalho. Mas é na e da própria vida que essas situações emergem, e quando eu pedia no sonho que não se aceitasse nem dinheiro para cancelar o cartão de crédito, Ariano me olhava e ria, voltando-se para a máquina de escrever... certeza que ali ele começava mais um novo conto mágico, bem possível e real, agora ele mesmo sendo a fonte dos absurdos que um dia viu no mundo.

(*) Miguel Gally de Andrade, professor de Estética & Filosofia da Arte e da Arquitetura no Departamento de Teoria e História em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB)

 

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