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Capital

Sistema público não alcançou Cecílio, doente psiquiátrico que matou Eloá

“É defeituoso em todas as pontas”, avalia o médico Adriano Bernardi sobre sistema público de atenção à saúde mental

Izabela Sanchez | 15/12/2019 08:44
Médico psiquiatra enumera fatores sobre a falha do sistema público de atenção à saúde mental (Foto: Henrique Kawaminami)
Médico psiquiatra enumera fatores sobre a falha do sistema público de atenção à saúde mental (Foto: Henrique Kawaminami)

Diagnosticado com esquizofrenia há 12 anos, interditado judicialmente há 7,  Cecílio Martins Centurião Júnior, 34, atacou uma criança de 3 anos no Bairro Moreninhas IV, em Campo Grande, no dia 11 de dezembro. No sábado, 14, foi atestada a morte da criança, na Santa Casa, em decorrência das lesões. Ficou para trás o desespero da mãe que viu toda a cena, acompanhada dos outros dois filhos pequenos, e o questionamento sobre porquê uma pessoa com quadro psiquiátrico severo estava na rua, sem monitoramento, em aparente crise.  

O caso exemplifica, na opinião do médico psiquiatra Adriano Bernardi do Prado, 41, mais uma tragédia anunciada que poderia ter sido evitada. “É defeituoso em todas as pontas”, é avalia o profissional sobre o sistema público de atenção à saúde mental.

A questão é calcanhar de Aquiles em todo o Brasil, mas especialmente em Mato Grosso do Sul e na Capital, que acumula investigações da 32ª Promotoria de Saúde Pública apontando falta escandalosa de vagas de internação, número irrisório de CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), falta de psiquiatras e de residências terapêuticas.

Segundo a decisão judicial que manteve Cecílio na prisão após o crime, ele sofre de esquizofrenia e foi interditado judicialmente em 2012. Ele foi levado para uma ala psiquiátrica do Presídio de Segurança Máxima Jair Ferreira de Carvalho. A mãe, empregada doméstica, afirmou que o filho “era muito agressivo e em razão disso morava sozinho há 3 anos”.

Declarou que não tinha como morar com Cecílio, pelo comportamento agressivo, disse já ter sido atacada por ele e que os surtos já haviam ocorrido outras vezes. A mãe contou ainda que o filho era medicado de 12 em 12 horas. O medicamento, enquanto estava com ela, era colocado na comida de Cecílio, que “perambulava pelas ruas do bairro”.

Cecílio foi amarrado por testemunhas que acionaram a Guarda Municipal (Foto: Direto das Ruas)
Cecílio foi amarrado por testemunhas que acionaram a Guarda Municipal (Foto: Direto das Ruas)

O SUS não alcança – A rede pública não alcançou Cecílio. É a leitura do psiquiatra. “Teria que ter alguma maneira de dar assistência social no sentido de residências terapêuticas para ver se está se tratando até para compensar esses casos em que o paciente não é muito cooperativo. No caso desse Cecílio, não tinha como a mãe dele forçar a tomar medicação. Não tinha como acorrentar no porão, não tinha como dar um dardo de medicação nele. Tinha que confiar que tomava remédio, não tomou, ficou em surto e matou uma criança”.

“O doente é uma vítima, mas também é risco para a sociedade”, avalia Adriano, que argumenta sobre a necessidade urgente de mais vagas para internação.

“As pessoas consideram que internação nunca é necessária e que sempre é uma tortura e não é. Tem que ter um CAPS funcionando bem, bem pago, com vaga para essa super demanda, o que não tem, não adianta mentir. Teria que ter hospitais psiquiátricos para casos de pessoas em surto, pessoa que está doente e não tem assistência e teria que ter também uma terceira instância que seriam as residências terapêuticas e, no sistema prisional, prisões psiquiátricas, para casos de pacientes agressivos”, diz.

O médico corrobora com os dados trazidos pelas investigações o Ministério Público que apontam a insuficiência da rede pública. O que já existe, explica, não funciona bem por falta de profissionais, falta de manutenção dos mesmos médicos para estabelecer relação de confiança com os pacientes, remédios muitas vezes de baixa qualidade e ocasionalmente, interrupção do fornecimento.

“O sistema ideal teria que ter assim: ambulatório bem feitinho com atendimento. Seguimento de reavaliação já evita 80% das internações. Só que é o seguinte, tem casos que por mais boa vontade que tenha, melhor atendimento, vai ter crise. Caso de um cara agressivo que mora com a mãe. A mãe tem 50 quilos, o cara tem 100 quilos, ele anda de madrugada com faca na rua. É o caso desse Cecílio, colocaram na comida, não tem como saber se ele comeu mesmo, se está tomando, o cara de repente fica em crise em meses, anos”, avalia.

A cultura não ajuda – Adriano também avalia que a ignorância, em todos os níveis, ainda reina quando o assunto são doenças e sofrimentos mentais. “E outra coisa. Primeiro, tem família que ela quer que os outros resolvam, mas ela não cuida. Então, por exemplo, assim, ela traz o paciente, o paciente não tomou remédio, não comprou o remédio porque é caro. Então tem família que é relapsa. E muito disso aí infelizmente é por religião. O pastor fala que é coisa espiritual. Aí a pessoa escuta o pastor e não escuta o médico”, relata.

A crônica da morte anunciada mostra, então, a impossibilidade do bem conviver da sociedade com as doenças mentais: de um lado, assistência que não assiste. De outro, sociedade que não entende, julga e estigmatiza.

O assunto ganhou os cinéfilos este ano ao ser abordado no personagem clássico dos quadrinhos, o vilão, inimigo do Batman, Coringa. Criminoso no fim, o filme de Todd Phillips inverte a narrativa e mostra como Arthur Fleck tornou-se Coringa. Sem tratamento, remédios, ridicularizado e pobre, Fleck apresenta diversas características de um esquizofrênico.

Preso aos diários que mantinha e onde relatava o sofrimento, Arthur escreve: “a pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse”. Para o especialista, a frase é verdadeira. “As pessoas pensam que é uma questão de força de vontade, de otimismo. Ah, tem que se pegar em Deus, pensar positivo, focar na realidade. Dá a entender que a pessoa é uma fraca ou é uma azarada, quando na verdade tem uma coisa química por trás. Essa questão de julgar é o que evita muitas vezes se tratar”, comenta Bernardi.

Frame de uma das cenas do filme Coringa, de Todd Phillips (Reprodução)
Frame de uma das cenas do filme Coringa, de Todd Phillips (Reprodução)

A esquizofrenia – O relato clínico do médico aponta 5 diferentes tipos de manifestação da doença: “paranoide, hebefrênica, catatônica, simples e residual”, além das psicoses, que são casos, às vezes, passageiros ou presentes em outras doenças.

Questionado sobre a possibilidade de uma pessoa diagnosticada com esquizofrenia viver sozinha, o médico opina que sim, mas não sem supervisão e cuidado. “Pode, mas é o seguinte, tem que ter alguma maneira de assegurar que ele está se tratando e tem que ter uma maneira de reavaliar ele de tempos em tempos. Falavam que ele tomava medicamento no alimento, mas quem garante?”, explica.

Encarcerar e esquecer – O fim dessa história, conclui, é a outra ponta falha do sistema. Na falta de presídios psiquiátricos, o Estado encarcera e esquece.

“É muito comum que o esquizofrênico se envolva em crimes, seja preso e seja largado no presídio e esquecido. De repente, por exemplo, tem um paciente que é bipolar agressivo, tentou matar a família, no hospital normal não pode ficar. Não tem nem vaga em hospital psiquiátrico, aí deixa no presídio ele não é tratado, deixa na rua ele mata alguém. Não conheço o caso dele [Cecílio], mas, provavelmente, o que aconteceu: ele devia ir no psiquiatra uma vez a cada dois anos, aí chegava já exigindo um laudo para alguma coisa, não tinha como conferir se tomou medicação, que medicação que funcionava e tem que ter esse ajuste”, analisa.

A reportagem consultou a Sesau (Secretaria Municipal de Saúde), por meio da assessoria de imprensa, sobre o tratamento dado aos diagnosticados com esquizofrenia. “Atualmente todos os CAPSs de Campo Grande fazem tratamento e acompanhamento de pacientes com esquizofrenia. Quando o paciente não está em crise, o tratamento é feito com anti-psicóticos e acompanhamento na rede, com consultas em intervalo que variam de acordo com cada paciente”, diz o comunicado.

A Sesau afirma que há somente 118 vagas para internação em Campo Grande (número que incluiu os CAPS), cidade com mais de 800 mil de habitantes. “Sendo 25 no hospital Nosso Lar, 12 no Hospital Regional e 76 em CAPS, não tendo fila de espera e, nos CAPS, o atendimento não necessita de encaminhamento médico, sendo unidades porta aberta, atendendo demanda espontânea.O tratamento é feito através de medicamentos anti-psicóticos, como Aldol, Haldol decanoato e Clopixol, todos oferecidos pela prefeitura que irão reduzir os surtos dos paciente”, diz a secretaria.

Crime bábaro- A menina foi atacada na quarta-feira, dia 11. Levada para a Santa Casa de Campo Grande em estado grave, foi para o CTI e na quinta-feira foi aberto o protocolo para identificar se havia ainda atividade cerebral. Na tarde desde sábado, foi confirmada a morte. 

O sepultamento está marcado para as 15h, no cemitário Nacional Park, no bairro Moreninhas.

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