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Lado Rural

Celulose ameaça segurança alimentar e reconfigura assentamentos no leste de MS

Eucalipto pressiona agricultores familiares e fomenta desequilíbrios socioeconômicos e ambientais

Por Vasconcelo Quadros, de Brasília | 11/07/2025 15:38
Celulose ameaça segurança alimentar e reconfigura assentamentos no leste de MS
40% dos assentados aceitam trabalhos temporários para as grandes indústrias. (Foto: Divulgação)

A expansão da indústria de celulose tem impulsionado a economia de Mato Grosso do Sul e alterado profundamente a paisagem socioeconômica da região Leste do Estado. Nos municípios onde se concentra a maior parte dos eucaliptais, Ribas do Rio Pardo, Três Lagoas, Brasilândia, Santa Rita do Pardo, Inocência, Bataguassu e Selvíria — a agricultura familiar perde tração e tenta se adaptar à nova realidade.

RESUMO

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Expansão da celulose em MS gera impactos socioeconômicos e ambientais. O crescimento da indústria de celulose no leste de Mato Grosso do Sul, impulsionado por extensos plantios de eucalipto, causa mudanças significativas na região. Agricultores familiares enfrentam dificuldades para manter a produção de alimentos, competindo com o avanço dos eucaliptais, que ocupam uma área consideravelmente maior que a destinada aos assentamentos rurais. Essa situação força muitos agricultores a buscar trabalho nas indústrias de celulose, alterando a dinâmica do trabalho rural e gerando migrações internas. A concentração de receitas do ICMS nas cidades que abrigam as fábricas cria desequilíbrios econômicos entre os municípios. Impactos ambientais e busca por soluções. A monocultura de eucalipto também gera impactos ambientais, como deslocamento da fauna, degradação de nascentes e aumento de atropelamentos de animais silvestres em rodovias. Agricultores relatam a migração de animais para áreas de produção de alimentos em busca de comida. A coexistência entre indústria e agricultura familiar é um desafio, embora empresas de celulose demonstrem interesse em parcerias e apoio a projetos sustentáveis, como a criação de corredores ecológicos. A busca por soluções tecnológicas e a implementação de políticas públicas de apoio à agricultura familiar são essenciais para minimizar os impactos negativos e garantir a segurança alimentar na região.

Enquanto grandes empreendimentos avançam, áreas destinadas à produção de alimentos permanecem estagnadas. O contraste é evidente: os assentamentos rurais somam cerca de 47 mil hectares, frente a 1,690 milhão de hectares cobertos por eucalipto, 93% dos plantios de todo o Estado.

O crescimento da monocultura ocorre em paralelo à retração das pequenas propriedades. Esse processo não apenas reduz a produção de alimentos, mas também transfere mão de obra do campo para os canteiros industriais e florestais, onde os salários são mais atrativos.

Há um movimento interno de migração entre municípios, sobrecarregando os serviços públicos e criando tensões entre os gestores locais, especialmente nas cidades que não sediam indústrias e, por isso, não recebem a maior fatia do ICMS.

Ainda não se pode falar em êxodo rural em massa, mas a configuração do trabalho mudou. Muitos assentados conciliam a subsistência agrícola com empregos em empresas de celulose.

Celulose ameaça segurança alimentar e reconfigura assentamentos no leste de MS
Associados dos assentamentos Mutun e Avaré só trabalham na agricultura familiar. (Foto: Divulgação)

Estimativa feita ao Campo Grande News por agricultores e servidores que atuam na região aponta que cerca de 40% das 1.593 famílias assentadas em 12 comunidades da região exercem alguma atividade no setor. “Quando acaba a produção, cai para 15% a 20%”, explica o agricultor Sebastião Landim, que administra uma associação formada por 40 moradores dos assentamentos Mutum e Avaré chamada Amigos em Ação, em Ribas do Rio Pardo, que busca manter os associados apenas na agricultura familiar.

Landim diz que a coexistência com as grandes indústrias é pacífica e em boa parte uma parceria de mão dupla. “Não tem uma guerra, uma briga contra o progresso. Tem uma tentativa de conviver com ele. A empresa tem ajudado bastante aqueles que querem compromisso”.

O problema, diz, é que a vida na região já não é mais a mesma e há sinais de colapso na rede de serviços: “Primeiro vem o impacto ambiental, que é nítido. Se falar que não tem, está mentindo. Antes o assentamento era mais calmo. Hoje tem pessoas de todo lugar e cada dia chegando mais gente. Vai acabando aquela tranquilidade. Temos apenas uma ambulância para atender as pessoas. Aí começa a chegar muita gente e não dá conta.”

Landim diz que a Suzano, dona da maior floresta de eucaliptos na região, com cerca de 600 mil hectares, tem se mostrado compreensiva e aceita negociar, como fez ao reduzir o uso de agrotóxicos para não prejudicar um projeto de produção de mel da comunidade, o colmeia, preservando a atividade das abelhas. E também apoia a construção de corredores ecológicos nas cercanias de nascentes para evitar que os animais migrem para áreas de produção de alimentos, parte dos quais se converte em merenda escolas nas escolas públicas. O excedente deve ser negociado inclusive com a própria Suzano.

Celulose ameaça segurança alimentar e reconfigura assentamentos no leste de MS
Sebastião Landim, líder comunitário (Foto: Divulgação)

Os maiores assentamentos, Mutum e Avaré, concentram 800 famílias em 23 mil hectares distribuídos entre Ribas do Rio Pardo, Santa Rita do Pardo e Brasilândia. A área total destinada à reforma agrária na região equivale a apenas 1/38 dos eucaliptais, ou 0,68% do território dos municípios envolvidos. Esses números refletem também um contraste entre pequenos e grandes em todo o Estado, conforme dados do Incra: Mato Grosso do Sul destina 722 mil hectares para 215 projetos da reforma agrária, onde estão assentadas 29.800 famílias, enquanto o pujante agronegócio como um todo se estende por 7,4 milhões de hectares.

Segundo o superintendente regional do Incra, Paulo Roberto da Silva, conhecido como Paulo Ponta, o avanço do eucalipto traz efeitos ambientais severos, como o deslocamento da fauna e a degradação de nascentes. “Ouvi relatos apontando que em áreas desmatadas para plantar eucalipto, em Selvíria, os bichos migraram para as plantações dos assentamentos em busca de alimento. Dizem que se plantar banana, as araras vão lá e comem tudo”.

Animais silvestres, pressionados pela fome, migram para as rodovias, onde são frequentemente atropelados. “Tem animal batendo marmita na beira de estrada”, relatou o gestor ambiental Valticinez Barbosa Santiago, subsecretário de Meio Ambiente de Selvíria, em referência a um dito popular já incorporado à linguagem da região e que ilustra o aumento significativo de mortes de animais que vão para às rodovias em busca de comida e acabam atropelados. A fauna lá é riquíssima: tem anta, o macaco bugio, porco do mato, lobo guará, uma outra espécie de lobo, conhecido como raposinha, veados, entre outras espécies.

Ponta defende soluções baseadas em tecnologia, como a criação de cinturões verdes ao redor dos assentamentos, para minimizar os impactos ambientais e preservar a fauna local.

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Assentados convivem em harmonia com os grandes empreendimentos. (Foto: Divulgação)

Terra, renda e futuro

Com a pecuária em retração, Selvíria perdeu mais de 70 mil cabeças de gado, e a concentração das receitas do ICMS nas cidades que sediam fábricas, como Três Lagoas, surgem disputas silenciosas até entre prefeitos.

A agropecuária de médio e grande porte praticamente desapareceu da região, dando lugar à nova “disputa” entre gigantes da celulose e pequenos agricultores. A principal dificuldade dos que não estão vinculados às políticas públicas do Ministério de Desenvolvimento Agrário é a falta de acesso a crédito e documentação para investir na própria terra, deficiências que o Incra procura corrigir, com novos programas de crédito e fomento para melhor a produção. Foram citados 90 projetos de fomento (R$ 720 mil) e 40 do Pronaf (cerca de R$ 2 milhões).

Apesar disso, a agricultura familiar segue dependente de suporte institucional para sobreviver frente à força do setor florestal. Sem políticas públicas e com regularização fundiária atrasada, muitos assentados não conseguiram produzir além do autoconsumo, o que os forçou a buscar renda fora da propriedade.

Mesmo não entrando em áreas do Incra, os eucaliptais vizinhos afetam os assentamentos, alterando o perfil produtivo e pressionando pequenos proprietários mais antigos a vender ou arrendar suas terras. A baixa rentabilidade da agricultura familiar e a falta de um programa contínuo de subsídios, afastam os jovens, que migram para trabalhar nas fábricas ou florestas, comprometendo a sucessão familiar nos assentamentos e acelerando o esvaziamento rural, num êxodo lento, mas resiliente.

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