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Capital

Há 678 dias, Sophia é símbolo de omissão e violência

Reveja cronologia das últimas horas da garotinha que sucumbiu à violência e o que aconteceu em 22 meses

Por Anahi Zurutuza | 04/12/2024 06:10
Sophia, que partiu aos 2 anos e 7 meses, sorri em foto tirada pelo pai (Foto: Arquivo de família)
Sophia, que partiu aos 2 anos e 7 meses, sorri em foto tirada pelo pai (Foto: Arquivo de família)

Há 678 dias, o Brasil conheceu Sophia, garotinha que aos 2 anos e 7 meses deixou vida de sofrimento, marcada pela violência física e psicológica perpetrada por quem tinha o dever de protegê-la das mazelas do mundo. Ironia do destino ou não, há quase dois anos, ela faz história.

A morte de Sophia jogou luz sobre o quão falha era a rede de proteção à criança e ao adolescente em Campo Grande, gerou pressão social sobre os órgãos responsáveis e fez, por exemplo, a demanda por medidas protetivas de urgência para meninos e meninas aumentar exponencialmente em menos de cinco meses – em 2022, eram em média 14,1 ordem protetivas impostas mensalmente na Capital e em maio de 2023, já eram 67,5 por mês.

A cidade ganhou três novas unidade do Conselho Tutelar – hoje são oito pontos de atendimento – e teve eleições para a escolha de conselheiros com participação popular recorde – mais de 30 mil eleitores.

Foi o Caso Sophia que também provocou debate sobre mais uma nuance no leque da homofobia. O pai da menina, Jean Ocampo, tentou, mas não chegou nem perto de obter a guarda da filha. Tanto Ocampo, quando o companheiro dele, Igor Andrade, acreditam que encontraram obstáculos nas vezes em que foram atrás de socorro por serem um casal homoafetivo.

Muita coisa mudou neste 1 ano e 8 meses sem Sophia, mas a que preço?

A pequenina e frágil menina passou cerca de 24 horas agonizando antes de ser levada já morta, nos braços da mãe, para a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) do Bairro Coronel Antonino, sem contar, ou levando bastante em conta, os meses de terror nas mãos de Stephanie de Jesus da Silva, de 26 anos, e do marido dela, Christian Campoçano Leitheim, 27, que, segundo investigação, espancavam e ameaçavam a criança com frequência. Ambos negam o assassinato.

Feliz, Sophia brinca com bolhas de sabão junto com o companheiro do pai, Igor Andrade (Foto: Reprodução das redes sociais)
Feliz, Sophia brinca com bolhas de sabão junto com o companheiro do pai, Igor Andrade (Foto: Reprodução das redes sociais)

Resumo – Na tarde do dia 26 de janeiro de 2023, Sophia deu entrada na UPA do Coronel Antonino, no norte de Campo Grande, já sem vida. Inicialmente, a mãe, que foi até lá sozinha com a garota nos braços, sustentou versão de que ela havia passado mal, mas inspeção médica encontrou lesões pelo corpo, além de constatar que a morte havia ocorrido cerca de quatro horas antes da chegada ao local.

O atestado de óbito apontou que a garotinha morreu por sofrer trauma raquimedular na coluna cervical (nuca) e hemotórax bilateral (hemorragia e acúmulo de sangue entre os pulmões e a parede torácica). Exame necroscópico também mostrou que a criança sofria agressões há algum tempo e tinha ruptura cicatrizada do hímen – sinal de que sofreu violência sexual.

Para a investigação policial e o Ministério Público, Sophia foi espancada até a morte pelo padrasto, depois de uma vida recebendo “castigos” físicos e tortura psicológica — como ficar em pé, em silêncio e sob ameaça, até comer todo o alimento servido pelo homem —, quase sempre com o aval da mãe, quando não era ela quem cometia as agressões.

Equipe da DEPCA (Delegacia Especializada em Proteção à Criança e ao Adolescente) durante buscas na casa onde criança foi morta (Foto: Alex Machado/Arquivo)
Equipe da DEPCA (Delegacia Especializada em Proteção à Criança e ao Adolescente) durante buscas na casa onde criança foi morta (Foto: Alex Machado/Arquivo)

Investigação policial – Policiais do GOI (Grupo de Operações e Investigações), que deram o start nas apurações do caso, tiveram acesso às mensagens trocadas entre Christian e Stephanie pelo celular dela, destravado pela própria jovem em solo policial.

Para a Polícia Civil, Christian e Stephanie tentaram combinar versão sobre o ocorrido e também fingir surpresa em troca de mensagens, o que indica que eles já sabiam que a vítima estava morta quando decidiram levá-la para a UPA.

O casal foi indiciado em fevereiro de 2023, mas, no dia 24 de julho, laudo contendo três horas do diálogo do casal no WhatsApp foram extraídas do telefone da ré pelo Instituto de Criminalística e análise entregue à Justiça foi bastante esclarecedora. Toda a conversa, por texto e áudio, revela a tensão entre os dois naquele dia.

Stephanie diz mais de uma vez que está confusa: “Eu não tô raciocinando direito”, enquanto Christian a pressiona o tempo todo para saber o que aconteceu no posto de saúde, dizendo que vai sair da vida da mulher e até perguntando sobre o futuro do relacionamento deles. Quando ela pede ajuda, ele nega: “Não vou servir de nada aí. Só para ser preso”.

Apesar do nervosismo, há dois momentos que os dois se preocupam em usar o português corretamente. Ela escreve que está “passando mau” e depois corrige a última palavra para “mal”. Ele, por sua vez, corrige o “mas” escrito no lugar de “mais”.

Área da casa na Vila Nasser onde casal vivia com Sophia, outras duas crianças, cachorro e gatos (Foto: Henrique Kawaminami/Arquivo)
Área da casa na Vila Nasser onde casal vivia com Sophia, outras duas crianças, cachorro e gatos (Foto: Henrique Kawaminami/Arquivo)

Tramitando na Justiça – Logo após o indiciamento, o MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul) ofereceu denúncia contra o casal que virou réu e em abril do ano passado, testemunhas do caso começaram a ser ouvidas.

A ação penal teve até troca de juiz. Em maio, um dos advogados do padrasto acusado de estuprar e matar a enteada, Willer Almeida foi retirado sob escolta de plenário do Tribunal do Júri, no Fórum de Campo Grande, após bate-boca com o juiz Carlos Alberto Garcete, que presidia mais uma tarde de audiências do caso que abalou a Capital. A discussão começou quando o defensor de Christian decidiu servir copo de água à testemunha que chorava durante depoimento. Em setembro, Garcete renunciou ao processo, que seguiu sob os olhos de Aluízio Pereira dos Santos.

Testemunhas terminaram e depois e o casal foi interrogado em juízo em dezembro de 2023, trocando acusações. Mas foi em fevereiro deste ano, que detalhes sórdidos do que Sophia passou foram revelados.

O Gaeco (Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado), que trabalhou em apoio aos promotores do caso, teve participação decisiva no caso. Relatório trouxe ao processo “percepções adicionais” com base em todos os dados extraídos dos celulares dos réus, “porque durante seu interrogatório, Christian apresentou versões fantasiosas a respeito do ocorrido”.

O documento, assinado pela procuradora Ana Lara Camargo de Castro, coordenadora do Gaeco, desmente o principal argumento do acusado para se livrar a culpa pela morte da menina. No depoimento dado em juízo, no dia 5 de dezembro, Christian disse que passou o dia 26 de janeiro de 2023 dormindo, das 4h até por volta das 16h, sob efeito de drogas e álcool, e ainda que só tomou conhecimento que Sophia passava mal quando Stephanie o acordou no fim da tarde.

O réu, contudo, começa a usar o celular na data da morte da enteada, por volta das 12h. “Às 13h25min, ele [portanto, desperto] encaminhou mensagem para sua genitora, relatando que Sophia de Jesus Ocampo estava ‘morrendo de dor’”, registra o relatório.

Christian Leitheim e Stephanie de Jesus, padrasto e mãe de Sophia, durante audiência no dia 5 de dezembro (Foto: Juliano Almeida/Arquivo)
Christian Leitheim e Stephanie de Jesus, padrasto e mãe de Sophia, durante audiência no dia 5 de dezembro (Foto: Juliano Almeida/Arquivo)

Cronologia – A análise aponta que a criança começou a apanhar do padrasto cerca de 24 horas antes de morrer. “Ao que tudo indica o sequenciamento observado, o acusado teria agredido fisicamente Sophia na data de 25 de janeiro de 2023, meados da tarde, quando já apresentava irritabilidade desencadeada a partir de lentidão de internet enquanto tentava se conectar para jogos online. O fato de o acusado considerar a vítima ‘endemoniada’, por ignorá-lo e recusar a se deitar, parece ter resultado na agressão que levou a criança a óbito”.

A procuradora explica que tomou a conclusão porque algumas horas depois de Christian “desabafar” com Stephanie sobre o comportamento da enteada, classificado por ele como teimoso, a menina começou a apresentar “aos primeiros sintomas da fatal lesão sofrida por ela”.

Por volta das 18h, Sophia passou a vomitar e padrasto culpa a mãe por ter permitido que a filha comesse vários pães no dia anterior. Ele diz que a menina “vomitou o colchão inteirinho” e continua: “O que ela fez foi vomitar, umas quatro vezes acho. Agora já era. Já vomitou o que tinha que vomitar. Acho que agora vai ficar só morrendo aqui”.

Ana Lara Camargo destaca que o réu revela à mulher como fez a menina ficar quieta na noite do dia 25 e relembra a violência já empregada em outras ocasiões. “Registra-se, ademais, que já restou noticiado o mecanismo violento usado pelo acusado, consistente em tapa e 'quebra-costela', para punir a vítima, agressões que eram seguidas de sufocamento como forma de interromper o choro da criança, cujo pranto era silenciado pela ânsia de respirar enquanto tinha seu rosto pressionado contra um colchão”.

O relatório então faz um parêntese, para recordar diálogo do casal que aconteceu exatamente um ano antes da morte de Sophia, no dia 26 de janeiro de 2022. Stephanie reclama que a filha não para de chorar e o padrasto “ensina” como calá-la. O método é asfixia:

Dá uns tapão nela, aí você vira a cara dela pro colchão e fica segurando porque aí ela para de chorar. É sério. Parece até tortura mais [sic] não é, porque aí ela fica sem ar para chorar e para de chorar. Entendeu?”, orienta o Christian Leitheim, conforme transcrito pelo Gaeco.

Sophia imóvel horas antes de ser levada para posto de saúde, onde óbito foi constatado (Foto: Reprodução do relatório do Gaeco)
Sophia imóvel horas antes de ser levada para posto de saúde, onde óbito foi constatado (Foto: Reprodução do relatório do Gaeco)

Evolução do quadro – A perícia encontrou fotos nos celulares do casal que mostram Sophia bastante debilitada, já na noite do dia 25. Na madrugada do dia 26 de janeiro, Stephanie procura na internet como fazer soro caseiro, também aponta o relatório.

Para o Gaeco, Christian dormiu por aproximadamente 7 horas, 5h às 12h, se levadas em conta as interações encontradas no aparelho de telefone dele.

Sophia aparece chorando ao fundo de áudio, enviado pelo réu a um amigo e pinçado pela perícia, o que significa que às 12h32 daquele fatídico dia, a menina ainda estava viva e o padrasto já havia acordado. “Aliás, ao encaminhar áudio, via aplicativo mensageiro, é possível ouvir ao fundo da mensagem, a vítima queixar-se de dor, enquanto Christian se gaba com o amigo sobre a prática de sexo com Stephanie na madrugada anterior”, considerou Ana Lara Camargo.

A linha do tempo mostra que, por volta das 13h, há diálogos sobre medicamentos ministrados a Sophia, o que, segundo a procuradora, “desmente tanto a versão de que o acusado estava dormindo, quanto a de que só tomou conhecimento de que a vítima estava convalescendo quando ele foi despertado pela acusada”.

O relatório destaca a relutância de Christian em permitir que Stephanie levasse a filha ao posto de saúde. Ao amigo, diz que a dor abdominal pode ser motivada pela “pele esticando” ou “porque o osso da costela dela é meio alto”. Para o padrasto, na verdade, a mulher quer um atestado para faltar ao trabalho.

Por fim, o Gaeco traz foto tirada por Stephanie às 14h05, que mostra Sophia “desmaiada” em um colchão, “sugerindo evolução de um cenário crítico”. No fim da tarde, Christian avisa a mãe dele que a enteada não está respirando.

Marcas no corpo de Sophia em registros feitos pela mãe e pelo pai biológico; garotinha teve a perna quebrada com chute do padrasto, segundo a investigação (Fotos: Reprodução)
Marcas no corpo de Sophia em registros feitos pela mãe e pelo pai biológico; garotinha teve a perna quebrada com chute do padrasto, segundo a investigação (Fotos: Reprodução)

Versões – Stephanie alega que não viu Christian batendo em Sophia, mas atribui a morte da filha ao ex-companheiro. “Quando eu saí, ele já estava com ela no colo, desacordada. Ele deitou ela [sic] no colchão e fez massagem cardíaca, respiração boca a boca nela. Mas, eu estava tão desesperada que eu não sabia o que fazer, que eu não me toquei na hora o que estava acontecendo”, relatou no dia 5 de dezembro.

Já Christian alega que dormiu o dia todo sob efeito de drogas e álcool. Disse que foi despertado pela mulher. “Quem me acordou foi a Stephanie falando que a Sophia não estava bem. Quando eu vi, ela já estava com a boca roxa e convulsionando”.

O padrasto começa a ser julgado, nesta quarta-feira (4), por homicídio qualificado por motivo fútil, meio cruel e praticado contra menor de 14 anos. Ainda responderá por estupro de vulnerável. Já a mãe será julgada por homicídio doloso por omissão, já que não impediu o resultado trágico da violência praticada pelo companheiro contra a filha.

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