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Cidades

Estupro de mulher surda só veio à tona depois que servidora aprendeu Libras

Vítima do próprio marido conseguiu ajuda após funcionária reconhecer sinais feitos com as mãos

Por Mylena Fraiha | 12/12/2025 12:28
Estupro de mulher surda só veio à tona depois que servidora aprendeu Libras
Funcionária que reconheceu sinais de Libras feitos pela vítima segura diploma do curso concluído (Foto: Marcos Maluf).

Saber identificar gestos e interpretar expressões faciais por meio do conhecimento de Libras (Língua Brasileira de Sinais) foi o suficiente para revelar um caso de violência doméstica que até então permanecia escondido. O caso ocorreu em Campo Grande e envolve uma mulher surda vítima de agressões sexuais praticadas pelo próprio marido.

RESUMO

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O conhecimento de Libras (Língua Brasileira de Sinais) permitiu que uma servidora pública de Campo Grande identificasse sinais de socorro de uma mulher surda que era vítima de violência sexual praticada pelo próprio marido. A funcionária, que havia recentemente iniciado um curso na Escola do Legislativo da Câmara Municipal, percebeu os gestos de aflição durante um atendimento. O caso evidencia a importância do aprendizado de Libras no serviço público. Mato Grosso do Sul se destaca nacionalmente com legislações específicas, como a exigência de intérpretes em maternidades e a inclusão de Libras como critério em concursos municipais, além de contar com o Centro Municipal de Interpretação de Libras.

A denúncia foi feita por uma servidora pública de 49 anos, que preferiu não se identificar nem revelar o órgão municipal onde atua. A decisão busca resguardá-la profissionalmente e proteger a vítima, que ainda recebe atendimento no local.

Ela explica que o caso ocorreu em maio deste ano, pouco tempo depois de iniciar o curso ofertado pela Escola do Legislativo da Câmara Municipal. “Era no começo, mas eu já entendia um pouco”, relembra. A mulher foi ao órgão junto ao marido, que no caso era o agressor, para realizar outro tipo de atendimento.

O medo dela apareceu logo. Eu percebi algumas coisas, detalhes de Libras que a gente aprende a reconhecer”, comenta. “Era no jeito de conversar. Eu olhei para ela e percebi, mesmo de longe, que tinha algo errado", relembra a funcionária.

A servidora notou que a mulher parecia aflita e que, em determinado momento, o homem fez um sinal de silêncio. Quando ele foi ao guichê, a vítima tentou se comunicar com a funcionária por meio de sinais que remetiam à violência sexual. “Ela fazia um sinal que indicava sexo e outro de mordidas e violência".

Posteriormente, a servidora comunicou as equipes de atendimento do local, que conseguiram separar a vítima do agressor. “Na hora eu pensei que ela estava com um problema, então informei a pessoa do prédio onde eu trabalho”, relembra. “Está tudo bem agora”, afirma sobre a situação da vítima.

Segundo ela, antes do curso seu conhecimento era apenas de observação. “Eu sabia um pouco de Libras porque andava de ônibus e fui aprendendo observando as pessoas”. Apesar de não ter amigos ou familiares surdos, a servidora viu na prática a importância do aprendizado.

“Foi uma vontade minha mesmo, de olhar para quem está aqui perto. O curso em si é para ajudar outras pessoas, quem mais precisa, como foi o caso dela [vítima]. A gente começa a lidar com outras pessoas, percebe que tudo muda, que tem gente que não consegue buscar ajuda. Fiz o curso simplesmente para ajudar”, diz a servidora.

Novas relações – Se para a servidora a Libras se tornou ferramenta de proteção, para a assessora parlamentar Joselene Vieira Pinho, de 36 anos, o idioma virou uma ponte para relações que antes eram quase inexistentes. Ela também fez o curso da Casa de Leis e diz que agora consegue se comunicar com o vizinho de condomínio, que também é surdo.

O interesse pelo curso não nasceu de uma experiência pessoal ou familiar, já que, até então, ninguém próximo dela era surdo. “Eu sempre quis aprender, mas não sabia onde fazer. Quando a Câmara abriu a inscrição, me inscrevi na hora. Libras é um universo fascinante".

Ela relembra que sempre cruzava com o vizinho surdo e tentava conversar por gestos improvisados. Nada muito claro. “Eu não sabia se ele entendia, nem se eu entendia. Era uma tentativa de comunicação, mas muito limitada. Depois que fiz o curso, nossa, abriu minha mente. Pensei: “Eu quero encontrar com ele, agora vou conseguir conversar”.

Estupro de mulher surda só veio à tona depois que servidora aprendeu Libras
Joselene também fez o curso de Libras e diz que agora consegue se comunicar com o vizinho de condomínio (Foto: Marcos Maluf).

Depois do curso, o reencontro aconteceu longe do condomínio, dentro do ônibus. Joselene fez um simples sinal de cumprimento.  "A gente sempre se esbarrava no ônibus. Um dia dei um sinal de oi e ele já percebeu que eu sabia um pouco de Libras. Perguntei o nome dele, que eu não sabia e era uma curiosidade que eu tinha. Ele me disse que se chamava Emerson. A partir disso, começamos a conversar”.

As trocas passaram a fazer parte do dia a dia. “Teve um dia que eu estava voltando de um casamento, toda maquiada, e ele fez o sinal de “você está bonita”. Eu agradeci em Libras. Aquilo foi fantástico. Uma conversa que eu realmente entendia e ele entendia também. Foi maravilhoso”.

Ela também percebeu a dimensão da exclusão vivida por quem depende da língua de sinais para se comunicar. "A pessoa surda muitas vezes fica isolada no mundo dos ouvintes, e ver essa barreira cair foi muito significativo para mim”, comenta Joselene. “E não só com ele [vizinho] já conversei com outro surdo que encontrei após o curso”, explica.

Joselene também relembrou uma ida à UPA (Unidade de Pronto Atendimento) do Universitário, quando um paciente surdo chegou e não havia ninguém que pudesse atendê-lo. “Aquilo também despertou ainda mais meu interesse. Por que uma pessoa chega ali e não tem ninguém para atender? A pessoa se sente excluída”, comenta Joselene.

A experiência reforçou a importância do aprendizado no ambiente profissional.  "Por eu ser assessora de gabinete e, se chegar algum surdo ali eu vou conseguir atender. Para mim é muito satisfatório”, comenta Joselene. "É um diferencial que você tem. Para o serviço público também é muito importante no atendimento", reitera.

A sua dificuldade inicial, segundo Janaína, foi física. “A mão trava. Os movimentos são completamente diferentes do que fazemos no cotidiano. Mas vai destravando, vai fluindo.” E a expressão facial, lembra ela, é tão essencial quanto os gestos. “Se não tiver expressão, o sinal não se completa. É parte do significado”, disse.

Novo olhar – Seja para identificar contextos de violência ou para criar novas relações, aprender Libras é também exercitar um novo olhar para o mundo. É o que explica a intérprete e professora de Libras, responsável pelo curso oferecido pela Câmara, Janaina Saraiva.

O olhar muda. Você passa a reconhecer quando um gesto é mímica ou quando tem estrutura linguística. À distância, já identifica se um grupo está sinalizando, se são surdos ou intérpretes. A percepção muda completamente”, explica Janaína.

Estupro de mulher surda só veio à tona depois que servidora aprendeu Libras
Janaina diz que aprender Libras é também exercitar um novo olhar para o mundo (Foto: Marcos Maluf).

Janaina destaca que Libras é uma língua visual e espacial, estruturada por configurações de mão e expressões não manuais que compõem o significado. A dificuldade física do início, segundo ela, desaparece com a prática, e quando o aluno passa da modalidade oral-auditiva para a visual-espacial. “Isso muda a estrutura cognitiva".

Nascida no estado de São Paulo, mas há 16 anos trabalhando em Mato Grosso do Sul, seja como intérprete em órgãos públicos ou dando aula, ela aponta que tem notado maior interesse das pessoas em aprender Libras e que há muita demanda pelo curso oferecido na Câmara. “Quando divulgamos o curso, a procura é grande.”

Segundo ela, o impacto desse interesse é sentido já na recepção da Casa de Leis. “As servidoras que fizeram o curso conseguem recepcionar uma pessoa surda, dar bom dia, perguntar para onde quer ir. É o mínimo de acesso à informação”, afirma.

A professora também reforça que o aprendizado não deveria ficar restrito ao serviço público. “Mesmo que você não tenha familiar surdo, pode se deparar com alguém precisando pedir uma informação. Quando você auxilia, faz diferença. É empatia. Quando fala a mesma língua, alcança o coração da pessoa. Ela se sente parte da sociedade”, diz.

Ela ressalta que Mato Grosso do Sul se destaca no país com legislações que antecederam normas nacionais e com estrutura de atendimento e formação acima da média. Entre elas estão a Lei Complementar Municipal nº 527/2024, que exige intérpretes em maternidades quando solicitado por pacientes; a Lei Municipal nº 7.127/2023, que inclui Libras como critério de desempate em concursos municipais; e a criação do CMILCG (Centro Municipal de Interpretação de Libras).

“Quando cheguei aqui, me surpreendi com a estrutura oferecida na área da acessibilidade e com a oferta de cursos de Libras, tanto pelo Estado quanto pelo município”, relembra. “Estamos à frente. Apesar das dificuldades, aqui oferecem o mínimo de atendimento e temos legislações estaduais e municipais que antecederam a legislação nacional, fruto do trabalho da própria comunidade surda do Estado”, diz Janaina.

A Câmara Municipal deve oferecer novamente o curso de Libras no próximo ano, de forma gratuita. As datas de inscrição serão divulgadas no site da Casa de Leis.

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